Empreendimento ilegal, ameaças e descaso: o que o povo Pataxó da TI Barra Velha enfrenta há anos na Bahia
Indígenas denunciam ameaças cometidas por empresários e ruralistas; governo age com omissão perante o contexto
“Eu aprendi que a terra não é simplesmente um pedaço de terra para estar morando. A terra para a gente é uma mãe, é uma mãe natureza. A terra tem um valor para o povo indígena”. Com esse relato, uma liderança indígena do povo Pataxó – que não será identificada nesta reportagem por questão de segurança – resume o que ela aprendeu ao longo de anos de resistência pelo território.
Ao Conselho Indigenista Missionário (Cimi), a liderança da Aldeia Mãe Barra Velha, localizada na Terra Indígena (TI) Barra Velha, em Porto Seguro (BA), apresentou o contexto histórico do território Pataxó: as lutas travadas, o descaso do governo e as ameaças sofridas por empresários e ruralistas.
“O governo não está fazendo o papel que deveria, conforme diz o artigo 231 [da Constituição Federal]. A União deveria cumprir com a obrigação de demarcar e proteger as terras indígenas. Isso não está acontecendo. A Funai [Fundação Nacional do Índio] está fazendo ‘vista grossa’ e as nossas terras estão tomadas pela grilagem. O nosso território é muito bonito, na beira da praia, então chegam essas pessoas [empresários, fazendeiros e grileiros] iludindo os nossos parentes, escoando dinheiro e sonegando imposto. As nossas lideranças não podem nem mais sair de casa, porque estão ameaçadas de morte”, desabafou.
“O governo não está fazendo o papel que deveria, conforme diz o artigo 231 [da Constituição Federal]. A União deveria cumprir com a obrigação de demarcar e proteger as terras indígenas”
A liderança disse que outro problema crônico que os Pataxó enfrentam é o enfraquecimento das tradições culturais e religiosas desde que “pessoas brancas” passaram a frequentar e, até mesmo, habitar o território.
“O meu povo Pataxó foi um dos primeiros a ter contato com os colonizadores quando eles invadiram o Brasil. De lá para cá, os conflitos são constantes devido à ganância dos colonizadores pela nossa terra. Desde o ano de 1500, nós sofremos opressões de todos os lados. Primeiro, com a catequização do meu povo, escravizando, ensinando a falar outra língua, a praticar outra cultura, costume e religião. A opressão também veio em forma de doença e roubo das nossas riquezas e do nosso território”, afirmou.
A TI Barra Velha
A Terra Indígena Barra Velha foi demarcada no município baiano na década de 1980 com 8.627 hectares. No entanto, grande parte do território de ocupação tradicional Pataxó ficou de fora desta demarcação e, com isso, surgiu também a preocupação com as futuras gerações da comunidade. Foi então que os indígenas se mobilizaram para garantir a revisão dos limites da área.
Em 2009, a Funai publicou o novo relatório circunstanciado de identificação da área. A demarcação revisada recebeu o nome de TI Barra Velha do Monte Pascoal e corrigiu também os limites do território, que passou a possuir 52.748 hectares, os quais incluem a demarcação anterior.
Apesar da vitória dos Pataxó, um grupo de fazendeiros e o Sindicato Rural de Porto Seguro tentaram anular a demarcação na Justiça quatro anos depois, em 2013. Eles ingressaram com seis mandados de segurança no Supremo Tribunal de Justiça (STJ), solicitando que a Corte impedisse a publicação da Portaria Declaratória da área pelo Ministério da Justiça – etapa seguinte do processo demarcatório. No mesmo ano, o STJ atendeu de forma liminar ao pedido, barrando o andamento do processo administrativo do território Pataxó.
Mas, em 2019, depois de admitir os indígenas como parte do processo, a Primeira Seção do STJ derrubou a liminar, por unanimidade, e reconheceu, em decisão de mérito, a legitimidade e a validade da demarcação da TI Barra Velha do Monte Pascoal.
Para se opor ao reconhecimento do território Pataxó, os ruralistas se basearam na tese do marco temporal – sobre a qual o Supremo Tribunal Federal (STF) se posicionará num julgamento de repercussão geral – e também em uma das condicionantes do caso Raposa Serra do Sol, que impede a “ampliação” de terras indígenas.
Para Rafael Modesto, assessor jurídico do Cimi, é preciso fazer a “aplicação imediata do texto constitucional, baseada na tese do indigenato”.
“Existe um cenário de intensa violência e que, sem dúvida, está relacionado com a disputa pela terra e com o processo de demarcação, que aguarda a publicação da Portaria Declaratória do Ministro da Justiça. Nós [Cimi] defendemos a inconstitucionalidade do marco temporal e a aplicação imediata do texto constitucional do indigenato, que é um direito declarado e inato dos povos indígenas”, afirmou Modesto.
“Existe um cenário de intensa violência e que, sem dúvida, está relacionado com a disputa pela terra e com o processo de demarcação”
Mas uma reportagem publicada pelo Cimi, em agosto de 2020, mostrou que a demarcação da TI Barra Velha do Monte Pascoal ainda está “emperrada”. Em cinco das seis ações movidas contra a demarcação do território Pataxó, os fazendeiros recorreram ao STF, onde os recursos ainda tramitam. Por outro lado, a decisão do STJ derrubou qualquer impedimento para a publicação da Portaria Declaratória da terra indígena pelo Ministério da Justiça.
Avanço de empreendimentos
Infelizmente, o movimento dos ruralistas para tomar parte da terra indígena Pataxó é apenas um pedaço do iceberg. Além da pecuária, o avanço dos setores imobiliário, hoteleiro e a prática ilegal de arrendamento dentro do território tiram o sono dos indígenas. Ao Cimi, a mesma liderança mencionada no início desta reportagem falou sobre esse contexto, que inclui diversas ameaças de morte e perseguições.
“Hoje a Terra Indígena Barra Velha desperta muitos interesses de ruralistas, hotelarias, do próprio órgão ambiental do Parque Nacional do Monte Pascoal, da área de preservação de Abrolhos, entre outros. O município de Porto Seguro alega que as aldeias indígenas não geram economia, e mostram que, além de equivocados, esses políticos partidários só pensam no capital”, lamentou.
Segundo a liderança, entre 2000 e 2010, começou a expansão da Vila de Caraíva – localizada próxima ao território Pataxó – e, como consequência, aumentaram as perseguições e ameaças contra os indígenas.
“Hoje tem empresa, funcionário da prefeitura, filho de político, advogados, funcionário de município de Porto Seguro, tem bandido e até traficante com área comprada no nosso território. E a gente não pode nem sair de casa direito, porque estamos constantemente ameaçados de morte”, desabafou.
“A gente não pode nem sair de casa direito, porque estamos constantemente ameaçados de morte”
Ao Cimi, a liderança também denunciou que os indígenas estão sendo iludidos por pessoas interessadas em comprar áreas dentro da TI Barra Velha. “Já chegaram a me oferecer R$ 5 milhões pelo meu terreno. E eu falei que esse dinheiro não me pertencia. Disse ‘esse dinheiro é seu e a terra é minha’. Não tem dinheiro que faça eu abrir mão da minha terra. Mas tem indígena que cai nessa ilusão”.
Ela conta que a venda de terrenos dentro do território –expressamente proibida pela Constituição Federal – começou por meio de uma liderança de outra aldeia. “Havia um cacique na Aldeia Xandó que não aceitava a venda de nossas terras, mas tiraram ele por isso. Colocaram, então, outro cacique no lugar dele, que estava ao lado das imobiliárias e grileiros. Foi então que começaram as vendas de terras. Agora sempre tem empresários e corretores de imóvel por aqui. Gente branca vendendo para outras pessoas brancas”.
“Sempre tem empresários e corretores de imóvel por aqui [Aldeia Xandó]. Gente branca vendendo para outras pessoas brancas”
Atenção: venda ilegal de terreno
A política da “boiada livre” de Jair Bolsonaro continua gerando profundas cicatrizes nos povos indígenas de todo o país. Durante a campanha eleitoral, em 2018, Bolsonaro falou que “não iria “demarcar um centímetro de terra indígena” caso assumisse a presidência. E ele não só está cumprindo com a promessa, como também incentiva práticas ilegais dentro dos territórios – entre elas, o arrendamento.
Exemplo disso é o que ocorreu em fevereiro de 2021: a Funai e o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), sob ordem do governo federal, expediram a Instrução Normativa 01/2021, medida que autoriza a “parceria” entre indígena e não-indígenas para a exploração econômica dos territórios. A norma foi autorizada sem o consentimento e a Consulta Livre, Prévia e Informada aos povos, como prevê a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT).
Esse tipo de ação normativa gera insegurança jurídica e social e também fere direitos garantidos pela Constituição Federal de 1988, como os artigos 231 e 232, que garantem aos indígenas o direito à cidadania, a viver em seus territórios, à sua cultura e ao usufruto exclusivo de suas terras.
E, lamentavelmente, há indígenas envolvidos com esse tipo de prática dentro da TI Barra Velha. Durante a construção desta reportagem, o Cimi recebeu a denúncia de que há indígenas arrendando e, até mesmo, vendendo terrenos na faixa de R$ 1 milhão a R$ 1,5 milhão.
“Há muitos indígenas envolvidos com o arrendamento. Junto com os grileiros de terras, fazem dois documentos. Um de arrendamento e outro de compra e vendas. Fazem isso, porque, se houver fiscalização, os grileiros falam que não é deles. Falam que é arrendado, que é do índio”.
“Se houver fiscalização, os grileiros falam que não é deles. Falam que é arrendado, que é do índio”
Na mesma denúncia, a liderança disse que há casos em que indígenas são escravizados por pessoas que compram áreas dentro da terra Pataxó. “Estão pegando os indígenas e fazendo de escravo. Colocam para tirar as madeiras do parque para fazer cerca e casa que estão comprando dentro do nosso território”.
Outra situação grave que ocorre é o aliciamento de jovens indígenas para a venda dos terrenos. Em alguns casos, as áreas da terra indígena são vendidas e, posteriormente, trocadas por quadriciclos, aparelhos celulares modernos, entre outros bens materiais.
De acordo com a liderança, a Funai vem agindo com omissão perante o cenário e disse que até servidores indígenas do órgão já fizeram venda de terrenos, localizados na “beira na praia”.
Em junho do ano passado, o povo Pataxó, da Aldeia Mãe Barra Velha, protocolou uma representação no Ministério Público Federal, em Brasília, sobre esse contexto. Mas, até o momento, não obtiveram retorno do órgão.
“As terras estão sendo anunciadas e vendidas ilegalmente por grileiros e estelionatários que oferecem valores expressivos em dinheiro para os indígenas. Há relatos também de envolvimento de alguns indígenas nas vendas ilegais de terras”, diz um trecho do documento.
“As terras estão sendo anunciadas e vendidas ilegalmente por grileiros e estelionatários que oferecem valores expressivos em dinheiro para os indígenas”
A situação de conflito territorial foi agravada pela Instrução Normativa 09, medida da Funai que liberou a certificação de propriedades privadas sobre terras indígenas não homologadas. Levantamento do Cimi identificou que, entre a publicação da normativa, em abril de 2020, e agosto do mesmo ano, 41 propriedades, com um total de 9.148 hectares, haviam sido certificadas sobre a TI Barra Velha do Monte Pascoal.
Em março de 2021, os efeitos da normativa foram suspensos na Bahia pela Justiça Federal, após ação do Ministério Público Federal (MPF). A decisão, contudo, não anulou as certificações sobre a terra indígena, permitindo que essas propriedades venham a ser apresentadas como legítimas em negociações.
Terra indígena na internet
Após as denúncias, o Cimi foi atrás de anúncios em uma plataforma de vendas e encontrou dois terrenos supostamente localizados na Aldeia Xandó. Um deles, inclusive, chama a aldeia de “Bairro Xandó”.
“Ótimo terreno, localizado no Bairro Xandó, em Caraíva, Porto Seguro (BA). Muito bem localizado, há 2km da igreja e a 400 metros da praia. Gostou do terreno? Entre já em contato conosco! Agende já sua visita, não deixe para amanhã o que você pode fazer hoje”, diz o anúncio.
Nós entramos em contato com a imobiliária responsável por esse anúncio e confirmamos que a área está realmente na Aldeia Xandó, que fica na TI Barra Velha. As terras indígenas são propriedade da União e a Constituição Federal proíbe expressamente a venda de qualquer parte desses territórios, destinados ao usufruto exclusivo dos povos indígenas.
Outra publicação, no mesmo site de vendas, fala que o local é “bem sossegado” e com “poucos vizinhos”. “Vendo terreno/lote localizado no Xandó, em Trancoso (BA). Está em um condomínio com poucos vizinhos. Com água, luz, energia e matrícula para construir. É um lugar bem sossegado, com vegetação”. Neste caso, a responsável pelo anúncio negou que a o terreno esteja dentro da área indígena.
Recebemos também a denúncia de que pessoas estão, por meio de redes sociais, pedindo para trocar carros por terrenos na Aldeia Xandó.
“Gente, vocês aí no Xandó. Tenho esse carro, troco em um terreno aí. Quem tiver interessado me chama. É diesel, pega seis pessoas, meus amigos. Se vocês souberem quem tem terreno, me fala aí”, diz o texto de uma publicação.
“Gente, vocês aí no Xandó. Tenho esse carro, troco em um terreno aí. Quem tiver interessado me chama”
Logo abaixo da postagem, nos comentários, outra pessoa fala que “sabe que há terreno no local” e disponibiliza um telefone para contato.