Em sua XXIV Assembleia, Cimi reafirma o compromisso com a causa indígena e sua posição contra todas as estratégias que roubam, mentem, expropriam e devastam os territórios
Realizada de 11 a 14 de outubro, em formato virtual, a Assembleia Geral do Cimi chega ao fim com prioridades definidas e divulga documento final
Celebrando a ação missionária nos seus quase 50 anos de caminhada ao lado dos povos indígenas, o Conselho Indigenista Missionário (Cimi) realizou sua XXIV Assembleia Geral entre os dias 11 a 14 de outubro, desse ano. Com o tema “Rumo aos 50 anos” e o lema “História e Resistência em Defesa da Causa Indígena”, o encontro foi realizado por meio de videoconferência, devido à pandemia da covid-19.
Fazendo resistência, permanecendo junto aos povos originários nos caminhos do Bem Viver, ao longo dos quatro dias missionários, missionárias, lideranças indígenas, representantes da igreja Católica, assessores, organizações aliadas e apoiadores, participaram dos debates, trabalhos em grupo, místicas e espiritualidade da Assembleia. No encontro, que é realizado de dois em dois anos, são realizadas reflexões sobre o contexto político, indigenista e eclesial em que o Cimi está inserido.
“Realizada de dois em dois anos, as Assembleias são espaços de reflexões sobre o contexto político, indigenista e eclesial em que o Cimi está inserido”
A XXIV Assembleia homenageou seus missionários mais antigos, aqueles como lembrou, em versos, Meire Diniz, do Cimi Regional Maranhão: “Missionários a pé, de mochilas nas costas; Com desprendimento e vocação; Percorriam os caminhos até as aldeias; Cumprindo a sua missão; De articular os povos indígenas”. Sem deixar de acolher aqueles e aquelas que assumem a causa indígena como a causa de suas vidas e caminhada. Com muita mística e espiritualidade, foi realizado o envio dos missionários e missionárias à missão que o Cimi assume desde 1972, quando nasceu”.
Ao lembrar de suas origens, a XXIV Assembleia Geral do Cimi fez memória há alguns dos seus fundadores, que permitiram conduzir a pequena canoa do Cimi pelas ondas agitadas da época: a perspicácia política de D. Tomas Balduino e a atuação profético-espiritual de D. Pedro Casaldáliga. Também trouxe seus mártires, que seguem inspirando as lutas da entidade junto aos povos, entre eles Geraldo Alkmin, sementes teimosas que seguem germinando e esparramando seus frutos. “Recordar é fazer passar pelo coração novamente”, destacou Lígia Farias, do Cimi Regional Mato Grosso do Sul.
“Recordar é fazer passar pelo coração novamente”
Com objetivo de dar continuidade à sua missão de apoiar a luta dos povos indígenas, no último dia do encontro, 14, o Cimi publicou o Documento Final da XXIV Assembleia Geral, o qual, além de celebrar as formas de resistência histórica e atual dos povos indígenas, também reverencia as plurais expressões dos movimentos, territorializados em práticas e em cosmovisões dos diferentes povos e comunidades, articulados em eventos e mobilizações nos espaços públicos – da Constituinte, em 1987 e 1988, ao Levante pela Terra e pela Vida, em 2021. Bem como, a presença de homens e mulheres indígenas mobilizados ao longo de meses, afirmando direitos conquistados, dizendo não ao marco temporal, ao PL490 e às investidas contra seus territórios.
O Cimi denuncia, “mais uma vez, a força viciada do paradigma hegemônico do crescimento e da aceleração, naturalizado como sendo o único modo possível de projetar nosso futuro”, consta no Documento Final, que ainda traz um alerta. “O crescimento é um negócio rentável que ameaça a natureza, as gerações futuras, os povos indígenas, a saúde dos consumidores, as condições de trabalho dos assalariados, a existência de uma legião de seres humanos empobrecidos, dos quais se rouba um outro futuro possível”.
“Cimi denuncia a força viciada do paradigma hegemônico do crescimento e da aceleração, naturalizado como sendo o único modo possível de projetar nosso futuro”
A entidade faz críticas também à antipolítica do governo brasileiro, operacionalizada na atuação do órgão indigenista oficial, e à Fundação Nacional do Índio (Funai), que se tornou uma espécie de agência reguladora de negócios, sendo esvaziada de suas responsabilidades em demarcar e proteger territórios originários, como também acompanhar demandas processuais envolvendo direitos individuais e coletivos indígenas, lista o documento final da XXIV Assembleia Geral da entidade.
Além disso, o Cimi faz um alerta sobre a contaminação das águas, a insegurança territorial gerada pela suspensão das demarcações, pelo incentivo às invasões, pelas medidas administrativas de concessão de terras para exploração madeireira e garimpeira, para especulação imobiliária, grilagem, criação de gado, bem como pelo conjunto de iniciativas dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário que visam restringir garantias constitucionais das comunidades e povos originários.
“A entidade faz críticas também à antipolítica do governo brasileiro, operacionalizada na atuação do órgão indigenista oficial, e à Funai”
“Ao celebrar seus quase 50 anos, o Cimi reafirma seu compromisso com a causa indígena, assim como seu firme posicionamento contra todas as estratégias acionadas para roubar, mentir, expropriar e devastar os territórios dos povos e comunidades”, destacou a entidade ao deliberar sobre suas prioridades de ação para o próximo período, que são: terra, água e território; defesa da Constituição Federal de 1988, com particular atenção à defesa dos direitos originários dos povos indígenas; e apoio aos povos e comunidades que vivem em contextos urbanos.
Com a força da afirmação de Elisa Pankararu durante a Assembleia, “o território é nosso corpo e nosso espírito”, as lutas indígenas nos recordam que a vida em plenitude é tarefa colaborativa que se cumpre com os outros, com os direitos da natureza e com a Terra-Mãe, esse corpo vivo que nutre, restabelece, faz germinar e frutificar distintas formas de vida, afirma o Cimi.
“Ao celebrar seus quase 50 anos, o Cimi reafirma seu compromisso com a causa indígena”
A XXIV Assembleia Geral também apresentou suas congratulações à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) pelos seus 69 anos de existência, completados no dia 14 de outubro de 2021. “Nossos agradecimentos a cada uma e cada um que passaram pela CNBB durante essas quase sete décadas, dedicando seus relevantes serviços, na opção pelos mais pobres, principalmente pelo apoio dedicado à causa indígena. Sobretudo nos tempos que vivenciamos atualmente, em que os direitos, não só dos indígenas, mas de toda a população brasileira vêm sendo violados e retirados, a atuação da CNBB tem sido fundamental na defesa aos irmãos e irmãs mais fragilizados”, destacou o secretário-executivo do Cimi, Antônio Eduardo Cerqueira de Oliveira.
“Nossos agradecimentos a cada uma e cada um que passaram pela CNBB, dedicando seus serviços, na opção pelos mais pobres e à causa indígena”
Confira o Documento Final da XXIV Assembleia Geral do Cimi em anexo, ou baixe o arquivo em PDF aqui.
Documento Final da XXIV Assembleia Geral do Cimi
Realizou-se, nos dias 11 a 14 de outubro de 2021, a XXIV Assembleia Geral do Conselho Indigenista Missionário – Cimi, com o tema “Rumo aos 50 anos” e o lema “História e Resistência em Defesa da Causa Indígena”. A assembleia, que em razão da pandemia da Covid-19 ocorreu virtualmente, celebrou a ação missionária do Cimi, nos seus quase 50 anos de caminhada ao lado dos povos indígenas.
O contexto da ditadura militar de 1972, quando o Cimi nasceu, não inspirava muita esperança para uma pastoral em defesa dos povos indígenas. No mesmo ano de 1972 foi inaugurada a rodovia Transamazônica (BR-230), oficialmente celebrada como símbolo do desenvolvimento e do “milagre brasileiro”, mas que na realidade invadiu e destruiu 29 territórios indígenas.
O Cimi, que é filho do Concílio Vaticano II, nasceu na véspera da denúncia de uma “Biafra brasileira”, no Vale do Guaporé, onde toda a população Nambikwara menor de 15 anos morreu de sarampo. O reordenamento da atividade missionária pelo Vaticano II e a fúria desenvolvimentista obrigaram o Cimi, desde seu nascimento, a assumir a sua missão como uma pastoral profética de denúncia e radical compromisso com a defesa da vida em todas as suas dimensões.
Desde sua primeira Assembleia Geral, em 1975, o Cimi assumiu seis prioridades que, até nossos dias, orientam sua atuação. São elas: Terra; Cultura; Autodeterminação; Encarnação/inculturação como descolonização das práticas pastorais; Conscientização; Pastoral Global como pastoral indigenista específica, integral, contextual, universal, libertadora.
Ao lembrar as origens da entidade, a XXIV Assembleia fez memória dos dons de alguns dos seus fundadores, missionarias e missionários, leigas e leigos, religiosas e religiosos – que permitiram conduzir a pequena canoa do Cimi pelas ondas agitadas da época: a perspicácia política de D. Tomas Balduino e a atuação profético-espiritual de D. Pedro Casaldáliga. A presença dos dois simbolizava a unidade das duas dimensões da missão, como mais tarde Aparecida (2007) afirma: “Toda autêntica missão unifica a preocupação pela dimensão transcendente do ser humano e por todas as suas necessidades concretas” (DAp 176), ou como Elisa Pankararu disse em nossa Assembleia: “O território é nosso corpo e nosso espírito”. Ainda um ano antes de sua Primeira Assembleia Nacional, em plena ditadura militar, o Cimi apoiou, em 1974, junto com a Missão Anchieta, em Diamantino (MT), a realização da Primeira Assembleia de Lideranças Indígenas. Era o início das articulações em conjunto do movimento indígena.
Desde aquela época celebram-se as formas de resistência histórica e atual dos povos indígenas. O Cimi reverencia, de modo especial, as plurais expressões dos movimentos, territorializados em práticas e em cosmovisões dos diferentes povos e comunidades, articulados em eventos e mobilizações nos espaços públicos – da Constituinte, em 1987 e 1988, ao Levante pela Terra e pela Vida, em 2021. A presença de homens e mulheres indígenas mobilizados ao longo de meses, afirmando direitos conquistados, dizendo não ao marco temporal, ao Projeto de Lei (PL) 490/2007 e às investidas contra seus territórios são, no presente, o vicejar da esperança.
Celebram-se também as múltiplas formas de resistência das mulheres indígenas, por meio das quais se restitui a dimensão do cuidado e do respeito à Terra-Mãe, bem como dos jovens que, em diferentes contextos, fazem ressoar as palavras de sabedoria de seus povos e reivindicam representatividade e garantia de direitos. As lutas por terra e pelo Bem Viver na “sobriedade feliz” (LS 224) são protagonizadas pelos povos indígenas, por quilombolas e demais comunidades tradicionais e originárias. Elas indicam também uma dinâmica da esperança, que se concretiza e se alimenta na força espiritual, na palavra que ressoa no ritual, no canto, na dança, nas formas próprias de educar, na participação, na reciprocidade cotidiana que tem por base um território.
As lutas indígenas nos recordam que a vida em plenitude é tarefa colaborativa que se cumpre com os outros, com os direitos da natureza e com a Terra-Mãe, esse corpo vivo que nutre, restabelece, faz germinar e frutificar distintas formas de vida. É preciso proteger a terra para assegurar a vida para todos, rompendo as molduras dentro das quais os governos colocaram os povos indígenas – a moldura da tutela, da desterritorialização, da integração, do exotismo, do primitivismo, da banalização das ciências e conhecimentos ancestrais.
Denuncia-se, mais uma vez, a força viciada do paradigma hegemônico do crescimento e da aceleração, naturalizado como sendo o único modo possível de projetar nosso futuro. O crescimento é um negócio rentável que ameaça a natureza, as gerações futuras, os povos indígenas, a saúde dos consumidores, as condições de trabalho dos assalariados, a existência de uma legião de seres humanos empobrecidos, dos quais se rouba um outro futuro possível. A defesa da terra, do meio ambiente, da biosfera, das formas de viver que não se alinham ao modelo do capitalismo acelerado é um imperativo evangélico. Na Exortação Apostólica Evangelii Gaudium, o Papa Francisco conclama-nos à “santa ousadia de buscar novos caminhos” (EG 288) e pergunta: Por que esperamos nós? (EG 120).
Há, neste período, graves e profundas ameaças aos modos de ser e viver dos povos indígenas, notadamente de natureza sanitária, nutricional, territorial e jurídica. A escassez alimentar é uma realidade angustiante, especialmente nas regiões Sul, Sudeste, Centro-Oeste e Nordeste, onde foram intensos, sistemáticos e efetivos os processos de desterritorialização dos povos indígenas. Sem acesso à terra ou por viverem em áreas degradadas, muitas famílias indígenas não têm de onde retirar seu próprio sustento e dependem de políticas assistenciais. Estas, no entanto, foram abolidas pelo governo federal, em tempos de pandemia, submetendo-os a vulnerabilidade social, que compromete a vida de milhares de pessoas. A insegurança marca também as vidas indígenas em contextos urbanos e convoca a uma ação concreta e urgente.
O Cimi denuncia a antipolítica do governo brasileiro, operacionalizada na atuação do órgão indigenista oficial, a Fundação Nacional do Índio (Funai), que se tornou uma espécie de agência reguladora de negócios, sendo esvaziada de suas responsabilidades em demarcar e proteger territórios originários, como também acompanhar demandas processuais envolvendo direitos individuais e coletivos indígenas.
As culturas, os costumes, as tradições e os projetos de futuro dos povos indígenas do Brasil estão sob ameaça em todas as regiões brasileiras: milhares de invasores garimpeiros devastam as terras Yanomami (RR) e Munduruku (PA) e destroem o ambiente e todos os mananciais hídricos; madeireiros invadem territórios ancestrais e consomem florestas em Rondônia, Acre, Amazonas, Pará e Mato Grosso; agentes do capitalismo financeiro investem sobre as comunidades e territórios, buscando expandir os mercados do crédito de carbono e capitalizar as florestas, propondo falsas soluções para a crise climática e ecológica.
Neste quadro estarrecedor, promovem-se violações aos corpos indígenas, o que contribui também para a dramática realidade do suicídio, especialmente entre jovens. Ampliam-se as formas de perseguição e assassinatos de lutadores e lutadoras que defendem os territórios, como os Guardiões da Floresta, no Maranhão, e outros movimentos locais de resistência. Há um genocídio programado em curso no país, que afeta crianças, jovens, anciãos, mulheres e homens que resistem há séculos aos modelos coloniais, exploratórios e integracionistas implementados pelo Estado. Genocídio que põe em risco também os mais de 115 povos livres, estes que resistem às investidas contra seus espaços de vida e permanecem em isolamento na Amazônia brasileira.
O Cimi denuncia a contaminação das águas, a exemplo do que pode ocorrer com a usina nuclear no Rio São Francisco, o grande Opara -, a insegurança territorial gerada pela suspensão das demarcações, pelo incentivo às invasões, pelas medidas administrativas de concessão de terras para exploração madeireira e garimpeira, para especulação imobiliária, grilagem, criação de gado, bem como pelo conjunto de iniciativas dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário que visam restringir garantias constitucionais das comunidades e povos originários.
Ao celebrar seus quase 50 anos, o Cimi reafirma seu compromisso com a causa indígena, assim como seu firme posicionamento contra todas as estratégias acionadas para roubar, mentir, expropriar e devastar os territórios dos povos e comunidades.
A causa indígena é de todos nós e integra as lutas por justiça e dignidade em todas as suas expressões, juntando forças com os quilombolas e demais comunidades tradicionais, as lutas dos pobres por comida, dos refugiados por um espaço de paz, dos operários por trabalho e dos excluídos por participação.
Seguem atuais as prioridades de ação definidas na XXIII Assembleia Geral do Cimi, reafirmadas e reiteradas em nossa XXIV Assembleia Geral, que são: terra, água e território; defesa da Constituição Federal de 1988, com particular atenção à defesa dos direitos originários dos povos indígenas; e apoio aos povos e comunidades que vivem em contextos urbanos.
O Cimi, nas celebrações de seus 50 anos de existência, recorda, de Sepé Tiaraju, o grito de ousadia e resistência “Alto lá! Esta terra tem dono”. Somos conclamados, todos e todas, a seguirmos lutando e construindo caminhos do Bem Viver, que se concretizam no protagonismo frente as mudanças climáticas, na autonomia e na autodeterminação dos povos dentro de seus territórios.
Diga ao povo que avance! Avançaremos!
Brasília, 14 de outubro de 2021.