14/09/2021

Alta comissária da ONU manifesta “grande preocupação” com ameaças aos povos e territórios indígenas no Brasil

Na abertura do Conselho de Direitos Humanos da ONU, Michelle Bachelet chamou atenção para ataques e medidas voltadas a “legalizar a entrada de empresas” em terras indígenas

Povos indígenas estão em uma intensa mobilização em defesa de seus direitos. Manifestação durante o acampamento "Luta pela Vida", em Brasília. Foto: Marina Oliveira/Cimi

Povos indígenas estão em uma intensa mobilização em defesa de seus direitos. Manifestação durante o acampamento “Luta pela Vida”, em Brasília. Foto: Marina Oliveira/Cimi

Por Tiago Miotto, da Assessoria de Comunicação do Cimi

A alta comissária para Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU), Michelle Bachelet, manifestou “grande preocupação” com a violência contra os povos indígenas no Brasil e com as tentativas de “legalizar a entrada de empresas em territórios indígenas” e limitar as demarcações de terras dos povos originários. A fala de Bachelet ocorreu durante a abertura da 48ª sessão do Conselho de Direitos Humanos da ONU, nesta segunda-feira (13).

“No Brasil, estou alarmada com os recentes ataques contra membros dos povos Yanomami e Munduruku por garimpeiros ilegais na Amazônia. Tentativas de legalizar a entrada de empresas em territórios indígenas, e limitar a demarcação de terras indígenas – notadamente através de um projeto de lei que está sob análise na Câmara dos Deputados – também são motivo de grande preocupação”, afirmou a alta comissária.

Ela também pediu ao Brasil que reverta “políticas que afetam negativamente os povos indígenas” e que não abandone a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), a Convenção dos Povos Indígenas e Tribais.

A Convenção 169 da OIT, da qual o Brasil é signatário, é um dos principais mecanismos internacionais voltados à proteção dos direitos indígenas e assegura, entre outras importantes garantias, o direito dos povos originários ao consentimentoda acerca de qualquer medida ou projeto que afete direta ou indiretamente suas vidas e territórios.

O Projeto de Decreto Legislativo (PDL) 177/2021, que tramita na Câmara dos Deputados e é de autoria do ruralista Alceu Moreira (MDB-RS), autoriza que presidente da República “denuncie” – ou seja, abandone – a Convenção 169, criticada por ruralistas e sistematicamente violada pelo próprio governo federal.

Além das referências à situação específicas dos povos indígenas, Bachelet também manifestou preocupação com a “nova proposta de legislação antiterrorista no Brasil que inclui disposições excessivamente vagas e amplas que apresentam riscos de abusos, particularmente contra ativistas sociais e defensores dos direitos humanos”.

“A alta comissária faz um discurso sobre a atualização de direitos humanos geral no mundo”, explica Paulo Lugon Arantes, assessor internacional do Conselho Indigenista Missionário – Cimi. “O fato de ela ter individualizado o Brasil nesse discurso é grave”.

“Tentativas de legalizar a entrada de empresas em territórios indígenas, e limitar a demarcação de terras indígenas – notadamente através de um projeto de lei que está sob análise na Câmara dos Deputados – também são motivo de grande preocupação”

Manifestação durante a II Marcha Nacional das Mulheres Indígenas, que reuniu mais 5 mil indígenas em Brasília, no dia 10 de setembro de 2021. Foto: Hellen Loures/Cimi

Manifestação durante a II Marcha Nacional das Mulheres Indígenas, que reuniu mais 5 mil indígenas em Brasília, no dia 10 de setembro de 2021. Foto: Hellen Loures/Cimi

Resposta do Brasil

O Brasil foi citado junto a cerca de 40 países cuja situação em relação à violação de direitos humanos é considerada “preocupante” pela alta comissária da ONU. Na terça-feira (14), o governo Bolsonaro, por meio do Ministério das Relações Exteriores, respondeu ao pronunciamento de Bachelet, afirmando que “a proteção dos direitos nativos dos povos indígenas é um elemento fundamental da ordem constitucional do Brasil”.

Apesar da afirmação, o governo Bolsonaro vem mantendo sua promessa de campanha de não demarcar “nenhum centímetro de terra indígena”, contrariando o que determina a Constituição Federal.

O presidente também tem se manifestado de forma frequente, inclusive com uso de informações falsas, a favor da tese do marco temporal, proposta anti-indígena sob análise do Supremo Tribunal Federal (STF).

O governo federal também afirmou que “pelo menos seis operações foram realizadas pela Polícia Federal e outros órgãos competentes para combater atividades ilegais nas terras dos povos Yanomami e Munduruku”.

Apesar disso, os Yanomami seguem denunciando a presença de mais de 20 mil garimpeiros no interior da Terra Indígena (TI) Yanomami, em Roraima e no Amazonas, e os Munduruku também continuam a denunciar a pressão de garimpeiros ilegais que atuam em seu território e a sofrer com a contaminação de seus rios por mercúrio.

De autoria do governo Bolsonaro, o Projeto de Lei (PL) 191/2020, que pretende legalizar o garimpo e a mineração dentro das terras indígenas, ainda tramita na Câmara dos Deputados, apesar das inúmeras manifestações contrárias dos povos indígenas. O governo também tem atuado, segundo o Observatório de Mineração, no sentido de oferecer a exploração de minério dentro de terras indígenas do Brasil a grandes investidores internacionais.

Segundo o relatório divulgado pela Global Witness nesta segunda-feira (13), o Brasil é o quarto país que mais matou ativistas ligados à defesa do meio ambiente em 2020, o que corrobora as preocupações elencadas pela comissária.

A 48ª Sessão do Conselho de Direitos Humanos da ONU ocorre entre os dias 13 de setembro e 8 de outubro, e trará ainda outros momentos de discussão específica sobre os direitos dos povos indígenas.

 

Alerta de atrocidades contra indígenas

No dia 25 de agosto, o Comitê da ONU contra a Discriminação Racial (CERD) notificou o Estado brasileiro por meio do seu mecanismo de alerta de atrocidades, chamando atenção para os “impactos dramáticos” da pandemia da covid-19 sobre as populações indígenas, em particular no estado do Amazonas, e para a violência contra a população negra.

O Comitê demonstrou preocupação sobre o fato de o governo estar difundindo “informações contraditórias” acerca das medidas de saúde pública para conter a pandemia, “resultando no enfraquecimento da adesão da população às recomendações baseadas em evidência científica”.

Após relatar as informações recebidas acerca da negligência do governo federal no atendimento aos povos indígenas durante a pandemia, especialmente em relação às populações indígenas vivendo em áreas urbanas ou terras em processo de demarcação, o CERD pediu ao Brasil explicações sobre as medidas adotadas para o atendimento, a proteção e a vacinação destes povos.

O Comitê também questiona o país sobre as ações voltadas a “incluir e consultar” os povos indígenas no processo de tomada de decisões acerca das medidas de prevenção e combate ao coronavírus no país.

A notificação se estende aos casos de ineficiência das políticas de saúde e negligência de hospitais onde habitam significativas populações indígenas, expondo a situação de falta de suprimento de oxigênio, o que exacerbou a taxa de mortalidade entre povos indígenas.

Além disso, o CERD também informa que tomou conhecimento de que o governo não elaborou recomendações específicas para o sepultamentos e rituais indígenas, levando ao desrespeito das culturas tradicionais indígenas, e até mesmo sepultamento sem a autorização das famílias. O documento cita as informações recebidas acerca de casos em que a identidade indígena dos falecidos foi negada nos registros de óbitos, o que teria contribuído para uma subnotificação das mortes indígenas.

O procedimento de alerta de atrocidades tem uma base jurídica vinculante, que é a Convenção da ONU contra todas as formas de Discriminação Racial (ICERD), ratificada pelo Brasil em 8 de dezembro de 1969. Desta forma, o cumprimento por parte do Brasil é obrigatório, explica Arantes.

“Este procedimento funciona desde 1994, como esforço das Nações Unidas como um todo, a fim de lançar alertas em situações de iminência de conflitos, em contextos que incluam discurso de ódio, padrões persistentes de racismo estrutural, incitação ao ódio racial e intolerância, dentre outros indicadores”, prossegue o assessor.

“Caso a resposta do Estado não seja considerada satistafória pelo Comitê, ele pode acionar instâncias mais graves, como o Escritório da ONU de Prevenção de Genocídio, em Nova York, ensejando, por exemplo, as consequências do regime da Responsabilidade de Proteger [RtP] ou responsabilização criminal ante a Corte Penal Internacional em Haia”, analisa Arantes.

O atual procedimento do CERD iniciou com uma petição apresentada pelo Cimi, pela Franciscans International, pela Faculdade de Direito da Unisinos e pela Clínica de Direito da Cardozo Law School.

Em junho de 2021, a Conselheira Especial da Organização das Nações Unidas (ONU) para a Prevenção do Genocídio, Wairimu Nderitu, já havia alertado o Brasil sobre o risco de atrocidades contra os povos indígenas no país.

 

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