Em audiência no STF, indígenas Xokleng buscam resolução de conflito com agricultores
Audiência foi convocada e conduzida pelo ministro Edson Fachin, relator de processo que questiona demarcação da TI Ibirama-La Klãnõ
Na tarde de segunda-feira (29), lideranças do povo Xokleng, de Santa Catarina, participaram de uma audiência de conciliação realizada pelo ministro Edson Fachin no Supremo Tribunal Federal (STF). A audiência buscou estabelecer diálogo entre as partes envolvidas na Ação Cível Originária (ACO) 1100, em que agricultores e madeireiras questionam a demarcação da Terra Indígena (TI) Ibirama-La Klãnõ.
Os agricultores questionam a portaria declaratória que foi emitida pelo Ministério da Justiça em 2003 e redefiniu os limites da área, devolvendo aos indígenas parte de seu território esbulhado ao longo do século passado. Com a revisão dos limites, a terra indígena passaria de cerca de 14 mil hectares para aproximadamente 37 mil.
Indígenas da região sul lotaram o plenário da 1ª Turma do STF, onde transcorreu a audiência. Dada a consistência dos relatórios, laudos e documentos que comprovam a tradicionalidade da ocupação da área em disputa pelo povo Xokleng, boa parte do debate girou em torno da responsabilidade pela reparação dos erros cometidos contra indígenas e agricultores no passado, quando o estado de Santa Catarina concedeu às famílias de colonos títulos sobre a terra que era ocupada pelos indígenas e, portanto, pertencia à União.
Os desdobramentos da audiência deram aos indígenas esperança de resolução do conflito que se arrasta há décadas. “Estamos buscando o diálogo, buscando a Justiça. Confiamos no STF para que devolva a nossa terra, respeitando os colonos, respeitando as pessoas trabalhadoras, mas devolvendo nossa terra tradicional, onde sempre vivemos”, afirma Brasílio Priprá, liderança do povo Xokleng que representou os indígenas na audiência.
Além dos indígenas, agricultores e representantes da madeireira, também participaram da audiência representantes de órgãos federais e estaduais. Também estiveram presentes as ministras do STF Rosa Weber e Carmen Lúcia, acompanhando o relator do caso e condutor da atividade, ministro Edson Fachin.
“O que nós buscamos aqui é a nossa terra tradicional. Não somos contra os colonos e nem as empresas, entendemos que são pessoas trabalhadoras. Mas não vamos abrir mão de um centímetro de nossa terra”
O papel do estado
O conflito atual envolvendo o povo Xokleng resulta de uma sucessão de erros e da omissão de agentes estatais. Desde a guerra declarada contra eles – chamados então de “botocudos” –em 1808 por Dom João VI até a ação genocida dos “bugreiros”, os Xokleng passaram por uma longa trajetória de perseguição e massacre. O contato e atração, em 1914, pelo Serviço de Proteção ao Índio (SPI) ocasionou uma nova tragédia, com centenas de indígenas mortos em decorrência das doenças transmitidas pelos brancos. Por fim, a terra assegurada a eles pelos “pacificadores” na época do contato foi sendo sucessivamente reduzida, até chegar à diminuta extensão de 14 mil hectares.
Na ACO 1100, os agricultores reivindicam que, caso se verifique que a demarcação da TI Ibirama-La Klãnõ é legítima e não pode ser anulada, suas famílias sejam indenizadas pelos erros cometidos pelo estado catarinense e pela União. Esse ponto foi, inclusive, apresentado pelos indígenas na proposta de diálogo que norteou a audiência.
“O que nós buscamos aqui é a nossa terra tradicional. Não somos contra os colonos e nem as empresas, entendemos que são pessoas trabalhadoras. Mas não vamos abrir mão de um centímetro de nossa terra”, afirmou Priprá ao ministro Fachin, durante o debate.
“Com todo o respeito à comunidade indígena, eles estão no direito deles, mas os agricultores não podem ser os vilões dessa história”, afirmou um dos agricultores presentes na audiência. “Foi um grande equívoco do Estado na época, e dos governantes da época, e hoje o Estado tem que assumir essa responsabilidade”.
Enquanto representantes do estado de Santa Catarina e da União divergiam quanto às responsabilidades, representantes da DPU e da PGR apontaram uma solução possível por meio da corresponsabilização de ambos.
A Constituição Federal, em seu artigo 231, determina que os títulos incidentes sobre terras indígenas são nulos, mas que, nos casos de ocupação de boa-fé – ou seja, casos em que as pessoas receberam títulos do Estado – as benfeitorias dos ocupantes devem ser indenizadas. A proposta defendida pelos agricultores é que, dado o equívoco cometido pelo estado de Santa Catarina, eles sejam indenizados não só pelas construções e plantações que possuem em suas propriedades, mas também pela “terra nua”, ou seja, pelo valor das áreas em si.
“Em princípio, há uma forte prova da tradicionalidade dessa terra indígena. Por outro lado, não nos parece que seria justo uma mera indenização de benfeitorias de boa-fé. Embora a Constituição assim o preveja, os agricultores que foram titulados, no mínimo, mereceriam uma indenização também da terra nua. União e estado deveriam cogitar a ampliação dessa indenização aos agricultores”, defendeu um dos representantes da DPU.
O coordenador da Sexta Câmara do Ministério Público Federal (MPF), Antônio Carlos Bigonha, também defendeu que se discuta o caso a partir de uma responsabilização compartilhada, que leve em conta não só a indenização prevista constitucionalmente, mas também os danos causados aos agricultores pelas ações do estado e da União.
“Há uma aparente corresponsabilidade entre a União e o estado de Santa Catarina. É evidente que os títulos que incidem sobre terras indígenas são nulos de pleno direito. Não estamos discutindo a indenização de títulos nulos, mas a indenização por benfeitorias, que a Constituição permite, e, num outro fundamento jurídico, a recomposição deste dano evidente causado aos agricultores de boa fé”, defendeu Bigonha.
Em sua manifestação como advogado da comunidade indígena, Adelar Cupsinski, também assessor jurídico do Cimi, apontou que o diálogo é o caminho para “se proporcionar o que ambas as partes querem: a paz social”.
“A União diz que não vendeu essas terras. Mas ela permitiu que essas terras fossem vendidas pelo estado de Santa Catarina. É preciso avançar nas propostas”, defendeu o advogado.
Encaminhamentos
Depois de definir o dia da audiência como “um dos mais importantes e mais difíceis” de sua carreira no STF e ressaltar a relevância do momento de diálogo e escuta, Fachin determinou à União, ao estado de Santa Catarina e ao Incra um prazo de quinze dias para se manifestarem sobre “a dimensão econômica do pedido alternativo e da incidência, como hipótese, da responsabilidade civil por ato danoso, quer lícito, quer ilícito”.
O ministro da Suprema Corte também determinou à União que junte ao processo o plano de trabalho quanto à barragem norte do Alto Vale do Itajaí, que alagou parte da terra indígena Ibirama e afetou diretamente os indígenas Xokleng.
Fachin também facultou ao Instituto do Meio Ambiente (IMA), órgão de gestão das unidades de conservação estaduais de Santa Catarina, a inclusão de um plano de trabalho para a área em que a reserva biológica do Sassafrás incide sobre o território Xokleng. Cerca de 7% dos 5.230 hectares da reserva estão sobrepostas aos novos limites da TI Ibirama-La Klãnõ, e a comunidade indígena já apresentou ao IMA uma proposta de ação conjunta.
“Creio que existe espaço para avançar um pouco mais. Tivemos um primeiro tempo, acho que há um espaço para um segundo tempo e para um aprofundamento do que foi dito”, avaliou o ministro da Suprema Corte.
“Essa audiência que aconteceu no STF é resultado de uma inovação. Instada a se manifestar no processo, a comunidade indígena apresentou uma proposta de acordo, sem abrir mão dos seus direitos originários”
Acesso à justiça
Na avaliação de Adelar Cupsinski, a admissão dos indígenas como parte do processo foi determinante para que se tenha chegado ao ponto em que uma solução negociada pode vir a ocorrer.
“Em 2016, o ministro Edson Fachin determinou a citação da comunidade Xokleng no processo judicial. Isso é uma inovação porque, até 1988, as comunidades indígenas eram tuteladas e não participavam dos processos. Depois disso, mesmo com os direitos reconhecidos na Constituição, essa cultura tutelar permaneceu, especialmente no Judiciário”, pondera o advogado.
Diversos povos indígenas vêm lutando para que seu direito de acesso à justiça seja respeitado nas cortes, de maneira que possam ser ouvidos e se manifestar em defesa de seus direitos.
“Essa audiência que aconteceu no STF é resultado dessa inovação também, porque, instada a se manifestar no processo, a comunidade indígena apresentou uma proposta de acordo, sem abrir mão dos seus direitos originários”, avalia Cupsinski.
Repercussão geral
Além da ACO 1100, o povo Xokleng também está diretamente implicado em outra importante ação no STF, que pode ter consequências para os povos indígenas de todo o Brasil. É o Recurso Extraordinário (RE) 1.017.365, em que a Fundação do Meio Ambiente do Estado de Santa Catarina (Fatma), antecessora do IMA, pede a reintegração de posse de uma área ocupada pelos indígenas – e já identificada como parte de seu território tradicional.
Em decisão publicada em abril, o STF reconheceu por unanimidade a repercussão geral deste julgamento, cuja relatoria também é do ministro Edson Fachin. Isso significa que a decisão tomada neste caso servirá de base para todos os processos envolvendo demarcações de terras indígenas no país.
Estará em jogo a reafirmação do caráter originário dos direitos indígenas, como define a Constituição Federal, ou a incorporação da tese anti-indígena do marco temporal, que relativiza o direito dos povos à demarcação de suas terras.
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