28/10/2009

XVIII Assembléia Geral do Cimi

RELATÓRIO DA PRESIDÊNCIA DO CIMI REFERENTE AO PERÍODO 2007-2009


 


I. INTRODUÇÃO


 


Amigas e amigos queridos,


 


Proponho-me neste momento a apresentar, de maneira simples e sintética, o que fizemos ao longo dos dois últimos anos. Nossa atuação junto aos povos indígenas nos proporcionou momentos de imensa alegria, especialmente quando presenciamos a grande resistência e a capacidade de mobilização e articulação destes povos e seu empenho para exercer um crescente controle das políticas públicas que lhes dizem respeito.  Por outro lado, não podemos fechar nossos olhos diante das omissões e negligências de agentes dos poderes públicos, especialmente no que concerne aos direitos indígenas expressos na Constituição Federal em seus artigos 231, 232, 210 e 215.


 


Inicialmente, gostaria de manifestar a satisfação e alegria que sinto em fazer parte desta entidade. Pela quarta vez escolheram-me como presidente do CIMI em 2007. Ocupei este cargo pela primeira vez de 1983 a 1987. Fui reconduzido em 1987 para a mesma função para um segundo mandato (1987 – 1991) no contexto da Assembléia Nacional Constituinte. Por causa da trágica morte de Dom Franco Masserdotti, então presidente do CIMI, fui solicitado em setembro de 2006 de concluir o segundo mandato deste irmão e grande defensor da causa indígena. Em 2007 fui reeleito e, desde então já se foram dois anos de luta e empenho em favor dos direitos e da dignidade dos Povos Indígenas deste País. Na verdade não pretendo outra coisa a não ser partilhar com cada uma e cada um o sonho de um novo amanhã, um tempo de paz como “fruto da justiça” (Is 32,17) e de respeito a todas as diferenças. Em nome do Deus que criou os seres humanos “à sua imagem” (Gn 1,27) repudiamos todas as formas de disCIMInação por causa de raça, gênero, expressões culturais ou religiosas. Agradeço a Deus pela força que impulsiona a cada missionário, funcionário e assessor. Vejo em cada uma e cada um atuar de uma força divina que faz do CIMI um espaço privilegiado de serviço, de apoio, de estímulo e de esperança para as lutas empreendidas pelos povos indígenas. Celebro, também, a vitalidade profética dessa entidade, ao assumir radicalmente a causa do Evangelho, anunciando a Boa Nova através de uma presença solidária e comprometida com a vida plena e abundante para todos (cf. Jo 10,10). 


 


E, neste contexto de luta pela vida em plenitude, quero lembrar a dedicação e o compromisso assumido pelo abnegado missionário Padre Gunter Kroemer, nos mais de 30 anos em que atuou na Amazônia. Gunter Kroemer esteve inteiramente dedicado à causa dos povos indígenas, e, de modo especial, dos povos de pouco contato ou em situação de isolamento e de risco. Neste desafiador serviço à causa, Gunter foi um verdadeiro testemunho de comunhão com os povos da Amazônia, que sofrem graves e contínuas agressões e, em sua simplicidade e desapego, buscou sensibilizar e mobilizar as pessoas com quem convivia para a urgência de uma atuação em regiões onde o chamado “desenvolvimento econômico” avança de maneira avassaladora. Quem teve o privilégio de conviver com Gunter, seja em experiências de atuação direta nas aldeias indígenas, ou em momentos de reflexão coletivas no CIMI, certamente não esquecerá sua ousadia e total dedicação, que nos serve de exemplo e alimenta nossa mística missionária e militante. Pouco tempo antes de morrer como vítima de uma doença não identificada que certamente contraiu na sua árdua missão, Gunter Kroemer enviou-me uma mensagem que foi sua última vigorosa denúncia de “grupos de extermínio” e ao mesmo tempo seu último grito em favor dos povos que tanto amava: “Os mais que 60 povos em situação de isolamento e de risco localizam-se sobretudo em Rondônia, no Norte do Mato Grosso e Sul do Amazonas e tem sido praticados por grupos de extermínio a serviço de grileiros de terras públicas, madeireiros e fazendeiros. A estratégia é acabar com todo e qualquer vestígio de presença indígena para inviabilizar a demarcação de terras indígenas, liberando-as para a apropriação privada, exploração dos recursos naturais, a pecuária e o agronegócio”.


 


II. ALGUMAS CONQUISTAS E FRENTES DE ATUAÇÃO NESTE BIÊNIO


 


Gostaria de dar relevo, neste momento, ao nosso Plano Pastoral, como uma importante conquista para nortear a ação missionária do CIMI. As importantes questões que ele sinaliza foram o resultado de um amplo processo de discussão, coletivamente sintetizado na Assembléia Geral de 2005. Desde então, ele tem nos servido de guia para a nossa atuação, mas é necessário investir ainda para que este Plano seja incorporado aos planejamentos das nossas equipes e regionais. Além disso, precisamos aprovar também um Plano Operacional em âmbito nacional, e, a partir dele, os Planos Operacionais de cada regional do CIMI. Só assim poderemos efetivamente afirmar, como já fizemos em nossa última Assembléia, que o Plano Pastoral “tem se constituído num importante instrumento de trabalho que é, ao mesmo tempo, um registro do caminho percorrido e um indicador para novos passos na estrada que nos propomos a percorrer”.


 


Creio ser importante acentuar a importância de uma apropriação mais abrangente do conteúdo deste Plano Pastoral, por parte de todos os missionários e missionárias, pois ele define claramente o foco das ações e serve como referência teológica, pastoral, mística e militante, assim como pretendia nosso querido e sempre lembrado Dom Franco. E, por uma questão de justiça histórica, podemos dizer que o sonho de uma atuação mais unificada e coesa marcou também a longa trajetória de Dom Apparecido, quando ocupou a presidência do CIMI.


 


Nos Regionais se percebe, com grande satisfação, a existência de uma comunhão fraterna entre missionários e missionárias e um esforço coletivo para que as definições de nossa Assembléia Geral sejam assumidas inteiramente. Os Conselheiros, por sua vez, procuram realizar suas funções com responsabilidade e dedicação, estabelecendo o elo entre a Direção da entidade e as equipes, bem como encaminham as deliberações a serem assumidas no âmbito do Regional.


 


A coesão entre as prioridades nacionais e regionais pode ser sentida, por exemplo, quando são planejadas as atividades que envolvem o Abril Indígena e o Acampamento Terra Livre. Devemos reconhecer que estas atividades se tornaram referência em termos de mobilização e luta do Movimento Indígena, graças ao empenho e à dedicação dos missionários e missionárias que atuam nas comunidades indígenas. Podemos dizer que é uma peculiaridade dos missionários, assessores e funcionários do CIMI perceberem as questões prementes que afetam a vida das comunidades indígenas e a necessidade de que elas sejam enfrentadas e superadas através de lutas comuns, numa articulação de todos os povos do Brasil. Poucos movimentos e entidades compartilham deste entendimento.


 


Outra significativa conquista, nestes dois últimos anos, foi a elaboração de um Programa Nacional de Formação, que desejamos consolidar como um importante espaço de discussão e de reflexão permanente dos missionários e missionárias. Nesta mesma direção, destaca-se a atuação de nosso Coletivo Nacional de Formação, que tem se reunido sistematicamente para indicar as grandes demandas a serem debatidas pelo Conselho e pelos Regionais. Nos dois últimos anos houve estudos sobre políticas públicas (em especial saúde, educação) e sobre a temática das economias indígenas. Também foram realizados dois importantes seminários nos quais discutimos questões relativas à terra, territorialidade e formação política dos missionários.


 


No âmbito eclesial, nossa atuação continua focada em fóruns das pastorais e organismos missionários, além de mantermos participação ativa nas reuniões da Comissão Episcopal, no Conselho Permanente da CNBB e na sua Assembléia Geral. Quero agradecer aqui mui cordialmente ao nosso Secretário Nacional, José Eden Pereira Magalhães, pela sua assídua presença nestas reuniões da CNBB. Quantas vezes conseguiu chamar a atenção dos bispos para a causa indígena e também dirimir quaisquer dúvidas que surgiram a respeito de nosso trabalho e responder com competência aos questionamentos apresentados. Dentre as atividades que envolvem todas as nossas equipes, registramos o engajamento dos Regionais, especialmente os amazônicos, na Campanha pela Amazônia, bem como em outras iniciativas das pastorais sociais e da dimensão missionária. Podemos destacar o apoio e participação nas ações e mobilizações contra a transposição do Rio São Francisco, quando o CIMI se posicionou de maneira firme, solidária e engajada em apoio ao jejum de Dom Cappio, realizado nos meses de novembro e dezembro de 2007. Naquela região, o povo Truká se manteve mobilizado e ocupando áreas contíguas ao canteiro de obras – e eles permanecem acampados até hoje, exigindo uma solução adequada para este grave problema que afeta a vida e o futuro de muitas comunidades indígenas e ribeirinhas.


 


Em âmbito nacional, temos participado, através de nosso assessor teológico, Paulo Suess, de importantes eventos como o Encontro Mundial de Teologia e Libertação, que aconteceu entre os dias 23 a 25 de janeiro de 2009, às vésperas do Fórum Social Mundial em Belém/PA. Dirijo ao Paulo Suess um agradecimento especial. Há décadas nos ajuda com sua tão importante contribuição teológica e faz-nos aprofundar, a partir do Evangelho, a mística e compreensão da luta que travamos contra as forças do mal. Paulo Suess fez o CIMI ser conhecido e estimado também “além fronteiras”. Importante ainda é registrar que o CIMI apresentou aos Bispos, durante a sua 47ª Assembléia Geral em Itaici, um relatório sobre a realidade indígena no Brasil, intitulado “A igreja e os povos indígenas: luzes e sombras”. A participação do Secretário e do Presidente nessa ocasião foi fundamental para a discussão de temas, como: situação atual dos povos indígenas no Brasil e as violações aos seus direitos; a questão das terras indígenas; e outras violências envolvendo lutas fundiárias, como o assassinato de Irmã Dorothy.


 


Procuramos enfatizar, para a nossa Igreja, que a causa indígena é também uma causa do Reino, e que caminha sempre junto com outras causas com as quais precisamos constituir, permanentemente, alianças estratégicas e lutas em comum. Nesta direção, buscamos marcar presença em eventos como o 8º Congresso Latino-Americano (CAM 3/COMLA 8) realizado nos dias 12 a 17 de agosto de 2008, em Quito, Equador. Proferi uma reflexão intitulada “Evangelização: Comunidade missionária para a humanidade”. Concluí minha contribuição naquela oportunidade com as palavras: “A Igreja da América Latina e do Caribe está diante de três alternativas:


 


(a) amedrontada, enterrar os muitos talentos que recebeu (Mt 25,14ss),


(b) inserir-se ao sistema capitalista e propor pequenas melhorias ou


(c) intervir com sinais de justiça no mundo injusto e lançar as sementes do Reino. A Igreja de Aparecida assumiu essa intervenção e ruptura como serviço aos pobres. Ela prometeu não apenas ser advogada dos pobres, mas a sua casa. Como casa dos pobres, a Igreja será casa de esperança.”


 


Juntamente com representantes indígenas de todas as regiões do país, marcamos presença também no 12º Encontro Intereclesial das CEBs nos dias 21 a 25 de julho de 2009 em Rondônia. A participação dos nossos missionários e missionárias foi expressiva. Havia representantes de 10 Regionais e do Secretariado Nacional, bem como de delegações indígenas de 38 povos que, com a sua presença, inundaram de mística os momentos de celebração e debates.


 


Ainda no que se refere à nossa atuação junto à CNBB, gostaria de registrar a assessoria a um estudo do Consep sobre “Infanticídio no meio indígena”. O tema foi motivado para debater o projeto de lei do deputado Henrique Afonso, que dispõe sobre “o combate a práticas tradicionais nocivas e à proteção dos direitos fundamentais de crianças indígenas, bem como pertencentes a outras sociedades ditas não tradicionais”. O referido projeto tenta criminalizar os povos indígenas e seus aliados pela prática cultural do infanticídio em algumas poucas comunidades do país. Na polêmica gerada em torno deste Projeto de Lei, observa-se que o infanticídio é apresentado como sendo o problema central que ameaça a vida dos povos indígenas. Em nossa CARTA DE PRINCÍPIOS, Lutar pela vida dos povos indígenas sem fundamentalismo missionário, afirmamos: “O CIMI defende o direito à vida integral de todos, em todas as circunstâncias, idades e culturas”, mas denunciamos também: “Hoje, a vida dos povos indígenas não é ameaçada apenas em alguns casos isolados, mas sistemicamente, pelos conflitos em torno da questão agrária (defesa da terra indígena), pelo padrão hegemônico de desenvolvimento e pelo modelo civilizatório. No modo de produção e vida atual, em torno do lucro e do latifúndio, do supérfluo e do descartável, da degradação social e da destruição da natureza, os povos indígenas são considerados como seres transitórios sem futuro específico. As suas vidas não estão ameaçadas por um infanticídio intracultural, mas pelo etnocídio de cunho neocolonial.”


 


No que concerne aos eventos dos quais participamos diretamente, desejo ressaltar a realização do V Encontro Nacional de Teologia Índia, em dezembro de 2008, no Centro de Formação Vicente Cañas, em Luziânia, Goiás. É importante que seja destacada a boa participação de representantes de 30 povos indígenas de diversas regiões do Brasil e mais de 40 missionários religiosos e leigos. Um dos objetivos foi o de refletir sobre como a teologia pode ajudar a dar respostas às situações que os povos indígenas vivenciam. A idéia de reunir diversos povos para refletir sobre a religiosidade surgiu de outras experiências. Em 1990, aconteceu no México o I Encontro-Oficina de Teologia Índia. Na ocasião, disseram que teologia índia é “o conjunto de conhecimentos religiosos que os povos indígenas possuem e com os quais explicam, desde há milhares de anos até hoje, sua experiência de fé, dentro do contexto de sua visão global do mundo e da visão que os demais têm dos povos. A teologia índia é, portanto, um acervo de práticas religiosas e de sabedoria teológica, da qual se servem os membros dos povos índios para explicar os mistérios novos e antigos da vida. Por isso, não se trata de algo novo nem de um produto propriamente eclesial, senão de uma realidade muito antiga que tem sobrevivido aos embates da história”.


 


Outro aspecto sempre presente em nossa atuação é o de estabelecer relações de aliança, mais do que de parceria, com as Agências de cooperação internacional. Ao longo dos dois últimos anos realizamos debates e discussões sobre a realidade indígena, sobre os impactos dos monocultivos de cana-de-açúcar, soja e plantação de eucalipto. Abordamos também os problemas ambientais decorrentes deste modelo de agricultura, da exploração das florestas e de outros projetos que se vinculam ao Programa de Aceleração do Crescimento (PAC).


 


Vale ressaltar aqui o necessário trabalho que vem sendo desenvolvido por nossas equipes, Coordenações Regionais e Secretariado Nacional para fortalecer as alianças com movimentos sociais e populares, tendo como referência a construção de um outro mundo possível. E o CIMI, desde a sua fundação, tem a firme convicção de que as alianças dos povos indígenas com outros setores da sociedade são estratégicas e imprescindíveis para a garantia dos direitos e da autonomia tão sonhada. Este entendimento de nossa entidade foi sintetizado por Paulo Suess, no livro “A causa indígena na caminhada e proposta do CIMI: 1972 -1989”, nos seguintes termos: “o CIMI representa ‘uma das consciências mais críticas na sociedade nacional. Essa consciência de um grupo relativamente pequeno precisa de um respaldo amplo para não ser barrado na passagem da consciência à ação”. Paulo Suess escreveu isso num período em que as grandes forças políticas e econômicas se articulavam e colocavam em risco os direitos indígenas. O mesmo se constata hoje, no momento em que todas as referências de desenvolvimento econômico direcionam-se para a exploração dos recursos ambientais da terra, através de um programa denominado de PAC. Se analisarmos os documentos finais de nossas Assembléias, será possível observar que o tema das alianças e articulações sempre foi nossa preocupação. Em 1993 o documento expressa a seguinte preocupação: “O CIMI deve esforçar-se no estabelecimento de alianças com setores democráticos e populares para aumentar a correlação de forças em apoio aos direitos e interesses indígenas, inclusive no sentido da construção de um projeto político de transformação social”. Nas últimas décadas, este tema é prioritário no CIMI, apontando para a consolidação de alianças com setores e movimentos populares em âmbito nacional, no exterior e com o movimento indígena, tendo como horizonte a construção de um “projeto alternativo para o Brasil”.


 


A atenção que temos dedicado a uma política de alianças se expressa, particularmente, em ações concretas que favorecem a articulação entre os povos indígenas. Nota-se que a articulação dos Povos Indígenas com movimentos e pastorais sociais vem ganhando força e estes são importantes espaços para aprofundar o debate e fortalecer estratégias de transformação da sociedade. Os povos indígenas têm estado mais presentes nos eventos promovidos em âmbito nacional. No entanto percebemos que falta, do ponto de vista dos movimentos, uma abertura para compreender as especificidades étnicas. No que se refere às lideranças indígenas percebemos que elas também têm dificuldades em aceitar as concepções dos movimentos, que estão mais focadas em lutas de classe, como também as formas de pressão e de mobilização.


 


Do ponto de vista da articulação entre os povos, observa-se que ela tem acontecido com maior intensidade, sendo o Acampamento Terra Livre um inegável exemplo. Mesmo povos considerados “adversários” históricos têm feito esforços para estarem lado a lado nas grandes lutas que propõem a conquista de direitos comuns. Esse processo não é novo, basta lembrar das Grandes Assembléias Indígenas que, na década de 1970, impulsionaram as lutas em torno dos direitos que hoje estão assegurados na Constituição. No contexto atual, merece um comentário a mobilização que aconteceu durante o julgamento, no STF, sobre a legitimidade da demarcação, em área contínua, da Terra Indígena Raposa Serra do Sol. Foi significativo, neste processo de consolidação das alianças, o apoio de movimentos como o MST, a Via Campesina, o FDDI e também de outros povos indígenas, que acompanharam o desfecho de um julgamento que durou meses.


 


A decisão do STF, depois de protelada por dois pedidos de vistas, acabou sendo votada no mês de março deste ano. A maioria dos ministros seguiu o voto do relator, Carlos Ayres Britto, pela manutenção da demarcação contínua de Raposa Serra do Sol. No entanto, a maioria desses ministros acompanhou também o voto do ministro Menezes Direito que impôs 17 condicionantes para a manutenção da demarcação, enfatizando que estas servirão para balizar as demarcações de todas as terras indígenas.


 


Não podemos deixar de referir-nos à dedicação e ao empenho de nosso assessor jurídico, Paulo Machado Guimarães, e de outros membros da assessoria jurídica no notável e abnegado acompanhamento deste caso, na assessoria aos indígenas, como também na intervenção qualificada no julgamento, defendendo com muita propriedade e verdadeira paixão a manutenção da demarcação da terra. É elogiável também a atuação de missionários, assessores e funcionários do CIMI, que dedicaram esforços reunindo informações relevantes para fundamentar a defesa dos povos da Raposa Serra do Sol.


 


No mesmo período acompanhamos o início do julgamento da ação de nulidade dos títulos de propriedades concedidos a ocupantes da terra indígena do povo Pataxó Hã-Hã-Hãe, no sul da Bahia. Este processo aguardava julgamento há 26 anos. No dia 24 de setembro de 2008 o Supremo Tribunal Federal começou a julgar a referida ação, e o ministro relator do processo, Eros Grau, reconheceu o direito dos indígenas à terra e considerou os títulos nulos. Após o voto, o ministro Carlos Alberto Menezes Direito, que recentemente faleceu, pediu vistas do processo, adiando a conclusão do julgamento. A sua continuidade pode ainda perdurar por muito tempo e, portanto, caberá ao CIMI acompanhar com profunda atenção os desdobramentos do caso, bem como quem será o ministro a assumir as funções de Menezes Direito. A decisão do processo contra Raposa Serra do Sol, que foi favorável aos povos indígenas daquela terra, poderá trazer luzes importantes aos ministros do STF por ocasião do julgamento final deste processo. No entanto, há que se ter o máximo cuidado com a aplicação das 17 condicionantes aplicadas no caso Raposa Serra do Sol.


 


Como ocorre há mais de 20 anos, foram organizados e divulgados nos anos de 2007 e 2008, com grande repercussão, os Relatórios de Violência contra os Povos Indígenas. Apresentamos essas publicações na 46° Assembléia da CNBB em Itaici, São Paulo e, neste ano, aproveitamos o espaço do Acampamento Terra Livre para dar visibilidade a este importante instrumento de luta pela justiça. As duas publicações do Relatório de Violência se devem ao empenho dos Regionais, de nossos assessores e funcionários que se debruçaram sobre os dados coletados e os tornaram acessíveis para a imprensa, aos órgãos públicos, às universidades, centros de pesquisa e outros interessados na causa indígena. Vale a pena lembrar que, recentemente, o relatório de 2008 foi lançado em inglês, o que favorece a sua divulgação e repercussão no exterior. Nossos relatórios não se constituem em instrumentos meramente denuncistas, pelo contrário apresentam a realidade, cobram dos poderes públicos providências às grandes demandas e apontam as responsabilidades pelas práticas de violação dos direitos indígenas.


 


Dando destaque, ainda, aos materiais para a divulgação da causa indígena, elaboramos também folders e cartazes para a Semana dos Povos Indígenas.  Esta semana faz parte do calendário anual no Brasil, e o CIMI é a única entidade a manter fidelidade na sua promoção. Ao invés das comemorações oficiais do “dia do índio”, nós propomos uma semana de debates, manifestações e estudos sobre a realidade indígena. E é importante ressaltar que os temas escolhidos para motivar a reflexão e o debate estão vinculados a outras causas, também importantes, tais como o meio ambiente e o combate aos desmatamentos e depredação das terras, combate aos empreendimentos que causam danos irreversíveis às florestas, aos rios e à biodiversidade. Empenhamo-nos nas discussões contra as grandes hidrelétricas como são os casos de Belo Monte, Rio Madeira entre outras. Em 2008, o CIMI apresentou como tema para a Semana dos Povos Indígenas “Terra é vida” e como lema ”Em defesa da vida dos Povos Indígenas”. Em 2009, o tema escolhido foi “Paz e Terra para os Povos Indígenas” e como lema “a Paz é Fruto da Justiça”.


 


Merece especial destaque o nosso Jornal Porantim, um histórico instrumento de comunicação, o único especializado na causa indígena e, sem dúvida, uma referência no Brasil e no exterior. Ele apresenta em suas páginas reportagens feitas in-loco, encartes especiais sobre grandes temas relacionados à causa indígena e as legislações que a ela dizem respeito, tais como a Convenção 169 da OIT, Estatuto dos Povos Indígenas. Também são trazidas, nas páginas de nosso jornal, situações desafiadoras como a dos povos indígenas em situação de isolamento e risco, a do povo Guarani-Kaiowá, no Mato Grosso do Sul. Vale ressaltar que uma das matérias sobre a realidade dos Kaiowá foi ganhadora de prêmios no Brasil e no exterior.


 


O CIMI mantém outros veículos de comunicação e informação sobre a realidade indígena e que também são exemplares por sua eficiência: o informe semanal, enviado ao mundo inteiro sobre os principais acontecimentos relativos à questão indígena; a Revista Mensageiro, publicada mensalmente pelo Mensageiro/Regional Norte II; o programa Potyrõ, que é transmitido por centenas de rádios Brasil a fora, bem como pela internet; e os programas sobre a realidade indígena e a Amazônia veiculados pela TV Nazaré. Cabe aqui também um cordial agradecimento às e aos nossos jornalistas e repórteres que tanto se esmeram em fazer a ponte entre a realidade indígena e nosso empenho junto a eles e a comunidade nacional e internacional no intuito de sensibilizar e conscientizá-la a respeito dos direitos e da dignidade dos povos indígenas.


 


Especialmente através da atuação do Regional Mato Grosso do Sul, o CIMI mantém a Campanha Guarani, que conta também com a participação do Regional Sul e com a adesão de entidades e pastorais indigenistas de outros países como Conapi, Endepa e dos movimentos de luta dos povos Guarani da Argentina, Paraguai, Bolívia e Brasil. No âmbito da campanha, foi elaborado um mapa Guarani e um subsídio que traz informações sobre as reivindicações dos povos indígenas Guarani de todas as regiões fronteiriças.


 


O CIMI apresentou à OEA um relatório sobre a temática indígena no Brasil, no qual destacou as graves agressões que muitos povos sofrem em função do descumprimento da nossa Constituição Federal e das Normas Internacionais. O relatório foi um subsídio à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, da Organização dos Estados Americanos (OEA), em Washington, DC. A audiência ocorreu no dia 23 de março deste ano. O objeto da audiência era analisar a Situação Geral dos Povos Indígenas no Brasil e o seu conteúdo tem dois níveis de abordagem: informação e denúncia. Pretendia-se, assim, fornecer o maior número possível de dados aos membros da CIDH, possibilitando-lhes as condições necessárias para a análise dos fatos relatados.


 


Através do Secretariado Nacional, temos nos empenhado em acompanhar os grandes debates sobre os povos indígenas. E, dentre eles, destaco o Seminário Nacional sobre o Estatuto dos Povos Indígenas e as oficinas regionais. Estes foram promovidos pela CNPI, mas com importante participação de nossos representantes (Saulo Feitosa e Paulo Machado), que contribuíram nos momentos de discussões e debates, bem como na elaboração das sínteses dos estudos e suas conclusões. Além disso, organizaram junto com lideranças indígenas e indigenistas a redação final do projeto de Estatuto dos Povos Indígenas que está sendo apreciado na Câmara dos Deputados. As discussões em relação ao PL 2.057/91 transcorreram de forma tranqüila, não obstante alguns temas polêmicos, a exemplo da mineração. Em linhas gerais, percebeu-se uma estratégia por parte de alguns indígenas em adotar no texto do Estatuto terminologias já consagradas pela Convenção 169 da OIT e a Declaração da ONU sobre Diretos dos Povos Indígenas, tais como o conceito de povo e de território, que foi bastante discutido em plenário.


 


Para marcar os 20 anos da nossa Constituição o CIMI lançou o livro “Povos Indígenas e a Constituinte – 1987-1988”. A publicação reúne documentos, fotos e histórias como um registro da intensa mobilização dos indígenas e de seus aliados para garantir os direitos dos povos na Carta Magna promulgada há mais de 20 anos. O lançamento aconteceu no SESC Ceilândia (DF), como parte das atividades do Seminário ”Constituição 20 anos: Estado, democracia e participação popular”. A autora da publicação é a nossa querida advogada, e por muitos anos nossa assessora jurídica, Rosane Lacerda, que atuou inclusive no período Constituinte. Ela destaca com muita precisão que “a participação dos povos indígenas na Constituinte e os novos direitos conquistados marcaram a ruptura com um modelo de cinco séculos de dominação colonial”.


 


Em reconhecimento ao trabalho que desenvolvemos com dedicação e profetismo, o CIMI recebeu o Prêmio USP de Direitos Humanos na categoria institucional, no dia 10 de dezembro de 2008, na Faculdade de Direito, no Largo de São Francisco, no centro de São Paulo. O prêmio é entregue a instituições ou grupo de pessoas que tenham realizado ou estejam desenvolvendo pesquisas ou atividades para a difusão e promoção dos direitos humanos. Assim a Universidade de São Paulo (USP) definiu a ação do CIMI: “Ao longo de sua existência o Conselho Indigenista Missionário tem lutado pelos Direitos Humanos dos povos indígenas e realizou um papel fundamental no período Constituinte (1987-1988) para garantir a inscrição dos direitos destes povos na Constituição Federal de 1988 e tem realizado, no dia a dia, um trabalho concreto de acompanhamento e assessoria nas aldeias”.


 


Não poderia deixar de mencionar, o nosso Centro de Formação Vicente Cañas, que se constitui hoje num espaço importante de encontros de nossos missionários(as), dos povos e lideranças indígenas e aberto aos demais segmentos que se somam às lutas por justiça social. O Centro de Formação é uma casa de acolhida, aconchegante, simples e revestida de significados místicos, religiosos e pluricultural. Agradeço, de coração, aos que aqui trabalham com entusiasmo e afinco.


 


Ao finalizar esta primeira parte do nosso relatório, quero parabenizar toda a equipe do Secretariado Nacional, seus funcionários, assessores e missionários. Acompanho o empenho com que enfrentam o dia a dia da causa indígena. É necessário dizer que as demandas do indigenismo oficial, do movimento indígena do país e as grandes questões postas contra os direitos indígenas acabam desembocando em Brasília e, por conseqüência, o Cimi deve acompanhar e dar respostas. Também quero salientar a boa convivência e convergência nas tomadas de decisões políticas e institucionais entre este presidente que lhes fala, o nosso vice, Roberto Liebgott, e os secretários Eden, Cleber e Saulo. Saúdo, por fim, Cleber e Marline que passaram a atuar no Secretariado Nacional desde o início do ano. Obrigado, de coração, a cada um e cada uma que se doam cotidianamente à causa indígena. 


 


III. OS PRINCIPAIS PROBLEMAS QUE AFETAM OS POVOS INDÍGENAS


 


Não poderia me furtar de apresentar, mesmo que de maneira sucinta, os graves problemas que os povos indígenas enfrentam nas suas lutas cotidianas. Passo a destacar algumas das Violações a Direitos Indígenas e vale ressaltar, de início, que os responsáveis principais pelos problemas enfrentados são os agentes públicos e os segmentos de interesses econômicos privados que, na atualidade, se entrelaçam confirmando uma estreita parceria.


 


A omissão do poder público é gritante e se caracteriza fundamentalmente quando o governo federal, sabedor de suas responsabilidades constitucionais não as cumpre, de modo especial no tocante às demarcações de terras, sua proteção e fiscalização. Também as políticas públicas destinadas à assistência não são asseguradas de maneira satisfatória, conforme determina a legislação.


 


Como o governo faz “vista grossa” à questão indígena, outros segmentos articulam-se permanentemente. E nos dois últimos anos percebemos pelo menos duas estratégias que estão sendo utilizadas por setores antiindígenas, em suas ações contra as demarcações em âmbito nacional: a primeira diz respeito ao judiciário e consiste em entrar com ações judiciais pedindo a suspensão das demarcações. Os próprios governos estaduais, a exemplo de Santa Catarina, do Mato Grosso e Mato Grosso do Sul têm orientado os invasores de terras indígenas a entrarem com ações ordinárias na Justiça Federal pedindo a suspensão dos efeitos das Portarias Declaratórias expedidas pelo Ministério da Justiça ou até mesmo pedindo a anulação das portarias expedidas pela Funai, as quais constituem os Grupos Técnicos (GTs) para proceder aos estudos de identificação e delimitação de terras indígenas. 


 


A segunda estratégia se expressa no âmbito do Poder Legislativo, onde são apresentados inúmeros projetos de lei que visam modificar e/ou paralisar, ainda mais, as normas legais para o reconhecimento das terras indígenas. Os parlamentares ruralistas da própria base de sustentação do governo iniciaram uma “onda” de apresentação de projetos de decretos legislativos (PDCs) na tentativa de sustar as portarias declaratórias. Esta medida já havia sido utilizada pela bancada antiindígena de Roraima tentando anular a homologação da demarcação das terras indígenas Yanomami e Raposa Serra do Sol. Do ponto de vista jurídico, todas essas propostas de decretos legislativos são inconstitucionais. Os deputados sabem que, mesmo não sendo aprovados esses decretos legislativos, por sua impropriedade, as proposições servirão para criar e fortalecer, no Congresso Nacional, opiniões desfavoráveis à demarcação das terras indígenas. O resultado pode ser desastroso se forem aprovadas propostas de leis que criem mais “barreiras”, além das que já existem, para demarcar as terras tradicionalmente ocupadas pelos povos indígenas.


 


Em síntese, a demarcação das terras é, certamente, dentre os temas em análise, o que causa maior impacto, a questão mais crucial e polêmica e a que mostra toda a inércia do governo. A omissão do governo nesta questão demonstra a opção política em beneficiar setores da economia que se apropriaram ou que se apropriam das terras indígenas, a fim de explorá-las. Todavia, quando o intento de inviabilizar a demarcação de uma terra não é atingido apesar das pressões, alguns segmentos apelam para a violência, atacam lideranças, promovem invasão de terras e as depredam. Geralmente nestas ações as vítimas, que são as comunidades, acabam sendo criminalizadas e se tornam os réus. Assim, elas são perseguidas duplamente, pelos invasores e pela justiça, que manda a polícia prender e, não raras vezes, torturar as lideranças.


 


O CIMI, por diversas vezes, tem denunciado as ações repressivas praticadas por agentes do Estado contra lideranças e comunidades indígenas. A Polícia Federal, detentora do devido amparo legal para atuar em conflitos envolvendo interesses indígenas, não possui qualquer formação específica para fazê-lo e atua quase sempre de maneira preconceituosa e violenta. Exemplo mais recente foi o ataque promovido por agentes da Polícia Federal contra a comunidade do povo Tupinambá em outubro de 2008, na Bahia.


 


E, para confirmar que a questão fundiária é efetivamente o maior problema, basta analisar os dados para comprovar a inércia do governo, uma vez que nos dois últimos anos nenhuma terra indígena teve seu procedimento demarcatório concluído. Isso mesmo: nenhuma terra indígena foi registrada no período 2007-2009. São inúmeras as demandas para a demarcação de terras em todo país e o órgão indigenista não consegue responder à altura as necessidades dos Povos Indígenas. Primeiro, a Funai não constitui GT e, quando o faz, não dá condições para que sejam concluídos os estudos de identificação. Quando o relatório circunstanciado é entregue ao órgão indigenista, os processos administrativos tramitam numa morosidade e burocracia assustadoras, prejudicando as comunidades indígenas. Diante dessa situação, um procedimento que poderia ser concluído em nove meses pode chegar a mais de cinco anos sem qualquer relatório aprovado pelo presidente do órgão.


 


Não posso deixar de mencionar a grave preocupação com o PAC – Programa de Aceleração do Crescimento – do governo federal e que está sendo estruturado para atender interesses dos setores da agroindústria, dos agrocombustíveis; de setores que pretendem explorar a energia hidráulica (hidrelétricas) e, além dela, os minerodutos e gasodutos que rasgarão as terras indígenas; interesses do latifúndio da soja, da cana, do gado; das indústrias de celulose; das grandes empreiteiras e bancos, que são, diga-se de passagem, os que mais lucram no país com o referido programa. Expandir investimentos, assegurar infra-estrutura para acelerar o crescimento tornou-se quase uma “lei universal” e, para tanto, não são questionados os caminhos e nem mesmo os impactos sociais, ambientais, econômicos e políticos que estas ações irão provocar.


 


Dentro de sua lógica desenvolvimentista, o governo oficializou a privatização das florestas na Amazônia, entregando-as para a exploração de grandes madeireiras. As empresas que têm obtido esse privilégio ganham o direito de explorar essas áreas por 40 anos. A Amazônia será profundamente impactada pelo avanço descomunal e irreversível da exploração que foi oficializada pelo Ministério do Meio Ambiente. E aqui merece um destaque os licenciamentos, muitos deles eivados de vícios jurídicos, concedidos para a construção de grandes hidrelétricas (Belo Monte, Rio Madeira), que inundarão e devastarão as terras, as florestas, as vidas humanas e dos animais que dependem destes espaços da natureza para sobreviverem. Através do PAC serão realizadas também diversas obras de asfaltamento e duplicação de BRs na Amazônia, algumas destas também ameaçando indígenas isolados ou de pouco contato. As dificuldades comentadas anteriormente para conseguir demarcar uma terra indígena poderão ser maiores em decorrência destas e de tantas outras obras projetadas neste PAC.


 


IV. OUTRAS QUESTÕES PREOCUPANTES


 


Passo a destacar agora outros problemas que merecem, de todos nós do CIMI, cuidado e atenção no decorrer da ação missionária junto às comunidades, nos processos de formação e nas assessorias que serão prestadas aos povos e ao movimento indígena:


Fonte: Cimi

Share this: