A questão indígena na ideologia do filósofo Rosenfield!
O professor de filosofia Denis Lerrer Rosenfield argumenta, num recente artigo publicado em jornais de circulação nacional, dentre eles O Globo e O Estado de São Paulo, que a questão indígena brasileira é essencialmente social e não fundiária. Para justificar a afirmação, ele ataca o Cimi alegando que desde a sua criação, em 1972, a questão indígena ganhou uma conotação claramente ideológica. Não é a primeira vez que este professor cita o Cimi para justificar seu descontentamento com as lutas empreendidas pelos Povos Indígenas no Brasil e certamente não será a última. Isso porque não é a existência do Cimi que o desagrada, mas o conjunto de garantias estabelecidas constitucionalmente para estes povos.
Há mais de 20 anos foi promulgada a Constituição Federal e, não por acaso, é considerada uma “Constituição Cidadã”. O contexto de lutas populares, que antecedeu a nossa Lei maior, produziu mudanças importantes, das quais nos orgulhamos. Uma delas é a garantia da igualdade de todo cidadão, perante a lei, e esse direito fundamental diz respeito não a uma igualdade abstrata e sim concreta, que implica em mudanças nas condições materiais, sociais, fundiárias, que geram as desigualdades. E para assegurar a concretização desse direito, a própria Constituição estabelece outras garantias, em capítulos e artigos que se destinam aos mais variados segmentos sociais, dentre eles os direitos do trabalhador, das mulheres, das crianças, jovens e dos povos indígenas.
A Constituição define claramente duas regras que deverão reger as relações do Estado e da sociedade com os povos indígenas: a primeira é o reconhecimento de suas culturas, línguas, crenças, tradições. Com isso, ela rompe com a perspectiva integracionista, ou de assimilação destes diferentes povos. Contudo, é um equívoco imaginar que essa determinação constitucional implique no isolamento ou na conservação de culturas intocadas e paradas no tempo, ou ainda em critérios de pureza racial, conforme sugere o professor Rosenfield.
Uma pessoa que tenha tido acesso a textos básicos do campo da antropologia sabe que as culturas são dinâmicas, que elas se modificam, incorporam novas tecnologias, novas tradições, novos hábitos, novos conhecimentos – é assim com a cultura ocidental, é assim com as culturas indígenas. E a nossa Constituição busca resguardar o direito a alteridade.
Ora, um estudioso do campo da filosofia, que porventura tenha passado os olhos na densa obra de Michel Foucault saberá que toda relação humana tem por base o poder e este se configura sempre em assimetria – em outras palavras, um dos “pares” dessa relação desfrutará de um poder desigual e da prerrogativa de definir o que é certo e o que é errado, o que pode ou não ser dito, exigido, reivindicado. Sabiamente a Constituição Federal propõe que se restrinjam os “poderes” que, na cultura ocidental, algumas pessoas pensam ter para definir o que os índios são e o que eles devem ser, desejar, reivindicar, acolher em suas culturas. Trata-se de possibilitar que os povos indígenas façam suas escolhas e tenham condições de exercer sua cidadania, ou seja, que eles possam viver suas tradições, incorporando o que quer que desejem das outras culturas, e habitar suas próprias terras, sem pressões de qualquer ordem.
Isso nos leva à segunda regra claramente definida pela Constituição Federal de 1988: a de que as terras indígenas sejam demarcadas e, além disso, protegidas e fiscalizadas, porque são patrimônio da União e, sendo assim, tornam-se indisponíveis aos empreendimentos privados (CF: Art. 20, XI). Portanto, defender que se demarquem as terras indígenas – tal como faz o Cimi – não significa pretender a criação de nações independentes, soberanas, nem tampouco implica em apregoar o isolamento dos indígenas, conforme insinua o professor Rosenfield. Muito pelo contrário, toda luta por demarcação de terras indígenas articula-se a um conjunto de outras reivindicações voltadas para a garantia da vida destas populações, tais como políticas diferenciadas de atenção à saúde, à educação escolar, ações voltadas para a melhoria da qualidade de vida e a recuperação ambiental. Tais garantias expressas no texto constitucional estão também presentes, na forma de reivindicação e de denúncia, em centenas de pronunciamentos indígenas desde os anos 1970.
O discurso de que as demarcações de terras indígenas são contrárias aos interesses nacionais e à soberania, proferido pelo professor Rosenfield, articula-se a uma ideologia colocada em prática pelos militares, especialmente nos anos de ditadura, quando tudo parecia constituir ameaça ao nacionalismo patriótico. No entanto, é importante que se diga que foi através daquela ideologia que os militares promoveram a entrega das riquezas do nosso país às grandes empresas transnacionais, principalmente de mineração e de energia.
E, nos dias atuais, é de se estranhar que a demarcação de terras indígenas preocupe pessoas como o professor e por outro lado lhe pareça natural e perfeitamente adequada à aquisição de infindáveis hectares de terras brasileiras por empresas transnacionais, seja para a exploração de recursos ambientais, seja para a prática indiscriminada de monocultivo de soja, cana-de-açúcar ou de eucalipto em regiões de grandes reservas de água doce. A concentração de terras em latifúndios não tem sido questionada, embora sirva para gerar lucro e renda exclusivamente aos seus donos, que não raramente aplicam os investimentos no exterior. Aqui sim, poderíamos indagar sobre os interesses da Nação e sobre aquela disposição constitucional, expressa no artigo 5, XXIII, de que a propriedade deve cumprir uma função social. No caso das terras indígenas, como dizer que elas são uma ameaça à soberania, se fazem parte do patrimônio da União? Talvez seja a sua indisponibilidade para investimentos privados que incomode os defensores de que toda e qualquer terra esteja ao alcance dos tentáculos da iniciativa privada.
Ao afirmar que a questão indígena é convertida “em um problema fundiário, com evidentes prejuízos para a agricultura brasileira”, o professor Rosenfield deixa evidente que existem fortes interesses em transformar as terras tradicionais indígenas em áreas abertas à exploração. E certamente, com essa afirmação, o professor não está defendendo que tais áreas sejam convertidas em assentamentos, para que os pequenos agricultores realizem plantio de alimentos em modelos alternativos de produção. É importante que se diga que o Sr. Rosenfield foi um intransigente defensor de seis arrozeiros invasores das terras indígenas em Raposa Serra do Sol/RR e, nas defesas que faz dos latifundiários, “sem nenhum cunho ideológico”, ele expressa recorrentemente sua insatisfação com as lutas dos povos indígenas, de modo especial em Mato Grosso do Sul, Santa Catarina, Paraná, São Paulo, Rio Grande do Sul.
Nas suas últimas análises Rosenfield insinua que estaria sendo forjada uma Nação Guarani nas regiões Sudeste e Sul do país. Ele afirma isso porque recentemente a Funai constituiu Grupos Técnicos para realizar estudos de identificação e demarcação de terras para o povo Guarani. O professor desconhece que a noção de territorialidade Guarani não é linear e não significa que eles pretendam recuperar tudo aquilo que, em suas narrativas tradicionais, teria sido ocupado no passado. Ocorre que, de forma ritual, este antigo território compõe um espaço de perambulação contemporânea. Assim, a demarcação de terras deve ocorrer mediante estudos, para que se resguarde o direito dos Guarani de viver em áreas adequadas, aquelas que identificam como Tekohás. Consequentemente, eles não mais serão condenados a viver em acampamentos de beira de estrada, às margens de rodovias em condições degradante, que não se resolvem apenas com política social, mas, sobretudo com política fundiária.
No intuito de atacar o Cimi, o Sr. Rosenfield afirma que a entidade “fala em nome dos povos indígenas e tenta encaixá-los em suas políticas isolacionistas”. Desse modo, ele menospreza as lutas e a resistência indígena sustentando, nas entrelinhas, a ultrapassada e absurda noção de incapacidade dos índios, como se eles não tivessem vontade própria e fossem manipulados por “outros” interesses. Sua análise, acerca da realidade indígena, é parcial e revestida de preconceito. Ele sugere também que os problemas enfrentados pelos indígenas poderiam ser solucionados através de políticas assistenciais. Tal proposição está perfeitamente ajustada ao modelo neoliberal, no qual se redistribuem as migalhas (os pacotes de assistência social) para evitar que sejam redistribuídos os bens que geram as imensas desigualdades sociais que nos cercam na atualidade.
Em síntese, o filósofo e professor da UFRGS se posiciona contra as reivindicações e manifestações dos segmentos populares, sociais, indígenas porque, de acordo com sua análise, estariam contaminadas pelos interesses de grupos que têm objetivos políticos e ideológicos. Isso nos leva a imaginar que suas motivações para questionar (com tanta ênfase) os direitos indígenas vêm de algum tipo de amor angelical que nutre pelos ricos fazendeiros. Possivelmente este professor seja um raro fenômeno da intelectualidade acadêmica do Rio Grande do Sul, e (quem sabe) o único capaz de filosofar sobre questões sociais despido de qualquer roupagem ideológica (de esquerda, de direita, de centro, capitalista, comunista, socialista, social-democrata). Contraditoriamente, ele manifesta veemente defesa a segmentos políticos e econômicos capitalistas, vinculados ao latifúndio e ao agronegócio, muitos deles “desfrutando felizes” os recursos das terras indígenas.
Porto Alegre (RS), 17 de agosto de 2009.
Roberto Antonio Liebgott
Vice-Presidente do Cimi