Política de assistência à saúde indígena: continuam as indefinições
O Ministério da Saúde sinalizou, no ano de 2008, para a redefinição da política de atenção à saúde das populações indígenas em todo o Brasil. Os povos e organizações indígenas, bem como as entidades indigenistas, reivindicam há anos a adequação da política de saúde a Lei Arouca (9836/1999). A referida lei determina que seja criado um Subsistema específico de Atenção à Saúde para estes povos, vinculado ao SUS. Em abril de 2008, depois de uma série de denúncias acerca dos problemas na gestão da atual política de saúde, o presidente Lula foi pressionado pelas lideranças indígenas que estavam presentes no Acampamento Terra Livre, pela CNPI (Comissão Nacional de Política Indigenista) e CISI (Comissão Intersetorial de Saúde Indígena), e incumbiu o ministro José Gomes Temporão a “resolver esse problema”.
A aparente preocupação do governo com relação à saúde indígena teve várias causas, dentre elas a precariedade dos serviços prestados pela Funasa e suas conveniadas, a mortalidade infantil crescente em várias regiões do Brasil, bem como o alastramento de doenças como Hepatite A, B e C. Agravando ainda mais este quadro, vieram a público as denúncias de malversação do dinheiro da saúde pela Funasa. O Tribunal de Contas da União, em função disso tudo, está realizando uma auditoria que abrange as ações, os serviços e o uso dos recursos destinados à assistência dos povos indígenas. Houve também uma intervenção do MPT (Ministério Público do Trabalho) questionando judicialmente a forma como são contratados os servidores que atuam na assistência às comunidades. Desde o governo FHC a gestão da saúde indígena vem sendo feita pela Funasa e executada através da terceirização da mão-de-obra, uma situação que o MPF considerou, de forma acertada, irregular. A ação impetrada pelo MPT foi acatada pela justiça e o governo federal deverá ajustar esta política às normas constitucionais.
Foram realizados em 2008 muitos seminários, reuniões e debates sobre este tema, e ocorreu também a publicação de portarias e resoluções do Ministério da Saúde visando explicitar as propostas para uma nova política. E, de acordo com as diretrizes das Conferências Nacionais de Saúde Indígena, a União deveria assegurar a autonomia administrativa e financeira dos Distritos Sanitários Especiais Indígenas, bem como promover o fortalecimento da participação indígena no âmbito do planejamento, organização e execução das ações e serviços nas comunidades. E o mais importante, a gestão da saúde deveria ser de responsabilidade de uma Secretaria Especial, a ser criada no âmbito do Ministério da Saúde. Como parte do processo, seria constituída uma comissão formada por especialistas, tendo assento nela lideranças indígenas de todo o Brasil. Esta comissão teria a incumbência de delinear a nova estrutura e a política a ser executada. A transição de uma política para a outra já deveria ter sido iniciada e perduraria até o ano de 2012.
Mas, concretamente como vem se desencadeando o processo de construção do Subsistema de Saúde Indígena no âmbito do governo federal? Pode-se afirmar que as propostas estão no mundo das idéias e a participação indígena se restringe às lideranças que são convidadas para reuniões esporádicas em Brasília. Por outro lado, a Funasa continua como gestora da política de saúde, sem que esteja explicitado um cronograma claro acerca das mudanças pretendidas. E no que se refere ao processo de discussão mais amplo, observa-se que os povos e comunidades não têm sido contemplados. Ou seja, a transição desta política para o Subsistema não chegou sequer a ser comunicada aos indígenas e, o Ministério da Saúde, através de seus dirigentes, tem se esquivado e protelado o efetivo processo de debates, planejamento e consolidação do novo modelo de assistência à saúde.
O mais grave é que o governo vem fortalecendo a Funasa mesmo com as evidências de sua inadequação no atendimento às demandas no âmbito da saúde indígena. Exemplo claro foi a edição do Decreto 6.878 em 18/06/09 que “altera e acresce artigo ao Anexo I do Decreto no 4.727, de 9 de junho de 2003, que aprova o Estatuto e o Quadro Demonstrativo dos Cargos em Comissão e das Funções Gratificadas da Fundação Nacional de Saúde – FUNASA, e dá outras providências”. O referido decreto acabou por confirmar que antes de qualquer iniciativa de mudanças para atender as reivindicações indígenas e a própria legislação, os governantes se preocupam com o apaziguamento administrativo. No caso da Funasa, estavam abaladas as relações entre o Ministro da Saúde e os agentes da Fundação, de modo especial àqueles que têm cargos de direção. Esta medida não soluciona os graves problemas, ao contrário, institui novos cargos e incrementos em uma Fundação que vem sendo questionada e denunciada ao longo dos últimos anos. Tal fato fortalece a idéia de que este órgão da administração pública federal serve para acomodar interesses políticos regionais e federais, bem como para agraciar com empregos pessoas apadrinhadas dentro de alguns dos partidos da base de sustentação do governo.
O que resta a ser feito pelos movimentos indígenas e indigenistas diante desta realidade? Primeiro é importante que as comunidades indígenas sejam informadas a respeito de tudo o que ocorre em termos de debates, propostas e possibilidades para a política de saúde. E esta é uma tarefa a ser assumida pelas lideranças, agentes de saúde, professores, representantes das organizações dos povos indígenas, da CNPI, bem como por indigenistas e missionários que atuam diretamente nas aldeias, prestando apoio às lutas pela defesa da terra e por políticas públicas adequadas às necessidades, expectativas indígenas. Para que esta situação seja revertida, é fundamental que sejam feitas denúncias aos órgãos de fiscalização, de modo especial ao Ministério Público Federal e ao Ministério Público do Trabalho sobre a inoperância e negligência dos agentes e instituições que têm a responsabilidade de assistir e prestar serviços em saúde. Também é importante manter a mobilização e exigir das autoridades a implementação da política que vem sendo discutida há décadas pelos povos indígenas.
Porto Alegre, 23 de junho de 2009.
Roberto Antonio Liebgott
Vice-Presidente do Cimi