Infanticídio entre as populações indígenas. Campanha humanitária ou renovação do preconceito?
Nos três últimos anos os meios de comunicação, através de revistas e jornais de repercussão nacional, assim como da mídia televisiva, deram grande visibilidade ao tema do infanticídio entre as populações indígenas. Tais notícias foram em grande parte inspiradas em alguns sites sediados na Internet, produzidos por profissionais e utilizando variados recursos midiáticos, que se apresentam como integrantes de uma suposta campanha pró-vida. Neles se informa que o infanticídio seria uma prática corrente entre os indígenas do Brasil, embora apenas façam referências específicas a 12 (dos mais de 220 povos indígenas existentes no país). O seu objetivo, alegam, seria de alertar a opinião pública de que o Estado Brasileiro estaria sendo omisso e a agência indigenista conivente quanto a atitudes bárbaras e desumanas. Criticam ainda os antropólogos que seriam reféns de uma espécie de cego relativismo cultural.
A finalidade deste artigo é mostrar a falsidade dos dados ali utilizados, exibindo os equívocos e a fragilidade de sua pretensa fundamentação científica e tornando evidente a que interesses servem tais manifestações. As menções a elevados valores morais e a defesa de conquistas da humanidade não conseguem de maneira alguma ocultar que se trata de uma das mais duras investidas realizadas contra os indígenas. Não é uma campanha pró-vida, mas uma tentativa de criminalização das coletividades indígenas, colocando-as na condição permanente de réus e propondo um inquérito para averiguação de seu grau de barbárie.
Tal estratégia retórica não é de modo algum nova. Muitas regiões da América tiveram a sua população nativa exterminada antes que uma bula papal viesse a afirmar explicitamente que os indígenas tinham alma e eram homens, não podendo ser mortos e domesticados como os animais. Mas a dizimação física e cultural dos povos autóctones da América não parou nos primórdios da colonização, nem se limitou a atos realizados por exploradores sedentos por ouro, cruéis e iletrados. As mais repressivas e letais ações praticadas contra os índios da América sempre pretenderam ser justificadas por causas nobres, valores humanitários e princípios universais. O que hora assistimos é uma tentativa de re-edição, em pleno terceiro milênio, dessa farsa que tão somente pode engendrar consequências trágicas.
Trata-se de um falso debate, ardilosamente tecido para que as pessoas discutam se são a favor ou contra “que os indígenas possam exercer livremente a crueldade contra seus próprios filhos”. Implícita há a suspeita de uma natural perversão e irracionalidade dos indígenas, crença que serviu de álibi para que contra eles no passado fossem usadas sistematicamente a força bruta, a escravização e a pedagogia do medo. Uma suposição que vem do período colonial, fresca como um cadáver de cinco séculos, mas ainda bastante presente nas práticas autoritárias e no pensamento conservador.
Sabe-se que práticas de infanticídio entre os indígenas são virtualmente inexistentes no Brasil atual, como logo vieram a esclarecer a FUNAI e os antropólogos. São raros os casos onde exista informação etnográfica confiável ou consistente sobre tais fatos. Stephen Corry, em lúcido relato colocado no site www.survival-international.org/informacao/hakani e disponibilizado também pela ABA (vide www.abant.org.br), mostra como o vídeo “Hakani”, colocado no You Tube e visitado por milhares de pessoas, não é um registro documental proveniente de uma aldeia indígena, mas sim o resultado de uma absurda encenação realizada por uma entidade fundamentalista norte-americana. Utilizado como base para uma campanha contra o infanticídio supostamente praticado pelos indígenas, tem também a finalidade de angariar recursos para as iniciativas (certamente mais “pilantrópicas” do que filantrópicas) daqueles missionários.
Longe daquela encenação, um cenário real não seria de crueldade ou irracionalismo. Nas poucas ocasiões em que foram noticiados fatos que parecem indicar efetivamente o abandono ou a morte de crianças indígenas isto se dava como resposta a um infortúnio ou desgraça muito maior, que ameaçava atingir aquela pessoa, a sua família e a sua comunidade. A decisão jamais era tomada com leveza ou leviandade, implicando em sofrimento e tensão, mas vindo a ocorrer sempre com respeito, discussão e responsabilidade. Um paralelo em nossa sociedade seriam os conselhos de família, as juntas médicas e os tribunais.
Os índios contemporâneos não vivem isolados em florestas intocadas nem em um passado remoto. Em sua maioria habitam em áreas reservadas assistidas pelo Estado, em convívio intenso com funcionários governamentais, vizinhos não indígenas e autoridades municipais e estaduais, freqüentemente articulados, inclusive, com a rede de comunicação e a Internet. Argumentos e fortes reações contrárias ao infanticídio não lhes são inteiramente estranhos. Ademais seus líderes mais antigos, caciques, xamãs e anciãos, conhecem na própria pele como é pesada a mão do homem branco, soi-disant “civilizado”, quando pretende punir atos que considera inadmissíveis.
O que o relato dos antropólogos e a literatura de viagem têm evidenciado à saciedade é a existência de uma enorme preocupação entre os indígenas com a formação e o bem estar (físico e moral) de jovens. Esta atenção não se restringe aos primeiros anos de vida, mas acompanha as crianças em todas as fases de crescimento. As famílias indígenas dedicam-se intensamente à educação de seus jovens, fazendo-o com enorme densidade afetiva e simbólica, freqüentemente resistindo às iniciativas dos brancos de instalar em instituições externas (escolas, internatos etc.) o monopólio na transmissão de conhecimentos e tradições.
As tentativas de manipulação da opinião pública não levam contudo em consideração tais fatos, corriqueiros para os especialistas e os que lidam profissionalmente com a temática (educadores, médicos e indigenistas). Ao invés disso apóiam-se em depoimentos de pessoas sem qualquer vinculação com as instituições científicas mais respeitadas e que estudam o assunto. No lugar de realidades concretas colocam um abstrato “problema de consciência”, sob o qual surgem as mais equivocadas e extemporâneas manifestações.
Este “clamor da opinião pública”, inteiramente encomendado e artificial, acabou por chegar ao Congresso Nacional por meio do Projeto de Lei 1057, do deputado Henrique Afonso, que pretende legislar sobre a matéria. Ou seja, pretende estabelecer sobre as crianças indígenas o manto protetor com que o Estado brasileiro acalenta os demais jovens do país e resolve as suas necessidades e problemas.
Embora nos caiba ressalvar as intenções envolvidas, que podem ser as melhores possíveis, o fato em si beira o inacreditável. Legiões de crianças vagam pelas ruas das cidades brasileiras, sem famílias que as cuidem e orientem, sem escolas que as ensinem, condenadas à morte prematura e às doenças degenerativas. Estão – e todos o sabem – destinadas a engordar as estatísticas de desempregados, de envolvidos em atividades criminosas e clandestinas. Com exceção de alguns poucos idealistas, as autoridades parecem conviver pacificamente com o problema, apesar da magnitude e das tremendas implicações no cotidiano urbano. Quando o assunto é abordado é sempre de forma superficial, freqüentemente na vertente simplista e repressiva, enquanto parte do “problema da segurança pública”.
Como então o legislador vai debruçar-se sobre uma questão numericamente irrelevante, que não conta com registros confiáveis e que não é anotada como um problema seja pelos próprios seja pelas diferentes instituições (governamentais e não governamentais) que atuam no campo indigenista? De que expertise ele dispõe para resolver problemas de coletividades que operam com outros marcos culturais e lingüísticos, se quase nada de significativo e eficiente foi feito para resolver os problemas de sua própria sociedade? De que autoridade moral dispõe o Estado brasileiro para intervir sobre as famílias indígenas, estabelecendo parâmetros de fiscalização, retirando crianças do seu convívio e prescrevendo outros modos de socialização?
Uma legislação verdadeiramente humanitária e esclarecida deveria evitar cuidadosamente intervenções externas que somente viriam engendrar patologias na vida dos indígenas. Por que substituir a mãe, o pai, os avós, as autoridades locais por uma regulação externa e arbitrária? As crianças indígenas não são órfãs! Bem ao contrário, estão melhor protegidas e cuidadas no âmbito de suas coletividades e por suas famílias. Qualquer presumida tutela protetora precisa respeitar o direito das famílias e povos indígenas a criarem seus filhos segundo os seus próprios valores.
Uma intervenção indiscriminada, baseada em dados superficiais e em análises simplórias, equivocadas e preconceituosas não poderá contribuir para políticas públicas adequadas a estas populações. Tal intervenção pode resolver problemas de consciência de algumas pessoas, mas decididamente cria um falso problema e propõe soluções lastimáveis. Pior ainda, contribui para estimular uma visão negativa, ultrapassada e mesmo racista desse segmento da população brasileira.
O referido Projeto de Lei propõe que o Estado seja o agente promotor da criminalização de práticas tradicionais, criando apenas um caminho tout court para intervir em outras situações que julgar conveniente. O projeto coloca o Brasil na contramão da história ao tacitamente admitir a criminalização destas sociedades, ao invés de buscar a proteção de seus espaços próprios e de suas escolhas. Os quais, é claro, são também sensíveis e permeáveis ao diálogo intercultural, mas não a prepotência e ao autoritarismo. Qualquer política pública de intervenção ou mediação nestes contextos precisará ser elaborada em conjunto com as populações afetadas.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos foi construída para proteger os direitos dos cidadãos, não para dotar os grupos sociais mais favorecidos de um instrumento de afirmação de sua superioridade moral sobre grupos excluídos ou diferentes. Ela pode ser sim uma base de diálogo com sociedades diferentes da nossa, cujo respeito no Brasil foi assegurado pela Constituição de 1988, revertendo uma longa e perversa tradição colonial. Portanto, ao Estado Social de Direito cabe proteger estas sociedades para que elas possam existir como coletividades culturalmente distintas, e não sob a condição de se assemelharem mecanicamente a nossa.
Independentemente dos projetos de lei que circulam no Congresso Nacional, muitas crianças indígenas são retiradas de suas comunidades e sobre elas recaem as mais diversas formas de exploração que o Estatuto da Criança e do Adolescente procura justamente coibir. São, como outras crianças brasileiras, dirigidas ao trabalho escravo, à exploração doméstica e sexual, ao tráfico de pessoas. É para fenômenos como estes, dolorosos e nefastos para as comunidades e quantitativamente significativos, que os legisladores e administradores devem voltar sua atenção. Não para as crianças que estão sob a guarda de suas famílias, mas justamente para aqueles que delas são subtraídas.
O problema dos povos indígenas no Brasil não é o infanticídio, mas sim ter suas terras cobiçadas e invadidas, enfrentarem um violento cerco de áreas de que necessitam para assegurar a sua continuidade física e cultural, sofrerem com as várias formas de violência que resultam deste processo. Requentar velhas suspeitas e acusações coloniais, de boa ou de má fé, só pode contribuir para fortalecer os que pretendem tomar as terras dos índios e destruir suas culturas. Ou seja, trazer de volta preconceitos, o autoritarismo e o racismo que a Constituição de 88 propôs rompermos definitivamente.
A Associação Brasileira de Antropologia (ABA) vem a público se colocar ao lado dos povos indígenas do Brasil, solicitando ao Congresso Nacional o arquivamento do Projeto de Lei 1057. Esperamos que estas ressalvas possam contribuir para melhor esclarecer o espírito dos legisladores e da opinião pública.
João Pacheco de Oliveira
Pela Comissão de Assuntos Indígenas/ABA