12/05/2009

TIKUEIN, ENTXEIWI – artigo de José Ribamar Bessa Freire

‘O homem que falava com o espelho’. Esse podia ser o título, mais apelativo, da crônica de hoje. O homem é Tikuein, um índio Xetá, da aldeia São Jerônimo, norte do Paraná. Na língua dele, “bom dia” é “Entxeiwi”, saudação com que, diariamente, iniciava uma longa conversa com o espelho. “Ninguém me entendia, pensavam que eu tava ficando doido” – disse. É que ninguém na aldeia falava Xetá: só Guarani e Kaingang. Então, ele não tinha com quem trocar idéias no seu próprio idioma. Conversar com o espelho foi a estratégia que encontrou para ativar a memória e manter a língua viva. O espelho respondia: “Entxeiwi, Tikuein”. 


 


        Mas o espelho, um dia, calou: Tikuein morreu. A trágica imagem do ‘outro’, refletida, se dissipou. E o som da língua xetá? Deixou de ser ouvido? Não. Claudemir, filho de Tikuein, está vivo e levantou a bandeira do pai. Participou nessa semana da Conferência Regional Sul de Educação Indígena, em Faxinal do Céu (PR). No evento, saudou o público em seu idioma: “entxeiwi”. Conversei com ele ontem. Contou o que aconteceu com a língua e com o povo Xetá, o que talvez nos ajude a compreender melhor o Brasil e nos aproxime mais de nossa humanidade – coitadinha! – tão distante e perdida. 


 


        O povo Xetá


 


        Os Xetá eram conhecidos também como Botocudo, porque usavam um botoque de resina de pinheiro. Viviam no noroeste do Paraná, ao longo da margem esquerda do rio Ivaí e seus afluentes. As primeiras notícias dadas, em 1842, pelo Barão de Antonina, em carta ao Ministro da Guerra, elogiam os teares e os tecidos de algodão que fabricavam. Depois disso, a política do governo imperial incentivou a implantação de colônias estrangeiras nas terras indígenas, assaltadas por expedições, que queimavam aldeias e aprisionavam os moradores. 


 


        Outros índios – os Kaingang – cujas terras também haviam sido invadidas por fazendas de gado, acuados, ocuparam parte do território tradicional dos Xetá nas matas do rio Ivai, desalojando-os. Segundo o historiador Lúcio Tadeu Mota, “muitos Xetá acabaram prisioneiros dos Kaingang”. Os que fugiram da truculência dos fazendeiros e dos Kaingang, subiram as montanhas entre o Ivai e o Corumbataí, e tomaram um chá de sumiço.


 


        No entanto, na década de 1950, o Governo do Paraná, sem qualquer escrúpulo, entregou as terras indígenas às companhias colonizadoras. Os Xetá – a última etnia do Paraná a entrar em contato com o Estado Nacional – foram perturbados de novo por fazendeiros que, dessa vez, queriam plantar café. O resultado foi trágico, segundo a antropóloga Carmen Lúcia da Silva: “estupros, envenenamentos, transferências de famílias para outras áreas indígenas, roubo de crianças, dispersão de famílias inteiras que eram colocadas sobre caminhões das Companhias Colonizadoras e soltas a esmo em locais desconhecidos até hoje”. Tratamento que não se dá nem aos bichos.


 


        Os sobreviventes vagaram por aqui e por ali, dispersos, perambulando pela beira das estradas, até que foram considerados extintos. Nesse período, o lingüista Aryon Rodrigues, hoje na Universidade de Brasília (UnB), localizou os últimos falantes de Xetá e gravou conversas nessa língua, o que lhe permitiu estudá-la e classificá-la como aparentada com o Guarani, e tão diferente do Kaingang, língua da família jê, como o português é do alemão.


 


        A língua Xetá


 


        O século XXI começa com apenas três sobreviventes, que falavam fluentemente a língua Xetá: Tucanambá José Paraná, falecido em 2008, com 64 anos; Coein Manhaai Nhaguká, atualmente com 75 anos, vítima de um acidente vascular cerebral que o deixou sem fala; e Tikuein, conhecido também como José Luciano da Silva, que morreu como viveu: lutando pela língua. No dia 9 de dezembro de 2005, ele estava em Brasília, registrando dados do idioma Xetá no Laboratório de Línguas Indígenas da UnB, quando sofreu um derrame fulminante. Deixou a viúva, que não é índia, e 12 filhos.


 


        Um deles, Claudemir, de 30 anos, professor em uma escola indígena, me contou que sua língua materna, aprendida no colo da mãe, é o português. Mas desde pequeno, aos sete anos, acompanhava sempre o pai, com quem foi aprendendo algo de Xetá: “Aprendi o básico, o feijão-com-arroz” – ele diz. Claudemir fala também o Kaingang, língua materna de sua mulher.


 


        A estratégia para a língua Xetá não morrer dispensa, agora, o uso do espelho. Claudemir tem com quem conversar: seus irmãos. Quase diariamente, mas especialmente nos fins de semana, eles se reúnem na casa da mãe e procuram conversar em Xetá. Quem sabe mais, vai ensinando aos outros. Confessa que nenhum deles é fluente, mas “o professor Aryon que gravou e filmou os Xetá, está nos ajudando a botar os pingos nos ii, a escrever a língua, junto com a Carmen, que conhece muito bem os Xetá e entende o que a gente fala”.


 


        Os inquilinos


 


        Outro filho de Tikuein, Júlio César, de 22 anos, participa da nossa entrevista, ao lado do irmão Claudemir. Os dois lembram algumas histórias contadas pelo pai, uma delas fala de uma onça que estraçalhou uma índia que havia ido catar jabuticaba no mato. O avô deles, Man, preparou uma armadilha para o bicho, conseguindo matá-lo a golpes de borduna – “êditxá”, na língua xetá. “Não sei se a escrita está certa” – ele diz.


 


        “Quem colocou nomes em todos os animais e em todas as plantas fomos nós, os índios”, conta um amigo de Tikuein, Carlos Cabrera, professor guarani que também se fez presente na Conferência em Faxinal. Carlos, que mora na mesma aldeia de São Jerônimo, lembra das conversas mantidas com seu amigo, em português, mas recheadas de palavras em Xetá e em Guarani, sobretudo os nomes de ervas e plantas medicinais. 


        


        Tikuein, que perdeu cedo seu pai, migrou pra cidade, morou em Pinhalzinho. Depois, foi para a aldeia São Jerônimo, onde era o único falante de Xeta, no meio dos Guarani e Kaingang. Foi aí que, diariamente, fazia confidências ao espelho, lembrando histórias da criação do mundo Xetá e da origem das plantas e animais. Até que a antropóloga Carmen Lúcia o localizou, promovendo o encontro dele com os outros dois Xetá, num lance carregado de muita emoção. O espelho foi, enfim, aposentado.


 


        Em agosto de 1997, o Instituto Socioambiental (ISA) promoveu em Curitiba o “Encontro Xetá: sobreviventes do extermínio”, reunindo os que vivem dispersos, como inquilinos, em diferentes aldeias, “longe de seu território e impedidos de compartilhar os códigos de sua cultura, língua, organização social”. Hoje, só em São Jerônimo, são 35 famílias, com mais de cem pessoas. Eles iniciaram processo judicial para recuperar a terra e poder viver em paz em sua “apoeng”, de onde saíram contra sua vontade. Querem uma escola própria, onde possam falar e cantar em língua Xetá, ameaçada de extinção.


 


        A extinção é um risco permanente para as línguas indígenas, devido ao reduzido número de falantes e ao uso social restrito. Não existe literatura escrita nessas línguas, nem espaço na mídia. Em cinco séculos, mais de mil línguas indígenas desapareceram do mapa do Brasil. Cadê os poetas, os cantores, os rezadores, os sábios, os contadores de histórias? Onde as narrativas do vento, que explicam os mistérios do mundo?


 


        Tikuein, esse “doido” solitário, diante do espelho, nos comove, porque carrega, sozinho, sobre os seus ombros, o peso de um patrimônio imaterial da humanidade: a língua Xetá, os conhecimentos e a poesia que ela transporta, além das lembranças, quase sempre dolorosas. Daqui, de um jornal de Manaus, longe de tua aldeia, nós te dizemos: “Entxeiwi, Tikuein”. Tua língua, mesmo pendurada em um fiapo de esperança, permanece viva.


 


        P.S. – A Conferência Nacional de Educação Indígena, programada pelo MEC para setembro de 2009, cria esperanças quanto ao uso das línguas indígenas na escola e à ampliação de seus usos sociais. No Paraná, se o governador Requião contribuir para a recuperação da língua e do território Xetá, todos os seus pecados serão perdoados. Para conhecer melhor a resistência dos Xetá: 1) Carmen Lúcia da Silva: O trabalho da memória Xetá. Brasília. 2003. Tese de Doutorado em Antropologia; 2) Aryon Rodrigues: A língua dos índios Xetá como dialeto guarani. São Paulo. Cadernos de Estudos Lingüísticos. 1978; 3) Lucio Tadeu Mota e Eder Novak: Os Kaingang do Vale do Rio Ivai-PR – História e relações interculturais. Maringá. UEM. 2008.


 


José Ribamar Bessa Freire


03/05/2009 – Diário do Amazonas


 

Fonte: Diário do Amazonas
Share this: