Da aldeia à periferia
de Vanessa Ramos e Beatriz Maestri
No Brejo dos Padres, entre as cidades de Tacaratu e Jatobá, no sertão pernambucano, em meio a prolongados períodos de seca, vivem homens, mulheres e crianças indígenas. Muitos deles, porém, migraram para outros estados, fugindo da seca, de conflitos com posseiros invasores de suas terras e buscando melhores condições de vida.
Hoje, na periferia de São Paulo, muitos sobrevivem em meio às contradições e graves desigualdades sociais. Além disso, sofrem com a dispersão do grupo, pois apesar de pertencerem à mesma etnia e terem vindo todos de Pernambuco, os Pankararus estão distribuídos em vários bairros da capital e Grande São Paulo. Entre os problemas enfrentados por esse povo estão as condições precárias de moradia, emprego, saúde, a falta de terra e de uma educação diferenciada. Enfrentando uma realidade diferente da aldeia, a começar pela organização, os primeiros Pankararus da comunidade do Real Parque, zona sul de São Paulo, chegaram há aproximadamente 50 anos em busca de melhores condições de emprego. Nessa comunidade residem, atualmente, cerca de 600 indígenas.
Rejane Aparecida Silva, 28 anos, recém-formada em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), fala em entrevista sobre a realidade de seu povo. A jovem faz parte do Projeto Pindorama, criado em 2001 numa parceria entre a PUC, a Pastoral Indigenista e comunidades que vivem na capital, tendo em vista a inclusão de indígenas na universidade. Passaram pelo programa até o momento, 109 indígenas, dos quais 38 se formaram.
Como é a sua comunidade no Real Parque?
Não há uma organização como existem nas aldeias. Na comunidade moram indígenas Pankararus que há, aproximadamente, 50 anos vieram para São Paulo, em busca de melhores condições e de emprego e, no decorrer das décadas, foram se instalando nesse bairro e recebendo outros parentes da aldeia que vinham em busca do mesmo sonho. Hoje podemos dizer que a comunidade do Real Parque é uma segunda casa para os Pankararus.
Quais são as principais lutas defendidas pelos Pankararus na cidade de São Paulo?
Podemos dizer que uma das maiores preocupações é a questão da moradia, pois a comunidade está instalada dentro de uma favela, onde existem famílias morando em conjuntos habitacionais e outras que ainda moram em barracos que podem ser desapropriados a qualquer instante. Além disso, a questão da saúde, como na maioria das comunidades indígenas espalhadas pelo país, fica muito a desejar. Mas também há uma crescente preocupação com o ensino. Muitos jovens estão terminando o Ensino Médio, sem perspectiva de cursar uma faculdade. O único programa que garante realmente bolsas para os estudantes indígenas, com o apoio de alguns coordenadores, é o Projeto Pindorama da PUC-SP, que inclui indígenas na Universidade, mas que infelizmente só pode receber 12 alunos por ano.
Como você avalia a questão da educação nas aldeias? Você tem percebido a implantação de políticas públicas para a educação indígena no estado de São Paulo?
Acho que a educação nas aldeias está mais encaminhada do que a educação oferecida fora delas, pois dentro da aldeia são ensinados, além das disciplinas normais do currículo, os costumes. Em São Paulo as políticas públicas para a educação indígena que conheço são aplicadas nas aldeias Guaranis (Parelheiros e Pico do Jaraguá). Há também a tentativa de aplicação da lei federal (Nº 11.645/08) que obriga o ensino da história dos povos indígenas nas escolas.
Qual tem sido a atuação da Funai junto às populações indígenas que vivem em São Paulo?
A Funai existe porque ainda existem indígenas no país, mas o funcionamento do órgão deixa muito a desejar. A maioria dos funcionários desconhece as peculiaridades de cada povo e, em muitos casos, não sabe lidar com os problemas que surgem dentro e fora das aldeias. As verbas repassadas pelo governo federal para a Funai muitas vezes não chegam ao seu destino e não são raras as aldeias em que os indígenas passam fome. A meu ver, isso tem um nome: má administração. Quanto ao desenvolvimento educacional, a divisão de verbas é muito injusta. Há indígenas que, pelo fato de morar em aldeias, recebem em torno de R$ 400,00 de bolsa-auxílio, enquanto os estudantes indígenas da cidade de São Paulo recebem R$ 75,00 mensais. Acho que a Funai deveria ter maior respeito pelos indígenas que moram em áreas urbanas, afinal de contas mesmo não morando na aldeia, pagamos condução, compramos livros, enfim, temos gastos.
Como você observa a atuação das universidades públicas e privadas no apoio das conquistas e reconhecimentos da luta dos povos indígenas?
Das universidades públicas, as únicas que tenho conhecimento e que garantem bolsas para indígenas, são a UFSCAR (Universidade Federal de São Carlos) e a UNB (Universidade Federal de Brasília), através de cotas. Acho que as universidades públicas deveriam abrir mais espaço para o ingresso de estudantes indígenas, pois já foi demonstrado que temos capacidade. Das universidades particulares, pelo que sei, a única que tem um programa específico para os estudantes indígenas é a PUC-SP. Inclusive, vale salientar que na PUC temos o apoio de um grupo de pessoas juntamente com um coordenador do Projeto Pindorama.
Do tempo que você frequentou a universidade, quais os pontos positivos e negativos que você reconhece?
O ponto falho é a nossa falta de preparo ao ingressar na faculdade, pois a maioria de nós cursou escola pública, o que inclusive levou alguns colegas a desistirem de seus cursos por não se verem tão preparados. Pontos positivos foram vários, por exemplo, saber que, no decorrer do curso, se podia contar com o apoio dos coordenadores do projeto; ver o Programa Pindorama se expandindo, sendo conhecido em outros estados, ver colegas se formando em diversas áreas e alguns trabalhando para suas aldeias.
Houve apoio da sua comunidade para que você estudasse ou há resistência quando surgem oportunidades como essa?
Com certeza tive o apoio da comunidade, pois somos carentes de profissionais que entendam nosso modo de viver, nossa luta e nossos costumes. Cada vez mais a comunidade se abre para essas oportunidades, justamente por entender que só um indígena para compreender as peculiaridades de outros indígenas.
Após ter se formado em Direito, como pensa em contribuir junto a sua comunidade e à causa indígena no Brasil?
Já contribuo há algum tempo, pois presto serviço em uma ONG, a Ação Cultural Indígena Pankararu, criada e formada por indígenas Pankararus, da comunidade do Real Parque, e minha intenção é expandir meus conhecimentos trabalhando pela causa indígena em outros locais. Sempre participo de eventos que tratam dos direitos dos Povos Indígenas.
O que pensa sobre o Movimento Indígena no Brasil? Há perspectivas animadoras?
O movimento indígena está se aperfeiçoando. Cada vez mais encontramos indígenas atuando em suas comunidades, no terceiro setor e no setor público. O melhor é que são profissionais que atuam em diversas áreas: pedagogos, assistentes sociais, antropólogos, advogados, enfim, estão se preparando cada vez melhor.
Como se dá a relação entre as lutas pelos direitos humanos e a causa indígena no Brasil?
Acho que os direitos humanos não alcançam as reivindicações das populações indígenas. Cada povo tem sua especificidade, seu jeito. A causa indígena é muito mais antiga, nossa resistência é anterior às leis. Lutamos há mais de 500 anos pela nossa sobrevivência.
Nesse processo de conquista dos direitos, resistência e luta dos Povos Indígenas, há atuações de lideranças que marcam como, por exemplo, da advogada Joênia Wapichana. Joênia passa a ser uma inspiração para você?
Acho que minha inspiração real vem de todos esses séculos de “recusa” dos Povos Indígenas, das discriminações sofridas, o total desconhecimento de nossa cultura e do nosso modo de viver, da negação dos nossos direitos. Claro que a Joênia é uma inspiração também, mas ela ainda tem algumas vantagens: mora na aldeia, tem fenótipo de uma indígena, aquele que todos estão acostumados a ver em livros, e deve falar a língua do seu povo. Mas, e nós indígenas que perdemos nossa língua, não temos mais as características físicas que as pessoas esperam ver, que não estamos na aldeia? Pois é, temos que provar todos os dias quem somos, que temos conhecimento da nossa cultura e que mesmo assim, moramos na cidade grande.
Agora que você está formada, como pensa em atuar em sua comunidade daqui para frente, levando em conta sua área de formação?
Ficaria muito feliz em trabalhar com a questão indígena na área que escolhi, que é o Direito. Quanto a minha atuação na comunidade, vou continuar com meu trabalho na ONG e tentar alguma parceria que possibilite prestar serviço voluntário de consultoria jurídica para as pessoas da comunidade.
Vanessa Ramos é da equipe do Cimi São Paulo e colaboradora da revista Missões e jornal Brasil de Fato.
Beatriz Maestri é da equipe do Cimi São Paulo e religiosa das Irmãs Catequistas Franciscanas. Mestre em Antropologia.