04/03/2009

Promoção do etanol aproxima Planalto de grandes produtores

Apesar de alguns contratempos, 2008 foi um ano pródigo para os ruralistas – que viram a prevalência de seus interesses e foram atendidos mais uma vez na demanda pela renegociação de suas dívidas com o erário.


É fato que um dos principais vetores da aproximação dos grandes fazendeiros com a agenda do Executivo federal, a expansão do plantio da cana-de-açúcar para a produção do álcool combustível sofreu abalos a partir do final do ano passado – especialmente com a queda dos preços do petróleo e com o agravamento da crise financeira mundial. Mas a agenda do etanol permanece ativa como sempre para o Palácio do Planalto.


Realizada em novembro do ano passado, a Conferência Internacional Sobre Biocombustíveis foi montada num hotel de luxo da capital paulista para exaltar o potencial do etanol às delegações convidadas de diversos países. A expectativa era tão grande que até a presença do então presidente dos Estados Unidos, George W. Bush, chegou a ser cogitada.


Já na coletiva de lançamento do evento que consumiu cerca de R$ 6 milhões do governo brasileiro, o subsecretário-geral de Energia e Alta Tecnologia do Itamaraty, embaixador André Amado classificou os flagrantes de trabalho escravo nos canaviais brasileiros como “distorção da realidade”. Em seu discurso, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva apontou o etanol como “uma promissora alternativa para mais de 100 países em desenvolvimento” e contestou as possíveis conseqüências desabonadoras. “Nós não queremos ser os donos da verdade na área de biocombustíveis, mas não queremos permitir que nenhuma falsa idéia ou nenhuma mentira seja contada”.


Os biocombustíveis não podem ser concebidos como “panacéia”, salientou Lula. “Não vão resolver todos os problemas energéticos, ambientais, econômicos e sociais do planeta. Não defendemos que os biocombustíveis sejam produzidos a partir de áreas hoje ocupadas por florestas ou que substituam a produção de alimentos. Ficou claro, ao longo desta conferência, que a produção de biocombustíveis supõe terras disponíveis e respeito ao meio ambiente, à segurança alimentar e aos direito dos trabalhadores”, adicionou.


Do ponto de vista interno, o presidente destacou a instalação de uma mesa de diálogo entre governo, empresários e trabalhadores, sob a alçada da Secretaria-Geral da Presidência, para tratar das condições laborais e sociais do setor canavieiro. Prometido para o evento internacional de 2008, o zoneamento agroecológico específico para a cana – que deve banir plantações nas regiões da Amazônia e do Pantanal, pelo menos segundo a promessa federal – deve vir a público apenas neste mês de março.


Na esfera internacional, Lula manifestou a intenção de estimular países riscos a entrar na “era de biocombustíveis” por meio de parcerias com os países mais pobres, sobretudo africanos. “É uma forma de a gente ajudar a desenvolver a África, e é uma forma de resolver o problema da migração. Enquanto não tiver esperança, emprego e renda, as pessoas se tornarão nômades, viajando pelo mundo afora. Não adianta aprovar lei que proíba a migração, é preciso que tenha políticas de solidariedade e políticas de desenvolvimento”, continuou.


No final, sobraram resoluções amigáveis aos benefícios do álcool combustível, mas não surtiu o efeito almejado pelo Palácio do Planalto e pelo Ministério das Relações Exteriores (MRE). Durante a conferência, Maurício Tolmasquim, presidente da Empresa de Pesquisa Energética (EPE) ligada ao Ministério de Minas e Energia (MME), pediu pressa e chegou a dizer que teme que “grandes exercícios acadêmicos” a respeito de critérios de sustentabilidade do setor possam resultar em perda de oportunidades.


Durante a conferência, articulações e organizações da sociedade civil – como a Via Campesina, o Fórum Brasileiro de ONGs e Movimentos Sociais para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento (FBOMS) e a Central Única dos Trabalhadores (CUT) – participaram de um evento paralelo para tratar de impactos menos nobres do etanol. Ao final, divulgaram documento em que discordam “radicalmente do modelo e da estratégia de promoção dos agrocombustíveis”.

“Esta estratégia representa um obstáculo à necessária mudança estrutural nos sistema de produção e consumo, de agricultura e de matriz energética, que responda efetivamente aos desafios das mudanças climáticas”, emendam as organizações sociais, que defendem a “soberania energética e alimentar”.

Para tanto, sugerem “um sistema alimentar calcado na reforma agrária em bases ecológicas adaptada as particularidades de cada bioma, como real alternativa aos problemas da escravidão no campo, da superexploração dos trabalhadores rurais e de concentração e acesso a terra; o fortalecimento do campesinato e das economias locais; a valorização dos hábitos alimentares e culturais; a diminuição das distâncias entre produção e consumo e relações solidárias de comércio”. 

Recomendam ainda um “modelo de produção e consumo de energia e de transporte baseado na racionalidade e economia, através da mudança nos atuais padrões de consumo, na diminuição dos fluxos planetários de bens e energia do sistema econômico globalizado, e em modelos de mobilidade que priorizem o transporte coletivo, públicos e de qualidade em detrimento dos automóveis individuais” e “a substituição de combustíveis fósseis por fontes renováveis de energia produzida de forma descentralizada e para atendimento das demandas locais, bem como o apoio de assistência técnica e desenvolvimento de pesquisas voltadas aos interesses dos povos”.

Na ocasião, a subchefe-adjunta da Casa Civil, Tereza Campello, afirmou à Repórter Brasil que o governo está aberto para receber a opinião da sociedade civil e que parte das questões colocadas pelo documento dos movimentos sociais (como as questões de segurança alimentar e a concentração fundiária) também faz parte das preocupações do governo.

A representante do governo afirmou ainda que 15 mil mapas foram preparados para a estruturação do zoneamento agroecológico da cana-de-açúcar e que políticas públicas serão expandidas, em cooperação com governos estaduais e municipais. De acordo com ela, o poder público tem de assumir a função de disciplinar as atividades, pois a expansão do cultivo para a produção do álcool combustível é um dado da realidade de mercado.

Uma coleção de dados mostra que os agentes do mercado não podem reclamar do empenho do governo para incentivar empreendimentos sucroalcooleiros. Há uma expectativa que o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) mantenha em 2009 o mesmo montante de crédito destinado ao setor em 2008: R$ 6,5 bilhões. A produção de etanol no ano passado somou 24,6 bilhões de litros e deve crescer em 2009, mesmo com as “intempéries” que abalam a economia mundial. Mais R$ 2,5 bilhões extras estão sendo separados para financiar o setor, por meio de recursos da Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico (Cide) ou de uma nova linha específica de crédito.

No bojo da promoção do etanol, outra grande mão que o governo pretende dar aos exportadores do agronegócio está na criação dos cargos de adidos agrícolas em oito embaixadas do Brasil: Buenos Aires (Argentina), Bruxelas (Bélgica), Genebra (Suíça), Moscou (Rússia), Pequim (China), Pretória (África do Sul), Tóquio (Japão) e Washington (Estados Unidos). O reforço na equipe para a promoção comercial de produtos primários não contentou completamente os fazendeiros, que reclamaram da exigência de que o escolhido para a função faça necessariamente parte do quadro de servidores públicos. A bancada ruralista gostaria que o aspirante a adido agrícola fosse referendado pelo Congresso e fosse aberta para qualquer profissional da área. Defendem abertamente que a Confederação da Agricultura e Pecuária (CNA) possa indicar nomes.

Biocivilização e controle social
Especialista no tema, o economista Ignacy Sachs, da Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais (França) avalia que as organizações da sociedade civil que apóiam mudanças no modelo atual não podem “desistir antes da batalha”.

Para Ignacy, a civilização mundial vive o limiar, o começo de transição da era do petróleo para o paradigma da biocivlização moderna – que toma como base os usos múltiplos da biomassa: para a geração de energia, na construção civil, em fármacos e composição de cosméticos etc.

Esse modelo diferenciado de produção deve vir associado à mudança complementar no perfil da demanda – no modo de vida da sociedade. A produção de cana ou de soja, na opinião dele, não significa necessariamente latifúndio. Microdestilarias de álcool ligadas a Petrobras no Rio Grande do Sul seriam exemplos de participação maior dos pequenos. A implantação de consórcios agrosilvopastoris teria a contribuir nesse sentido, ajudando a atacar dois problemas centrais: mudanças climáticas e desemprego.

Representantes de entidades mais ligadas aos trabalhadores tendem a ver o cenário de forma muito mais pragmática. “Na realidade, álcool não substitui nada. É um aditivo do petróleo. Dá sobrevida ao modelo”, declara Elio Neves, da Federação dos Empregados Rurais Assalariados do Estado de São Paulo (Feraesp). Em plena safra do ano passado, ele já anunciava que o salário dos cortadores de cana estava atrasado em propriedades de Ribeirão Preto (SP). “O desrespeito ao trabalhador continua em Piracicaba, onde há plantações de cana-de-açúcar há mais de 200 anos”, completa, reforçando traço evidenciado pelo relatório sobre os impactos sociais e ambientais da cana em 2008 do Centro de Monitoramento dos Agrocombustíveis (CMA) da Repórter Brasil.

O dirigente da Feraesp afirma que os custos do agronegócio para o governo e para a sociedade em geral são “escamoteados” de diversas formas e que, se todos os impactos fossem realmente computados, o preço do litro de álcool nas bombas dos postos de combustível seria bem maior. Ele apresenta uma série de “subsídios” que estão na base da produção, como facilidades para a compra de maquinárioe o não pagamento das contribuições da Previdência ao Instituto Nacional de Seguro Social (INSS).

Um dos pontos levantados por ele está na utilização dos recursos hídricos, da água no processo de produção do agrocombustível. A produção de cana-de-açúcar de São Paulo, segundo ele, é “lavada”. E a água utilizada vem de mananciais e aqüíferos que dizem respeito a todos. “Quem pensa ´não tenho nada a ver com isso´ e ´não posso fazer nada porque não planto cana e não sou canavieiro´está enganado. A água é nossa”. Em breve, a sociedade questionará o direito de gerir recursos do Aqüífero Guarani, profetiza.

Ele recusa ainda a lógica de que o etanol é “bom” porque o petróleo é “ruim”. “Não podemos dar lugar à hipocrisia”, critica. A aliança dos grandes produtores com o setor financeiro, porém, abriu espaço para um grau de transparência e de controle social associado ao mercado de ações. “É uma via de mão dupla. Não há mais espaço só para a enrolação. Não adianta os meios de comunicação e as assessorias se esforçarem em esconder problemas”.

A partir dessa democratização de informações e dessa noção de controle social, a gestão dos recursos naturais deve se expandir. “Infelizmente, terra não é considerada bem público. Mas a produção de álcool utiliza muita água e, sem a luz solar, não há sacarose na cana”, complementa Elio.

Outro custo
Recursos para a assistência social dos cortadores de cana também acabam no colo do Estado. Pesquisa em andamento professora da Faculdade de História, Direito e Serviço Social da Universidade Estadual Paulista (Unesp) de Franca (SP), Raquel Sant´Ana, aferiu que houve aumento dos gastos sociais em municípios pequenos (com menos de 20 mil habitantes) nos quais o cultivo de cana-de-açúcar é a principal atividade econômica.

O levantamento acadêmico revela que as prefeituras podem fazer muito pouco, já que dispõem de poucos recursos para atender o público migrante, que não é contabilizado na hora do repasse de verbas para a assistência social. Além disso, muitos dos municípios servem apenas de “dormitório” para os trabalhadores e sequer recebem recursos de impostos e taxas de produção pagos pelas usinas e pelos grandes produtores de cana. 

Por meio de entrevistas com assistentes sociais e cortadores, a pesquisa mostra um quadro de adoecimento, mortes e invalidez. Nas palavras de Raquel, as situações encontradas são de gravidade extrema e não retratam casos de exceção. Vômitos e cãibras são comuns.

“É mais difícil falar com os trabalhadores que estão na ativa, pois eles tentam disfarçar [as dores e os problemas de saúde]”, coloca a professora Raquel, da área de Serviço Social. Até o cumprimento da Norma Regulamentadora (NR) 31, que estabelece regras para o trabalho rural, tem corroborado para forçar o ritmo de trabalho: por causa da pausa regulamentar para o almoço, eles acabam tendo menos tempo para cortar mais cana. Em alguns casos, são 12 toneladas por dia como patamar de exigência dos empregadores.

Cortadores tomam sopa de fubá porque não conseguem concentrar energia para abrir a boca e mastigar nada. Há relatos ainda de mortes não noticiadas. Momentos de lazer são raríssimos e todo o tempo em casa é utilizado para recobrar forças. E nessas cidades menores pesquisadas, não há alternativas de emprego na indústria, nem na construção civil e nem ao menos como domésticas, no caso das mulheres. Daí o acúmulo de casos de cortadores de 40 a 60 anos na assistência social, que acabam sem ter a quem recorrer.

Fonte: Repórter Brasil
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