Cana, carnaval e aty guasu Guarani
Semana de carnaval. Vamos botar o bloco na rua, ou melhor, na aldeia. Ainda meio sonolentos fomos tentando arrumar os “trem”, como diria o mineiro, para um dia intenso de viagem de contato com as aldeias Guarani na região da fronteira com o Paraguai. São três e trinta da madruga. Enquanto nos arrumamos, um rápido clic na TV. No sambódromo estava desfilando a Viradouro. No seu enredo sugestões para salvar o planeta. Num carro alegórico um monte de canas de açúcar gigantes, em cada uma com uma bela mulata sambando. Na avenida o bloco da cana, com o comentarista entusiasta da globo anunciando “a salvação que vem da cana”. Cá com meu botões fiquei pensando “e a perdição também”. Certamente o etanol visto da cidade, do sambódromo, enchendo o tanque com menos grana e poluição, é uma maravilha. A cana branquinha ou amarelada num litro é uma tentação permanente. Mas cortar cana de sol a sol, num trabalho estafante, escravo, durante a curta vida útil de um trabalhador nessas condições, talvez tenha passado longe da cabeça e sentimentos do carnavalesco e dos passistas. Quem sabe a presença, por alguns dias, no estado de São Paulo ou Mato Grosso do Sul e o enredo seria outro.
Parece que a euforia “canífera” arrefeceu. A assim chamada crise neoliberal-capitalista também melou um pouco o embalo do etanol. A busca de energias alternativas, da diminuição do consumo de energia, o aquecimento do planeta e a ameaça que pesa sobre a vida na terra, levam necessariamente a desmascarar as tentativas de endeusar determinada matriz energética. Essa questão passou com muita força, como um furacão no Fórum Social Mundial,
As aldeias não estão imunes ou alheias a essa questão. Pelo contrário, os Guarani Kaiowá no Mato Grosso do Sul estão diretamente impactados pela euforia do setor socroalcooleiro e pela expansão da monocultura da soja-milho, pela “missão civilizadora do boi”, como disse um general durante os anos duros da ditadura militar, na década de setenta, pela aceleração do agronegócio, que como um “tsunami” avassala toda a região. Quem mais sofre com isso são os povos indígenas, pois além da exclusão dos benefícios tem sistematicamente seus direitos, especialmente à terra, negados.
Em memória de Delosanto
A primeira parada foi na Terra Indígena Yvy Katu, que fica há mais de
Logo no início da Grande Assembléia foi anunciada a homenagem ao grande lutador Delesanto, falecido no dia 8 de fevereiro. Em homenagem a ele foi feito a dança ritual do “Yvirá ijá”, próprio dos Avá, uma espécie de treinamento marcial, guerreiro.
Rosalino Xirino fez a sua fala a respeito do grande amigo de lutas memoráveis, contabilizando a participação em 13 retomadas de terra. Entregou um documento onde narra essa bela página do povo Guarani nas últimas décadas. De seu encontro com o grande líder, dois dias antes de sua morte registra a fala de Delosanato “eu vou deixar para todos meu história, herança é a luta pela terra. Eu me sinto que não posso mais aguentar minha doença. O dia que eu me descansar pode me guardar aqui no Yvy Katu, só que não quero vocês deixar nossas rezas e guachiré aqui no “oga pisy”(casa de reza), para fortalecer a luta
Denuncias , anúncios e cestas básicas
O cacique de Tey Kue relatou o fato de várias crianças Guarani Kaiowá terem sido doadas a gente de São Paulo e Santa Catarina. O que gerou revolta é o fato de essas crianças, retiradas das famílias alegando falta de condições dos pais, terem sido negadas à guarda de outras famílias desse povo que fizeram essa solicitação e lhes foi negada a adoção das crianças. Disso que exigiria uma explicação dessa realidade.
Essa comunidade é uma verdadeira ilha de gente rodeada por bois de todos os lados. Ali vive mais de uma centena de famílias Guarani em menos de 600 há, sendo que a terra já demarcada é de 7.305 há.
Apesar dessa carestia e dificuldades os Guarani Avá-Nhandeva e Kaiowá conseguem manter uma profunda esperança num futuro em que tenham de volta a paz e liberdade em suas terras. Esse testemunho de que é possível viver alegre numa situação de extrema simplicidade , com muita vida e poucos bens, é o grande testemunho de caminhos diferentes para a humanidade. É a boa nova Guarani, a busca da terra sem males.
Em várias comunidades estavam sendo distribuídas as cestas básicas. Com atraso, diga-se de passagem. Não deixam de ser um momento de animação e constrangimento. Mas também um momento de reflexão sobre a razão de terem chegado a essa lamentável situação de dependência. Com os alimentos segue uma espécie de veneno que anestesia a consciência, debilita a auto-estima, produz e reforça a cultura da dependência e acomodação. Em Ñanderu Marangatu, onde também estava sendo distribuída a cesta básica pelo governo do Estado, as lideranças informaram que a responsável pela entrega apenas queria dar a cesta para quem tem CPF. Isso é considerado um absurdo uma vez que boa parte das pessoas mais antigas nem certidão de nascimento tem.
Em uma das comunidades as mulheres estavam aglomeradas à beira da estrada e em algumas casas. Pensando que estavam à espera da cesta básica, informaram que aguardavam a chegada do patrão da usina onde seus maridos e filhos estão trabalhando. Vão receber um pequeno vale.
Numa das comunidades a gente pode perceber a existência das roças familiares, complementadas com a pesca no rio Apa e caça ainda relativamente farta na parte de mata que existe na Terra Indígena Pirakuá, onde vivem 440 pessoas. Esta foi a primeira retomada feita em 1982, que teve o apoio de Marçal de Souza e foi a causa de seu assassinato menos de um ano depois.
A Aty Guasu da Identificação da Terra
Falta apenas um pouco mais de um mês para expirar o prazo de publicação do relatório de identificação das terras Kaiowá Guarani, conforme o Termo de Ajustamento de Conduta. Essa é uma das grandes preocupações dos Kaiowá Guarani neste momento.
Tempos e contratempos. Eles tem consciência de as constantes protelações na identificação de seus territórios é o responsável por estarem passando hoje por uma das piores situações indígenas do país. E se houver novamente um retrocesso isso poderá se refletir num claro quadro de genocídio que irá incriminar os responsáveis nos tribunais nacionais e internacionais.
Reveste-se, portanto, de fundamental importância esse momento de traçara as estratégias de luta, mobilização e pressão para que o processo de identificação das terras aconteça dentro dos prazos estabelecidos.
O início da Assembléia é sempre um emocionante ritual Ao som dos mbaracás e takuaras, com sons e vozes harmonizadas se constrói a certeza de que tudo irá correr bem e os espíritos contrários não prevalecerão.
Em seguida vem a parte central, que é da palavra, da fala das lideranças, Desta vez foi também a fila do desabafo. Existem tensões no ar. A influencia de fazendeiros e políticos contra a demarcação das terras se materializou na investida simbólica e física contra a administração da Funai regional. Ou melhor, aspiração de tomar conta da Funai para tentar estancar e inviabilizar o processo de identificação e demarcação das terras, em curso.
Depois de falas e debate os temas centrais da terra e sustentabilidade, organização e alianças foi aprofundado
No decorrer da Aty Guasu chegou a informação da prisão de mais dois membros da comunidade de Passo Piraju.
No final do encontro ficou acertado que as forças deveriam ficar centradas no processo de reconhecimento das terras, exigindo da Funai o cumprimento do Termo de Ajustamento de conduta. A questão da atuação da Funai, especialmente a administração regional do Cone Sul, ficou de ser discutido e exigido respostas por ocasião da vinda do presidente da Funai, no mês de março.
Terra Indígena Amambaí, 27 de fevereiro de 2009
Egon Heck