17/02/2009

Júri do assassinato de líder indígena é transferido para São Paulo

Para evitar influência econômica de fazendeiro e garantir a imparcialidade dos jurados, MPF pediu que julgamento deixasse o interior do MS e viesse para a capital paulista




O assassinato do cacique guarani kaiowá Marcos Veron, ocorrido em janeiro de 2003 em Juti, no interior do Mato Grosso do Sul, deverá finalmente ser julgado. O Tribunal Regional Federal da 3ª Região, seguindo integralmente manifestação do Ministério Público Federal, determinou que o Tribunal do Júri ocorra em São Paulo, medida tomada para garantir a imparcialidade dos jurados e evitar que a decisão sofra influência social e econômica dos supostos envolvidos no crime.

Acampados na terra indígena Takuara, na fazenda Brasília do Sul, os kaiowás sofreram ataques, entre os dias 12 e 13 de janeiro de 2003, de quatro homens armados que teriam sido contratados para agredi-los e expulsá-los daquelas terras. Armados com pistolas, eles ameaçaram, espancaram e até atiraram nas lideranças indígenas. Veron, à época om 72 anos, não resistiu às agressões e morreu com traumatismo craniano no hospital.

Respondem pelo assassinato Estevão Romero, Carlos Roberto dos Santos, Jorge Cristaldo Insabralde e Nivaldo Alves de Oliveira. Em outubro o MPF ofereceu denúncia contra outras 24 pessoas por envolvimento no crime.

Entre os motivos levantados pelo MPF para pedir a transferência do Tribunal do Júri de Dourados (MS) para a capital paulista estão o poder econômico e a influência social do proprietário da fazenda, Jacinto Honório da Silva Filho. Fazendeiro com terras espalhadas por Mato-Grosso do Sul e outros Estados, Jacinto Honório teria negociado com dois índios a mudança de seus depoimentos. Vítimas da agressão, eles teriam sido contratados para trabalhar em uma de suas propriedades na Bolívia.

Também assinaram um depoimento em 2004 mudando a versão que deram ao crime no dia seguinte ao assassinato: inocentaram os seguranças contratados pelo fazendeiro e passaram a responsabilizar um outro índio, já morto, pelo assassinato do cacique Veron. O fazendeiro teria tentado, inclusive, comprar o depoimento do filho do cacique assassinado, oferecendo-lhe bens materiais em troca da assinatura de um termo de depoimento já redigido.

Além disso, em seu pedido de desaforamento (mudança de local do júri), o MPF cita as manifestações do juiz estadual que preside o Tribunal do Júri da comarca de Dourados, Celso Antônio Schuch Santos. Num júri por ele presidido, o magistrado teria se manifestado oralmente contra os indígenas e contra o procurador da República do caso. Nomes que figuram na lista de jurados da justiça federal em Dourados também poderiam figurar na lista de jurados do juízo estadual da Comarca de Dourados.

Para o MPF, nem mesmo a realização do Tribunal do Júri em Campo Grande seria suficiente para garantir a imparcialidade. Manifestações na Assembleia Legislativa sul-mato-grossense, condenando os acampamentos indígenas e relativizando a morte das lideranças, bem como opiniões desfavoráveis aos índios em diversos jornais do Estado também foram juntadas para mostrar que um Júri Federal realizado em qualquer subseção judiciária do estado teria viés contrário aos índios. O MPF apresentou ainda nota técnica elaborada pelo analista pericial em antropologia da instituição, considerada pelos desembargadores na sessão como sendo muito clara e muito bem fundamentada no sentido de não haver no local condições de isenção suficientes para garantir um julgamento imparcial.

Segundo argumentou o MPF, existe um forte preconceito contra o povo indígena por parte de membros importantes da sociedade sul-mato-grossense. Entre as críticas aos indígenas proferidas pela Assembleia Legislativa apenas dois meses após a morte de Veron estava o fato de os índios terem enterrado o líder na própria área invadida. O enterro foi realizado com amparo de uma decisão da Justiça Federal proferida em resposta a uma ação civil pública do MPF e, por esse motivo, a instituição também foi criticada por “apoiar indistintamente as invasões de terras privadas”.

O parecer da Procuradoria Regional da República da 3ª Região, ao defender o desaforamento para São Paulo, lembra que o julgamento de Hidelbrando Pascoal foi transferido do Acre para Brasília. Também cita as mudanças do Código de Processo Penal, implementadas no fim de 2008, que prevê expressamente a transferência de Tribunais do Júri para comarcas distantes do local do crime sempre que a imparcialidade estiver prejudicada, ou que pesem fatores como os descritos na manifestação do MPF, como o poder econômico e a influência social do fazendeiro proprietário das terras que foi palco do crime.

Ineditismo – A decisão pelo desaforamento foi unânime na sessão de ontem, 11 de fevereiro, do Órgão Especial do Tribunal Regional Federal da 3ª Região. A única divergência foi em relação ao local para onde o Tribunal do Júri deveria ocorrer. Venceu a capital paulista, por quinze votos a dois. A desembargadora Anna Maria Pimentel destacou que o julgamento de pedido da transferência do Júri entre estados é medida inédita na história do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, inaugurado em 1989 e que tem sob sua jurisdição São Paulo e Mato Grosso do Sul. Os votos vencidos, dos desembargadores Márcio Moraes e Suzana Camargo, defendiam que o julgamento fosse transferido da Comarca de Dourados para a de Campo Grande.

Em seu voto, a desembargadora relatora, Diva Malerbi citou a nova redação do Código de Processo Penal e destacou que a “transcendência” do caso, de repercussão internacional, justificava a escolha de São Paulo como palco do julgamento.

Na sessão, a desembargadora Leide Polo falou sua experiência no Mato Grosso do Sul, ocasião na qual ao longo de um mês viu acampamentos de assentados em todos os lugares, e concluiu que há envolvimento muito grande de todos em relação a conflitos fundiários. Nestes, segundo ela, há um envolvimento total de toda a população, e, por isso, não haveria isenção no julgamento nem mesmo na capital, Campo Grande.

Em seus votos, os desembargadores reconheceram que o alto poder econômico e a elevada influência social do fazendeiro Honório da Silva Filho poderia contaminar a decisão do júri. Também entenderam que a questão indígena é muito sensível no estado do Mato Grosso do Sul, que tem a segunda maior população indígena do País, e que a sociedade local tem idéias pré-concebidas sobre o assunto. Para os desembargadores, isso ficou bem demonstrado em fatos concretos apresentados pelo MPF, como as publicações dos veículos de comunicação locais, sempre contrárias aos índios.

Conflitos – Marcos Veron foi a terceira liderança assassinada em meio aos conflitos do povo guarani kaiowá e proprietários de fazendas do Mato Grosso do Sul. O caso, que teve repercussão nacional e internacional, teve sessão do Tribunal do Júri marcada para o dia 23 de abril de 2007.

Dois dias antes da sessão que julgaria a ação penal, o TRF-3 a suspendeu. Paralelamente, tramitava no Supremo Tribunal Federal (STF) pedido em liminar de habeas corpus pedindo a soltura dos réus e questionando a competência da Justiça Federal para o caso.

O ministro Eros Grau negou os pedidos. O habeas corpus, no entanto, foi redistribuído e a defesa pediu reconsideração ao novo relator, o ministro Gilmar Mendes. Em junho de 2007, Mendes determinou a soltura imediata dos acusados de assassinar o cacique Veron e reconheceu a Justiça Federal como a competente pelo júri do assassinato. Ficou estabelecido que o julgamento ocorreria após a definição do local do Tribunal do Júri pelo TRF-3, decisão tomada ontem na sessão do Órgão Especial.

Fonte: PRR 3
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