06/02/2009

Assassinato de Ye’kuana aconteceu no “último trabalho”

Luis Vicente não atendeu aos apelos das lideranças de Waikás e acabou morto a tiros por se recusar a guiar um grupo de garimpeiros para o coração da Terra Yanomami. O relato é baseado em depoimentos dos lideres Ye’kuana: Reinaldo Wadeyuna, Martin, Albertino Gimenes, Henrique Aleuta Gimenes e Xavier Francisco Ximenes.


 


Luiz Vicente Carton trabalhava para os garimpeiros desde 1990. Guiava homens e máquinas, favorecendo a entrada de garimpeiros na terra Yanomami. Seus filhos Ronaldo e Ronildo trabalhavam com ele. Moravam numa maloca nas proximidades do porto da “Boca do Arame”, que fica fora dos limites da terra Yanomami, no final da vicinal 6, no interior do Assentamento Paredão, próximo da “Ilha do Maracá” (RR). Ajudaram na construção da estrada vicinal que facilitou o acesso dos garimpeiros até o porto.


 


Mas Luiz queria parar de trabalhar com os garimpeiros e voltar a morar na comunidade de Waikás, dentro da terra Yanomami. Tinha recentemente ido para lá, conversado com as lideranças locais e iniciado a construção de uma casa para morar com sua família.


 


Porém Ronaldo, seu filho mais velho, o chamou de volta para fazerem um “trabalho” para um novo “empresário do garimpo”. O tuxaua de Waikás, Eduardo Carlos da Silva, disse para Luiz não voltar para a Boca do Arame. Luiz não atendeu ao aviso do tuxaua e aceitou fazer um “último trabalho”. Os lideres Ye’kuana disseram a ele para não levar mais garimpeiros para perto das áreas ocupadas pelos Ye’kuana.


 


Luiz voltou para a Boca do Arame, encontrou um grupo de cinco garimpeiros liderados por um tal de “Daniel”, equipados com motores grandes, mas com pouco combustível. Ele foi para Boa Vista encontrar com seu filho Ronaldo e comprar mais combustível.


 


Enquanto isso os garimpeiros transportaram seus equipamentos para perto do “Posto Uraricoera”, dentro da terra Yanomami, pois pretendiam entrar para além da grande cachoeira do Tucano, em direção da comunidade de Waikás. Luiz retornou com o combustível para a Boca do Arame e foi ao encontro dos garimpeiros. Chegando lá comunicou a eles que deveriam trabalhar ali mesmo, pois não poderiam avançar para além do posto.


 


 


Depoimento de Ronildo Carton, filho de Luiz: baleado, conseguiu escapar:


 


Os garimpeiros pediram para meu pai deixá-los no garimpo do Uraricoera, negociando em dinheiro. Ele concordou em levá-los até o local. Levaram dez dias para chegar até na região Uraricoera. Chegando no Uraricoera ele disse para eles: “Daqui vai ser mais três mil reais, em dinheiro”. Assim começou a discussão entre eles. Meu pai se negou a fazer o transporte. Ele disse para eles: “Agora aqui vocês vão trabalhar, porque daqui não posso levar vocês”. O desejo dos garimpeiros era chegar a Mucuim, um local onde já garimparam antigamente, que fica acima da comunidade Waikás.


 


Continuou a discussão. “Acelerado”, um dos garimpeiros, disse para ele: “se eu tivesse sozinho eu já teria matado você agora mesmo”. No final da tarde queríamos visitar a comunidade Uraricoera e o posto da FUNAI, mas “Acelerado” segurou a corda da canoa, dizendo para não irmos. Não teve acordo entre eles. Na manhã seguinte decidiram voltar, dormiram uma noite. Chegaram ao Porto do Arame. Os garimpeiros ficaram no porto principal e nós fomos para um acampamento perto da nossa maloca que fica a 30 minutos de motor do Porto do Arame. Nessa hora meu pai, Luiz Vicente, pediu 50 litros de gasolina para voltar. “Acelerado” negou.


 


Na manhã seguinte eu e meu pai estávamos conversando, perguntando se está bem de saúde. Era 06:00 horas da manhã. Nessa hora ouvimos o barulho do motor. Levantamos da rede e vimos três garimpeiros chegando. Chegaram dizendo: “Bom dia”! Em seguida eles obrigaram eu e meu pai a sentar no chão. Meu pai não queria. Pediu para eles ficarem calmos, mas não adiantou. Deram o tiro na testa dele. Em seguida, atiraram em mim também. Fui acertado com um tiro da mesma espingarda, só que no ombro. Os tiros foram disparados por “Acelerado” a mando de Daniel.


 


Depois do tiroteio, o corpo do meu pai foi colocado na nossa canoa e lá me colocaram também. Fingi que estava morto.Os garimpeiros disseram: “vamos jogar os corpos dentro da água com pé de pomba amarrado neles”.  Fomos colocados dentro de uma canoa. Quando eu estava dentro da canoa os garimpeiros estavam passando por cima. Eu estava embrulhado em minha rede, por isso os garimpeiros não perceberam minha respiração. Seguiram ao rumo Cachoeira do Tucano, pelo rio Uraricoera.


 


Chegando perto da Cachoeira do Tucano, como o rio é de difícil acesso, os garimpeiros não conhecem, tinham dificuldade de passar. Decidiram ir no barco menor, que era deles, deixando a gente na nossa canoa grande. Levantei e vi que eles estavam indo. Fiquei mais ou menos 3 minutos em pé. Vi um galão com beiju dentro. Me joguei dentro da água, atravessei três ilhas grandes, nadando. Como já sabia que ia morrer não tive medo. Quando estava na última ilha ouvi o barulho dos dois motores. Vi que estava sendo perseguido. De novo cai dentro da água. Me escondi na mata após sair do rio. Mas não cheguei a ver eles, só ouvi o barulho do motor. Quando eu estava no meio do caminho, numa montanha, consegui ver que os garimpeiros estavam voltando.


 


Fui até a minha casa para pegar a minha lanterna. Passei pelo local onde atiraram em mim e no meu pai e vi que eles tinham lavado o nosso sangue do chão. Peguei a canoa que estava guardada, consegui colocar dentro da água. Desci o rio e enfrentei mais três cachoeiras. Cheguei na boca do rio Arame, subi um pouco, lá escondi a canoa. Depois segui o caminho que chega ao porto principal. Naquela hora ouvi a conversa dos três garimpeiros. Peguei o caminho dos Yanomami, que acompanha a estrada. Um caminho que os garimpeiros não conhecem.


 


Cheguei à primeira fazenda, procurei ajuda de um conhecido. Ele disse que podia me levar de cavalo, mas não ia adiantar porque o meu ombro estava machucado e doía muito.  Sai daquela fazenda seguindo a estrada e cheguei na segunda fazenda. O morador ficou assustado, viu que eu estava sofrendo. Ele queria me socorrer, mas não tinha gasolina. Então fui na terceira fazenda, o dono me socorreu. Ele tinha moto e combustível. Ele me levou até na Vila do Paredão, de lá ele chamou a ambulância de Alto Alegre que me levou até Boa Vista.


 


 


 


Mauricio Tomé Rocha


Coordenador da Terra e Ambiente da Hutukara Associação Yanomami

Fonte: Cimi
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