Na solução do caso Raposa Serra do Sol se estabelecem restrições aos direitos de todos os povos indígenas
O Supremo Tribunal Federal adiou, pela segunda vez, a decisão acerca da legitimidade do decreto presidencial que homologou a Terra Indígena Raposa Serra do Sol. Com oito votos favoráveis esta decisão era óbvia, inevitável e justa, mas a sessão foi suspensa e prorrogando-se sua data para o próximo ano e portanto, protelando o veredicto de uma ação que já passou por minuciosas argüições, vistas e discussões. Isso nos leva a pensar que, neste momento, o poder judiciário é palco de lutas no qual se encenam diferentes intenções, algumas amparadas no direito constitucional indígena, outras em interesses econômicos e políticos sobre as terras que deveriam ser resguardadas para usufruto exclusivo dos povos indígenas.
O ministro Menezes Direito, em seu voto-vista, pronunciou-se favorável a manutenção do decreto homologatório, mas, ao mesmo tempo, inseriu no corpo de sua argumentação 18 condições a partir das quais as demarcações das próximas áreas indígenas deverão estar pautadas. Algumas delas já estão contempladas no texto constitucional e outras visam enfatizar a restrição ao usufruto das terras e de seus bens pelos povos indígenas, bem como, estabelecer plena liberdade a União para que esta, de acordo com seus interesses, explore terras e recursos dela advindos, sem prévia consulta às comunidades.
Na argumentação apresentada, o ministro Menezes Direito pretende estabelecer uma definitiva divisão entre propriedade das terras indígenas, que é da União, e a posse, esta dos povos indígenas. No entanto, o magistrado submete os indígenas, através de suas condicionantes, a uma condição passiva, a mercê da vontade e dos interesses da União e de suas instituições, tais como das Forças Armadas, Polícia Federal, Instituto Chico Mendes de Biodiversidade entre outras, que poderão administrar, intervir, construir, ocupar, usufruir de partes das áreas indígenas.
Outro aspecto destacado no voto-vista do ministro é a possibilidade de realização de grandes empreendimentos nas terras indígenas sem que os povos sejam consultados ou que venham a obter benefícios pelos impactos que estes empreendimentos causarão ao meio ambiente e à vida social e cultural de tais comunidades. E, se porventura os povos indígenas necessitem explorar algum recurso das terras, como é o caso do garimpo, devem obter autorização do Congresso Nacional. O ministro estabelece condições para o usufruto das terras por parte dos indígenas e, ao mesmo tempo, libera a União de qualquer obrigação com relação aos danos que esta venha a causar em função de empreendimentos, tais como malhas viárias, de geração de energia, de exploração mineral e para a instalação de unidades, pelotões e guarnições militares entre outros.
Se, por um lado as 18 condições para demarcar as terras podem ser vistas por seu caráter pedagógico, com o objetivo de desfazer equívocos nas argumentações da Ação Popular, conforme afirmaram alguns dos ministros, por outro lado, a maioria das condições restringem perigosamente os direitos dos povos indígenas.
Entre estas condições, nos parece extremamente problemática a seguinte: “o usufruto dos índios na área afetada por unidades de conservação fica restrito ao ingresso, trânsito e permanência, bem como caça, pesca e extrativismo vegetal, tudo nos períodos, temporadas e condições estipuladas pela administração da unidade de conservação, que ficará sob a responsabilidade do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade”. Na administração destas unidades “a participação das comunidades indígenas terá caráter apenas opinativo”. Se a Constituição Federal estabelece a nulidade de qualquer título que incide sobre terras tradicionalmente ocupadas pelos índios, não parece fazer sentido manter a incidência de Unidades de Conservação sobre estas mesmas terras, o que, nestes termos, seria ilegal. Além disso, diferentes estudos têm demonstrado que as áreas que apresentam maior conservação ambiental são precisamente as indígenas, o que tornaria desnecessária a interferência de instituições que muito precariamente conseguem manter sob vigilância as demais áreas do país reservadas para a proteção ambiental.
Causa extrema preocupação o disposto na 17° condição estabelecida pelo ministro Menezes Direito, na qual se afirma que “é vedada a ampliação da terra indígena já demarcada”. Tal condição impediria a revisão de limites de áreas demarcadas com reduções significativas e que hoje funcionam mais como áreas de confinamento da população indígena do que como espaços que lhes assegure o direito à vida. Vale ressaltar que os estudos realizados durante os procedimentos demarcatórios de tais áreas apontavam, em maioria, para a tradicionalidade da posse de terras bem maiores, mas que foram reduzidas e demarcadas parcialmente em função de dificuldades contextuais e das sistemáticas pressões de segmentos importantes do latifúndio, empresários, políticos entre outros. Como, então, se poderiam penalizar os índios pelos equívocos cometidos pelo Estado na definição de suas terras?
Em entrevista coletiva à imprensa, o presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Gilmar Mendes, afirmou que as 18 condições apresentadas no voto-vista foram subscritas por todos os ministros, mas é importante ressaltar que em seu pronunciamento a ministra Carmem Lúcia colocou ressalvas aos dois aspectos acima referidos, e o ministro Joaquim Barbosa seguiu o voto do relator Ayres Brito, discordando da restrição quanto à possibilidade de a União proceder à revisão de terras já demarcadas. Gilmar Mendes também afirmou, em suas entrevistas, que outras sugestões poderão ser acrescidas àquelas já apresentadas e antecipou que uma diz respeito a criação de comissões para realizarem os procedimentos de demarcações e que nestas comissões estariam representantes os governos estaduais, o que se configurará em mais um obstáculo para as demarcações de terras futuras.
Quanto à legitimidade do procedimento de demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, a ministra Ellen Gracie afirmou que não foram encontrados elementos que demonstrassem eiva e que, portanto, não haveria qualquer motivo para se colocar em dúvida a legitimidade desse procedimento. Se não há impedimentos jurídicos que sustentem a Ação Popular que motivou esta discussão no STF e se nada pode ser questionado quanto ao procedimento administrativo de demarcação, por que adiar a decisão mais uma vez, permitindo que os arrozeiros invasores continuem a invadir e explorar a terra indígena? O pedido de vistas do ministro Marco Aurélio impediu também que se confirmasse a tendência de caçar a liminar que suspendeu as ações de retirada dos invasores da terra indígena. Adiando-se para o próximo ano esta decisão, concede-se aos invasores um prolongamento da permanência e aposta-se em possíveis mudanças na avaliação dos membros do STF.
Embora para muitos a temática indígena pareça dizer respeito a uma pequena parcela da população brasileira, o que está em questão, neste processo, interessa a cada um de nós: está em pauta a confiabilidade de nossas instituições legislativas, executivas e judiciárias. Se os direitos indígenas podem ser relativisados em função de interesses econômicos, políticos, administrativos, isso também poderá ocorrer com os direitos que tanto prezamos, e que regulam diversos âmbitos de nossa vida cotidiana. Também não parece sensato utilizar o julgamento desta ação como pretexto para estabelecer restrições aos direitos indígenas, em especial o direito de pleitear a ampliação de áreas já demarcadas e, desse modo, inviabilizar a garantia dos direitos territoriais de outros povos, confinados em pequenas áreas e que já foram de muitas maneiras desrespeitados.
Porto Alegre (RS), 14 de dezembro de 2008.
Roberto Antonio Liebgott
Vice-Presidente do Cimi