Raposa Serra do Sol: os povos indígenas estão confiantes
Entrevista especial com Paulo Guimarães | |
Enquanto seguimos o período em que os ministros do Supremo Tribunal Federal revisam o processo sobre a demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, o líder dos invasores desse território continua praticando atos agressivos contra os índios da reserva. É o que assegura o advogado e assessor jurídico do Conselho Indigenista Missionário (CIMI), Paulo Guimarães, em entrevista realizada por telefone pela IHU On-Line. “Tivemos informações ontem (referindo-se ao dia 03-09-2008) de que o arrozeiro Paulo Cesar Quartiero estava numa localidade destruindo placas da União, que sinalizam a Terra Indígena Raposa Serra do Sol, ou seja, estava praticando atos ilícitos. As lideranças indígenas já planejavam o registro dessa ocorrência na Polícia Federal, para que fosse instaurado um novo inquérito contra esse senhor”, afirmou. Guimarães relata a posição dos indígenas em relação ao discurso proferido pelo ministro-relator Carlos Ayres Britto, que votou a favor da demarcação contínua de Raposa Serra do Sol e sobre o trabalho que o STF vem desenvolvendo em torno desta problemática. Ele diz que os fundamentos adotados por Ayres Britto na defesa da causa indígena foram extremamente relevantes para o andamento deste processo e que o pedido de vista contribui para que os outros cinco ministros possam refletir e aprofundar seus conhecimentos sobre Raposa Serra do Sol. “Nós acreditamos que, nesse sentido, o pedido de vista e a intenção e consideração que todos os ministros vêm dando, todas as alegações, de todas as partes, serão levados em conta”, afirma. Confira a entrevista. IHU On-Line – Como está a comunidade indígena de Raposa Serra do Sol, nesse período em que a votação sobre a demarcação da terra está suspensa? Paulo Guimarães – Os índios se encontram muito mobilizados, confiantes e compreendendo, de forma muito tranqüila, o desenvolvimento dessa fase do julgamento em que o ministro pediu vista do processo para analisá-lo. Eles sabem que, pela dimensão do conflito e dos questionamentos, essa análise é uma possibilidade regimental, um direito do ministro. Ou seja, estão confiantes, especialmente em razão dos fundamentos adotados no voto do relator, ministro Carlos Ayres Britto, mantendo-se mobilizados na afirmação dos seus direitos constitucionais. IHU On-Line – E a situação em Roraima? Paulo Guimarães – A situação continua polarizada, sob uma tensão latente. Tivemos informações ontem de que o arrozeiro Paulo Cesar Quartiero estava numa localidade destruindo placas da União, que sinalizam a Terra Indígena Raposa Serra do Sol, ou seja, estava praticando atos ilícitos. As lideranças indígenas já planejavam o registro dessa ocorrência na Polícia Federal, para que fosse instaurado um novo inquérito contra esse senhor. Ele tem afrontado o processo, mas nenhuma das partes pode agir dessa maneira, especialmente quando ele está em julgamento. Ele vai sofrer conseqüências legais em razão de suas ações, inevitavelmente. Ainda não houve determinação judicial para prisão dele, mesmo que ele esteja perturbando o processo e a ordem pública. Quartiero lidera reações agressivas na região, busca intimidar testemunhas, o que acarreta conseqüências nos processos de investigação. IHU On-Line – Num outro momento, você nos disse que estava em jogo em Raposa Serra do Sol o cumprimento ou não da constituição. A partir disso, como analisa esta primeira sessão do julgamento? O que o senhor pensa sobre esse pedido de vista? Paulo Guimarães – Eu analiso como uma sessão muito importante, especialmente porque o relator pode expor de forma ampla e detalhada todos os seus fundamentos. O ministro baseou o seu voto integralmente na interpretação do texto constitucional, o que dá a todos grande segurança sobre os fundamentos adotados. Como não houve debate, pode ser que a matéria seja, eventualmente, discutida na próxima sessão. No entanto, cada ministro pode optar, ainda, por apresentar seu voto de forma escrita também. Em matérias dessa repercussão, os ministros do Supremo Tribunal Federal não têm necessidade de apresentar um voto escrito, mas pode se dedicar a apresentação por escrito de seus fundamentos pela profundidade do tema, o que deve acontecer. Aliás, o próprio ministro que pediu vista esclareceu ao presidente e ao STF que já tinha um voto escrito. No entanto, diante do que foi dito pelo ministro-relator e do que foi afirmado na tribuna pelos advogados, respeitou toda densidade de informações, fundamentos e alegações e, assim, com este pedido, permite que seja aprofundada a análise dessa nova realidade apresentada sobre a questão da Raposa Serra do Sol. O pedido de vista é um direito de qualquer ministro. Eles são mecanismos regimentais à disposição de qualquer julgador para que o caso seja mais aprofundadamente analisado por outro ministro. A rigor, na sistemática de julgamento dos colegiados, e não poderia ser racionalmente de outra forma, um dos ministros, que é o relator para quem o processo foi distribuído, é quem faz a análise profunda do caso. O ministro Carlos Ayres Britto fez essa análise profunda de forma eficaz, eficiente, muito competente. Outro ministro, por intermédio do pedido de vista, pode também fazer essa análise mais aprofundada, o que é bom para o caso. Quanto mais profundamente for analisado, nós temos a convicção e a esperança de que as questões ficarão cada vez mais esclarecidas sob o aspecto jurídico e constitucional, fazendo com que esse tipo de alegação não volte mais aos tribunais. O que se busca na análise aprofundada que os ministros do Supremo, de forma muito dedicada, vêm implementando é exatamente esclarecer de forma definitiva pela mais alta Corte do país quais as referências constitucionais dos fundamentos, alegações e impugnações apresentadas. Isso é muito bom para o país e povos indígenas. É a primeira vez que o STF terá oportunidade de se manifestar sobre o mérito dessas impugnações. Por ser a suprema corte de justiça do país, dará a palavra final. Nós acreditamos que, nesse sentido, o pedido de vista e a intenção e consideração que todos os ministros vêm dando, todas as alegações, de todas as partes, serão levados em conta. Ninguém pode afirmar o resultado, nesse momento, de um julgamento dessa natureza. IHU On-Line – O que o senhor destacaria como mais importante no discurso do ministro Carlos Ayres Britto? Paulo Guimarães – O voto dele foi muito bem elaborado e ele fundamentalmente afirma que o cerne da questão posta na impugnação da demarcação, da forma como foi feita, de área única de faixa de fronteira, é constitucionalmente correto. O ponto mais marcante que posso destacar dos vários temas que ele tratou é exatamente a demonstração que uma terra indígena deve ser demarcada para um grupo étnico que a ocupe, mas nada impede que esta terra seja demarcada envolvendo vários grupos étnicos. A prova da relação social entre essas etnias é o que basta para que a administração pública assegure a integridade do território deles, porque a Constituição estabelece o comando para que a União proteja e demarque essas terras na perspectiva de proporcionar a essas comunidades as condições para se desenvolverem econômica, social e etnicamente. Essa é a referência e serve de balizamento para tudo o que a administração pública venha fazer em relação a terras indígenas, o que, portanto, elimina as perspectivas de que terra indígena possa ser retalhada. A constituinte, quando assegurou as garantias indígenas, sinalizou claramente que as terras designadas para este grupo devem ser demarcadas de forma correta ou não devem ser demarcadas. As terras invadidas têm repercussão sobre o patrimônio nacional, e o agente público que pratica esse ato está negligenciando um patrimônio público federal. Todas as conseqüências estão muito bem dimensionadas no voto do ministro. Esse é o aspecto mais marcante. IHU On-Line – O Supremo Tribunal Federal está processando as ações judiciais propostas pelos senadores, deputados e invasores da terra indígena que questionam a demarcação. Como o senhor avalia o desempenho do STF até o momento? Paulo Guimarães – Este caso é uma ação popular, ou seja, pode ser proposto por qualquer cidadão, e está tramitando no governo porque a alegação do autor é que, com a demarcação, existe um conflito com o estado de Roraima, que, como está no processo, é real. A competência do STF foi firmada em 2005 por ter identificado e reconhecido um conflito federativo, ou seja, um conflito de interesses entre a União e uma unidade da Federação. Dessa forma, o STF está cumprindo a sua missão constitucional. Os ministros do Supremo têm buscado atuar de uma forma respeitosa e dedicada para solucionar este caso. IHU On-Line – As próximas etapas da audiência acerca da demarcação de Raposa Serra do Sol podem sofrer influência desta crise no Supremo Tribunal Federal em relação a outras áreas do governo brasileiro? Paulo Guimarães – Eu sinceramente acho que não. Claro que esses episódios recentes, envolvendo grampos e tudo mais, constrangem todos e causam indignação. Como se trata do envolvimento de juízes muito experientes, acredito que os casos não se interligam, ou seja, não há influência de um fato sob a forma como um juiz vai decidir a causa. IHU On-Line – Um boato em relação a essa decisão gira em torno de uma resolução que possa considerar as reivindicações dos índios e dos arrozeiros. Diante desse conflito que dura tantos anos, é possível considerar uma decisão neste sentido? Paulo Guimarães – É sempre comum em julgamentos de tamanha repercussão se fazer especulações. Qualquer juiz pode julgar a ação totalmente improcedente, parcialmente improcedente, ou totalmente procedente. Essas três alternativas sempre estão postas para apreciação dos juízes. Se o tribunal, na conformação da sua maioria, interpretar de maneira honesta as questões postas no processo e caminhar para uma solução, esperamos que suas posições se somem a posição do ministro-relator. É o que nós esperamos a partir de agora. Num colegiado, para a definição final, é necessário que haja a maioria e no caso do Supremo a maioria se forma com seis ministros. Antes do julgamento, se especulava também sobre o voto do relator. Inclusive, algumas pessoas afirmaram que o voto do relator iria em outro rumo. As especulações se revelaram equivocadas. As comunidades indígenas estão orientadas para não se influenciarem por essas especulações. Eu continuo confiante, como advogado de uma comunidade indígena. O voto do ministro é extremamente importante, significativo. As chances para a causa indígena são boas, e eu continuo confiante no discernimento jurídico, constitucional e processual dos ministros do Supremo. |