27/06/2008

Os povos indígenas do Xingu e a hidrelétrica Belo Monte

 


Dom Erwin Kräutler – Bispo do Xingu e Presidente do Cimi


 


“É teu povo, Senhor, que eles massacram,


é tua herança que eles humilham!”


(Sl 93 (94),5)


 


Uma história que não é de hoje


O Xingu é um rio peculiar e único. Não dá para compará-lo com qualquer outro rio da Amazônia. Só ele faz aliança com o majestoso Amazonas através de um largo delta. Na foz, suas lindas águas verde-esmeralda se mesclam com as águas barrentas do rio-mar no qual se perde finalmente acima do Forte de Santo Antônio de Gurupá. Percorreu 2045 km desde o Mato Grosso, onde nasce a 600 metros acima do nível do mar na junção da Serra do Roncador com a Serra Formosa.


 


O Xingu é misterioso. Seu nome até hoje não tem explicação etimológica. Alguns estudiosos querem traduzi-lo como “casa dos deuses” ou melhor “Casa de Deus”, mas não se tem certeza qual seria a verdadeira raiz subjacente a este nome. Suas águas ora são calmas e pacíficas formando extensos lagos, ora furiosas e indômitas quando se estreitam em perigosas cachoeiras que já ceifaram muitas vidas de viajantes desavisados ou afoitos que teimaram enfrentá-las. Pode ser que não seja a Casa de Deus, mas que é um rio sagrado para os povos que habitam nas suas margens há milhares de anos, quem teria a ousadia de negar!


 


O Xingu narra a história do paraíso de antanho e repete as palavras divinas “E Deus viu tudo o que tinha feito: e era muito bom” (Gn 1,31). Mas conta também a história da rebelião contra Deus, da prepotência e arrogância dos homens que queriam ser como deuses (cfr. Gn 3,5). Relata ainda a violência assassina que ceifou a vida do irmão e brada pelos séculos afora a palavra de Deus: “Que fizeste! Ouço o sangue de teu irmão, do solo, clamar por mim!” (Gn 4,10).


 


Na realidade, as águas do Xingu deveriam ter a cor do sangue por causa das inúmeras chacinas que se perpetraram ao longo dos séculos passados. A fúria antiindígena assassinou com armas de fogo a índios munidos apenas de arco e flecha e bordunas. Os invasores misturaram nas praças das aldeias com o barro vermelho também o sangue de indefesas mães e mulheres grávidas, jovens e crianças recém-nascidas. Milhares tombaram!


 


O mundo que se autodenomina de “civilizado” fechou os olhos, mostrou indiferença diante do sangue indígena bradando por justiça, gritando pelo direito de viver, reclamando a pátria que Deus criou para estes povos, defendendo o chão de seus mitos e ritos, chorando a terra onde sepultaram os antepassados. Até hoje o índio é chamado com desprezo de “silvícola”, um termo que insinua tratar-se apenas de algum bípede a mais, sem inteligência e livre arbítrio. Grande parte da sociedade envolvente vê ainda os povos indígenas como uma horda de malfeitores, de agressores hostis, selvagens, traiçoeiros, bárbaros, cruéis, não-confiáveis.


 


A história dos índios é uma história de rios de sangue derramado. Assim, tudo que hoje acontece de desfavorável, de adverso faz emergir do inconsciente coletivo destes povos todo o sofrimento do passado, toda hostilidade de que foram vítimas desde que os europeus fincaram o pé neste continente e os bandeirantes avançaram em todas as direções abrindo caminho a ferro e fogo.


 


Não faz tanto tempo que o próprio órgão governamental encarregado de proteger os povos indígenas, o Serviço de Proteção ao Índio – SPI, participou de massacres. Foi extinto por causa da repercussão no exterior das escandalosas carnificinas e substituído pela Fundação Nacional do Índio – Funai. Em 1967 veio à tona o assim chamado “Massacre do Paralelo 11” que aconteceu em 1965. Um seringalista do Mato Grosso deu ordem para exterminar uma aldeia. Primeiro sobrevoaram o povoado e jogaram bombas, depois entraram na aldeia e mataram a todos. Eu mesmo vi uma fotografia que mostra uma mulher indígena presa pelos pés, de cabeça para baixo, ladeado por dois homens brancos com facões. Esquartejaram a mulher. A mera lembrança da foto me causa arrepios. Isso não aconteceu no tempo dos bandeirantes, mas há apenas pouco mais de quarenta anos.


 


Naquela mesma década de 60 outra agressão bem planejada aconteceu no Xingu. A ação criminosa nunca foi investigada. Os criminosos não foram identificados e punidos por homicídio qualificado cometido em série. Alguns políticos queriam a todo custo tirar Altamira do ostracismo. A cidade precisava ser ligada através de uma estrada – mesmo que fosse apenas uma picada – com Santarém, o portal a dar acesso ao mundo.


 


O empecilho para concretizar o intento foram os índios Arara que viviam na região que hoje coincide com os municípios de Medicilândia e Uruará. Mas para não frear o progresso “esses selvagens” tinham que ser “eliminados”. Se a expedição avistasse um índio Arara, a ordem era de executá-lo imediatamente! Não se sabe do número exato de índios Arara mortos naquele tempo. Só se sabe que foram muitos. Morreram até eletrocutados quando se aproximaram do barraco da “força expedicionária” circundado por uma cerca de arame conectada com um grupo gerador. Os índios queriam ver os “brancos”, seguraram no arame e levaram choques de 220 volts.


 


A história deste povo que vivia sossegado no meio da mata entre Altamira e Santarém culminou em outra tragédia durante a construção da Transamazônica. A nova rodovia passava a três quilômetros da aldeia dos Arara no igarapé Penetecaua. Os índios foram até perseguidos por cachorros. A forçada convivência com o mundo dos brancos trouxe doenças como gripe, tuberculose, malária. Outros tantos morreram. O mundo lá fora, no Brasil e no exterior, nada soube desta desgraça que desabou sobre um povo. Continuava a aplaudir “a conquista deste gigantesco mundo verde”, palavras que constaram da placa afixada no tronco de uma castanheira derrubada quando o presidente da República deu solenemente início aos trabalhos de construção da Transamazônica. A que preço! Nunca me esqueço do dia em corria a notícia de que, finalmente, os “terríveis índios Arara” haviam sido dominados. Como prova de que o “contato” tinha sido um sucesso total, trouxeram uns representantes daquele povo que até então vivia livre na selva xinguara. Nus, tremendo de medo em cima de uma carroça, foram expostos à curiosidade popular como se pertencessem a alguma rara espécie zoológica.


 


Vivemos em outros tempos. Pelo menos assim pensamos. Celebramos 60 anos de promulgação da Carta Magna dos Direitos Humanos. Qualquer discriminação racial é condenada. É proclamada a igualdade de povos e raças. No Brasil temos desde 1988 uma Constituição Federal em que os direitos indígenas são inscritos no Artigo 231. Foi abolida a tutela de um órgão estatal. Os indígenas, outrora equiparados aos menores de idade e aos deficientes mentais, alcançaram plena cidadania, não precisando mais ser tutelados. Tem todo o direito de ir e vir como qualquer brasileiro. Mesmo assim, enquanto já estamos festejando os 20 anos da Constituição “cidadã”, parte da imprensa ainda não se inteirou desta novidade constitucional e há jornais insistindo que ”a Polícia Federal deverá pedir explicações à Funai (…) já que o órgão é o tutor legal dos índios brasileiros[1].


 


O salto qualitativo da letra constitucional para o chão concreto da realidade em que os povos indígenas vivem ainda não aconteceu. Se uma demarcação de área indígena é concluída com a homologação pelo presidente, prevista em lei, um clamor ensurdecedor se levanta pelo Brasil afora, reclamando que “há muita terra para pouco índio”. E o pior aconteceu há algumas semanas em Altamira. Uma rádio local se desdobrou em berrar agressões verbais contra os índios, insultos racistas que fazem inveja ao tratamento destinado aos judeus pelo regime nazista. Pensávamos que tais excessos pertencessem a um passado longínquo e tivessem sido há muito tempo extirpados do vocabulário jornalístico. Infelizmente nos enganamos. A onda antiindígena assume novamente proporções alarmantes.


 


De Kararaô a Belo Monte


Muitos não recordam o tempo a ditadura militar e, já que a memória tem fama de ser curta, poucas pessoas se lembram dos mandos e desmandos dos presidentes plenipotenciários daquela época. Um deles foi o general Emílio Garrastazu Medici. Tornou-se célebre pelo Projeto de Integração Nacional e a construção da rodovia Transamazônica, inaugurada em setembro de 1972. Foi a década do “Integrar para não entregar” e de outro slogan que desencadeou uma migração sem precedência no Brasil. “Terra sem homens para homens sem terra!” exclamava eufórico o general-presidente, o que não deixou de ser um tremendo insulto aos povos indígenas que há milênios habitam a Amazônia. O presidente simplesmente os ignorou, despojou-os da cidadania, negou-lhes a existência, considerou-os definitivamente mortos.


 


Milhares de famílias rumaram do Nordeste, Centro, Sudeste e Sul para a Amazônia. No entanto, o Projeto de Integração Nacional previu também a construção de barragens. A rodovia cortou os grandes rios nas proximidades das principais quedas d’água. Já em 1975 a Eletronorte contratou a firma CNEC (Consórcio Nacional de Engenheiros Consultores) para pesquisar e indicar o local exato de uma futura hidrelétrica. Em 1979 o CNEC terminou os estudos e declarou a viabilidade de construção de cinco barragens no Xingu e uma no rio Iriri, maior afluente do Xingu. Ao povo do Xingu negou-se qualquer informação mais detalhada. Só se sabia que o governo pretendia tocar a construção o quanto antes possível.


 


Os povos indígenas reagiram pela primeira vez em 1989. Vieram uns 600 índios para Altamira e hospedaram-se no centro Betânia da Prelazia do Xingu. Vieram para protestar contra a decisão do governo de sacrificar o rio Xingu. O encontro que os índios chamaram de “Primeiro Encontro das Nações Indígenas do Xingu” realizou-se entre os dias 20 e 25 de fevereiro de 1989 e alcançou uma enorme repercussão nacional e internacional.


 


A foto que retratou a cena em que a índia Kayapó Tuyra encostou a lâmina de seu facão no rosto do então presidente da Eletronorte e hoje presidente da Eletrobrás, José Antônio Muniz Lopes, percorreu o mundo inteiro e virou a logomarca da oposição indígena ao projeto de hidrelétrica. Tuyra tornou-se a mulher mais famosa do mundo Kayapó, mãe carinhosa com seus filhos e ao mesmo tempo guerreira intransigente quando se trata da defesa de sua terra e seu rio. Pouco depois daquele memorável encontro, o Banco Mundial negou o suporte financeiro e o projeto foi arquivado. Nunca, porém, foi abandonado. Já na década de 90 foi desengavetado e veio à tona com mais força.


 


No inicio do mês de junho de 2007, reuniram-se outra vez representantes de vários povos indígenas do Xingu no Centro Betânia da Prelazia do Xingu e insistiram que colaborássemos com eles para promover um Encontro dos Povos Indígenas semelhante àquele que aconteceu em 1989. Os índios pretendiam chamar a atenção do Brasil e do mundo, condenando o projeto faraônico que ameaça imolar ao deus-progresso o rio Xingu que para eles é sagrado, símbolo da vida, dádiva de Deus.


 


No dia 3 de junho de 2007, os participantes do encontro foram para a beira do rio, em Altamira, para uma manifestação contra o projeto de hidrelétrica ressuscitado que recebeu o nome “Belo Monte” em substituição à denominação anterior “Kararaô” que equivale a um grito de guerra do povo Kayapó. Mudou apenas o nome! O atual governo o considera prioridade no Plano de Aceleração do Crescimento (PAC). O presidente Lula antes de ser eleito manifestou-se contra Belo Monte. Do mesmo jeito vários membros do Congresso Nacional, entre eles o deputado federal Zé Geraldo (PT/PA), eleito pelas comunidades do Xingu, declararam-se visceralmente contrários, quando estavam em campanha eleitoral. Mas que surpresa para todos nós: depois de eleitos mudaram de posição. O que antes condenaram com veemência, de repente, da noite para o dia, passaram a defender com unhas e dentes. O que estaria por trás dessa repentina metamorfose camaleônica?


 


Doravante, o povo do Xingu é informado de que se trata apenas de uma Unidade Hidrelétrica (UHE) e não mais de um Complexo Hidrelétrico. Não deixa de ser uma mentira deslavada que se propaga sem nenhum pudor, um artifício empregado propositadamente para ludibriar o povo. Todo mundo sabe que seria um incalculável desperdício investir bilhões de reais em uma usina que durante o verão tropical não tem condições de funcionar plenamente quando o volume de águas do Xingu diminui. É a estação em que extensas praias de areia branca e dourada emergem das águas cristalinas transformando a região numa paisagem deslumbrante.


 


Mas os barrageiros não se deixam impressionar pela beleza exótica do Xingu. Já baixaram a sentença e fim de papo. O rio tem que ser sacrificado! É o preço a pagar! Outras barragens serão necessárias e estão programadas! Para adiantar o serviço, a Eletrobrás já dispõe de todo o “inventário” do Xingu com o respectivo mapa que prevê os barramentos e as áreas alagadas até acima da cidade de São Félix do Xingu. Parece tratar-se de estudos clandestinos, pois não são acessíveis ou revelados ao público, algo que deve estar levando o carimbo “matéria altamente confidencial” ou “segredo de Estado”. Por que todo esse sigilo?


 


No mesmo dia 3 de junho de 2007 um cacique Kayapó subiu num caminhão estacionado na avenida que margeia o Xingu, pegou o microfone e indagou gritando: “O que será de nossas crianças?” e acrescentou: “Não permitimos que as sepulturas de nossos ancestrais vão para o fundo!”. Enquanto empresários e comerciantes defendem Belo Monte na acalentada esperança de “chuvas de dinheiro” desabando sobre Altamira e não se preocupam com as consequências perniciosas para a vida de milhares de pessoas – mormente a população das baixadas que terá suas casas e propriedades alagadas, enquanto os membros desse consórcio empresarial abertamente demonstram que não lhes causa nenhuma inquietação se áreas indígenas demarcadas e homologadas são alagadas e o povo ribeirinho prejudicado – enquanto essa gente que em sua grande maioria veio de outros estados não tem nenhuma dor de consciência diante de um programado desastre ecológico irreversível, um índio, até hoje considerado um supérfluo resíduo da idade da pedra lascada, esse índio discriminado e tratado com desdém ou desprezo, é quem dá uma lição a toda a sociedade. Esse consórcio “comercial, industrial e agropastoril” só pensa em si. Não mantém laços nem com o passado, nem os estabelece com as futuras gerações, não se relaciona nem com quem vivia antes nem com quem vem depois. É uma associação de gente imediatista, interesseira e egoísta que aposta apenas em lucros fabulosos e declara guerra a quem tiver a petulância de se opor a sua ambição e ganância que não respeita nada e ninguém.


 


De repente, um índio chama a atenção para o direito das futuras gerações que também querem viver e estabelece ainda uma ponte com os antepassados, de quem herdamos este mundo que Deus criou. O índio teve a coragem de alertar para as consequências nefastas de um projeto megalomaníaco. À beira do rio, indígenas e não-indígenas se deram as mãos para selar o pacto de lutar contra a destruição do rio e da vida: Xingu Vivo para Sempre!


 


Em 1989 os índios se manifestaram, em 2007 insistiram de novo num grande encontro e mostramo-nos sensíveis ao pedido de todos os povos indígenas da bacia do Xingu.


 


Por que representantes da Eletrobrás ou Eletronorte nunca passaram por uma única aldeia para ouvir os índios a respeito de Belo Monte? Por que não pediram ajuda de quem realmente entende do mundo Kayapó para manter contatos com esses povos que são os primeiros a habitar esta terra? Por que essa discriminação, exclusão, marginalização dos povos autóctones? Por que?


 


Nas audiências chamadas “públicas” não se fala a verdade nem existe real possibilidade para o povo manifestar as suas dúvidas, fazer indagações e apresentar críticas. Essas audiências são apenas parte de um ritual em que os enviados da Eletrobrás ou do governo recitam o rosário de vantagens e benefícios. Só vantagens! Só benefícios! Parece terminantemente proibido criar no povo a sensação de que possa haver alguma sequela negativa ou algum dano irreparável. Se alguém se atrever em insistir e opor-se ao discurso oficial, a resposta repetida até criar náuseas é e será sempre: “É o preço a ser pago pelo progresso!” “É a exigência do desenvolvimento”.


 


Instados a explicar o que entendem por desenvolvimento e progresso, recusam-se a responder. Dizem que não não vieram para discutir questões “ideológicas”. Fato é que a Eletrobrás sabe o que convém à sociedade, não ao zé-povinho. Causa realmente espécie a repetição de slogans, chavões pré-fabricados não com a intenção de esclarecer, mas de cooptar.


 


Veja-se o caso da índia Xipaia que está sendo aplaudida pelo pessoal do Consórcio e filmada afirmando que está a favor de Belo Monte, porque “o índio está no escuro”. Sei quem é essa senhora. Ela mora há décadas na cidade e há luz na casa dela desde que a energia elétrica chegou a Altamira. “Cimi não dá dinheiro! Dom Erwin não dá dinheiro! Eletronorte dá dinheiro, paga conta! Por isso somos a favor de Belo Monte!” são frases que foram ouvidas na aldeia de determinado grupo que se distanciou dos outros povos indígenas do Xingu e não participou mais de nenhum evento. Que maneira mais esdrúxula de defender a “UHE Belo Monte”, cooptando índios menos avisados e ainda acenando com vantagens financeiras aos que prometem defender o projeto.


 


Obcecado pela idéia de acelerar o crescimento da economia, o próprio presidente Lula identificou como “entraves” a esta medida a questão dos índios, dos quilombolas, dos ambientalistas e até do Ministério Público. Considerou ainda “penduricalhos” os artigos da legislação ambiental pois estes parâmetros legais estariam travando o desenvolvimento do país. Por isso a ordem é de desconsiderar ou, pelo menos, não dar tanta importância a impactos sociais e ambientais. Caso contrário, o país estaria condenado à estagnação.


 


Mas, já que são exigidos estudos preliminares no caso de uma hidrelétrica, o governo encarrega os primeiros interessados no projeto, os grandes empreendedores, de providenciar os estudos de viabilidade ou de impacto ambiental e social. Terão a seu dispor cientistas de sua inteira confiança que na mais cega obediência aos ditames superiores corroborarão a tese que já é definida antes do estudo: o impacto ambiental e social será mínimo ou praticamente nulo. Alega-se: “O Brasil não pode esperar!” Ou alguém pensa que uma dessas empresas esteja interessada em apontar impactos ou danos sociais e ambientais? Isso equivaleria a cortar o galho em que estão sentadas.


 


A pergunta chave é: A quem mesmo interessa Belo Monte? Ao Brasil? Vai melhorar o padrão de vida dos paraenses, dos xinguaras, do povo de Altamira, Vitória do Xingu, Souzel, Anapu, da Transamazônica, do Baixo Xingu? A energia, a quem será destinada? Todos sabemos que serão mais uma vez beneficiadas as multinacionais que vivem às custas do Brasil com todas as mordomias fiscais e facilidades energéticas.


 


O preço da energia para a família brasileira é escandaloso, é exorbitante, mas as empresas transnacionais contam com a benevolência magnânima dos sucessivos governos. O Pará, a Amazônia é considerada mera “província” energética, mineral, madeireira, última fronteira agrícola… Nunca saiu dessa categoria de “província”. A metrópole, o centro nevrálgico das decisões e deliberações, sempre se encontra alhures! Pouco interessa à metrópole se os povos da “província” passam bem ou vão de mal a pior. Algumas migalhas sempre caem, mais por descuido do que por amor aos pobres.


 


E os nossos políticos, em vez de questionar esse sistema iníquo, de criticar estruturas prejudiciais aos povos da Amazônia, de exigir direitos e “royalties”, aplaudem de pé e não hesitam em apelar até para a terminologia teológica quando falam em “salvação”, “redenção” da região, do Pará e da Amazônia. Infelizmente nada entendem da máxima do grande Santo Tomás de Aquino: “Gratia supponit naturam” (a graça pressupõe a natureza). No contexto da Amazônia, jamais haverá redenção se a criação for arrasada, destruída, aniquilada. Aí só vai sobrar a desgraça, o caos, o apocalipse.


 


Xingu Vivo para Sempre


No dia 19 de maio de 2008 tive o privilégio de fazer a abertura do encontro Xingu Vivo para Sempre no Ginásio Poliesportivo de Altamira. Mais de 600 indígenas, mulheres, homens e crianças, entraram solenemente no recinto, cantando e dançando, erguendo suas lanças, bordunas e facões. Quem não se emocionou quando os índios Kayapó cantaram o Hino Nacional em sua língua materna! A platéia aplaudiu entusiasmada.


 


Apresentei todos os caciques das 24 etnias presentes e saudamos os outros participantes do evento chamando-os por município. O ar foi festivo, animado, algo excepcional, pois não é todo dia que se vê tantos indígenas, pintados segundo suas tradições, dançando de acordo com os seus ritos milenares e cantando num idioma ancestral enquanto se movimentam num ritmo tão peculiar. Volta e meia, uma ou um Kayapó levanta para fazer sua dança individual erguendo um facão ou mostrando borduna e lança, os homens com seus barítonos volumosos e fortes, as mulheres com vozes elevadas, incisivas, às vezes até estridentes. A beleza exótica das expressões culturais comove e impressiona. A juventude, presente nas arquibancadas, vibra com as danças e aplaude com prolongadas salvas de palmas.


 


Na manhã do segundo dia continuou a apresentação. Faz parte do ritual indígena que cada cacique fale, mesmo que repita argumentos ou opiniões anteriormente já expressos por um parente. Aliás, todos se entendem como parentes. A procedência geográfica não conta, nem sequer a etnia ou o tronco linguístico a que pertencem. Todos se tratam de “õbikwa”, familiares!  Se um sofre ou é agredido, todos se sentem atacados. Quando se apresentam, falam primeiro em sua língua materna e depois traduzem, eles mesmos, a fala para o português. Uns tem mais facilidade de expressar-se em português, outros não conseguem fazê-lo de modo correto.


 


Percebe-se a sua alegria, mas muitas vezes também a angustia ou indignação por causa de alguma decisão do governo contrária a eles ou do avanço de latifundiários, mineradoras, madeireiras, garimpeiros para as terras habitadas por eles desde tempos imemoriais. São muito sensíveis a qualquer falta de consideração da parte da sociedade envolvente. Não ocultam a sua decepção. “Já estamos cansados de ouvir e não ser ouvidos. Já estamos cansados de escutar ameaças de construção de barragens na volta grande do Rio Xingu. Não estamos só defendendo o rio Xingu, mas os rios da Amazônia: moradia dos povos indígenas” reclama um dos caciques.


 


Debates e o incidente


Ao término das apresentações foi composta a mesa de trabalho para os debates. Foram chamados o professor Oswaldo Sevá Filho, da Universidade de Campinas (Unicamp); o engenheiro Paulo Fernando Viana Rezende, da Eletrobrás; Roquivan Alves da Silva, do Movimento de Atingidos por Barragens (MAB); Jean Pierre Leroy, da Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional (FASE) e Glenn Switkes, diretor do Programa Latino-americano do International Rivers Network (IRD).


 


Oswaldo Sevá é conhecido nosso e dos indígenas. Veio para mais uma vez alertar sobre as consequências dos projetos hidrelétricos no rio Xingu. Foi ele quem organizou o livro Tenotã-Mo, lançado em 11 de agosto de 2005, uma coletânea de artigos de especialistas de diversas áreas que pretendia provocar um amplo debate sobre as hidrelétricas na Amazônia. Fui convidado a escrever o prefácio para este livro. Para nossa total decepção, a Eletrobrás nunca respondeu às indagações e críticas da parte do mundo científico. Percebe-se nitidamente a arrogância de alguns órgãos do governo. Nós apelamos para argumentos, eles para o “poder”, ostensiva e cinicamente manifestado.


 


Entrei no ginásio já no final da palestra do professor Oswaldo Sevá. Chegou a vez do representante da Eletrobrás, o engenheiro Paulo Rezende. Tive a impressão de que não encontrou tempo para se preparar. Assim optou por uma sessão “Power Point” como a Eletrobrás costuma fazer quando é solicitada por prefeitos, vereadores, comerciantes e empresários. Na tela apareceram números e estatítiscas, dificilmente identificáveis por causa da claridade do ambiente. A platéia começou a ficar inquieta e reagiu quando o engenheiro desqualificou o professor Oswaldo Sevá, chamando-o de “desatualizado”. As vaias se tornaram cada vez mais incisivas. Falei para a professora Mônica sentada ao meu lado: “Por que esse homem não pára, com todas essas vaias?”. Pareciam antes estimular o engenheiro. Alteou a sua voz, elevando-a a um tom provocador.


 


O engenheiro cumpriu seu papel dentro do ritual previsto. Nada de admitir que o projeto possa trazer também consequencias adversas, irreversíveis. Aulas de pedagogia não devem constar da grade curricular de uma faculdade de engenharia. Assim o engenheiro não teve nenhum preparo para lidar com situações diferentes das que ele conhece no âmbito empresarial. Não conseguiu envolver a platéia, de modo especial os indígenas presentes. Perdeu as estribeiras e apelou para a arrogância. Por que não fez uma exposição mais simples para todo mundo entender? Por que não dividiu sua palestra em duas partes? Poderia, se assim o quisesse, falar primeiro das vantagens e dos benefícios que Belo Monte pode trazer. Em seguida abordaria com sinceridade e simplicidade as desvantagens, os prejuízos que, sem dúvida, a hidrelétrica irá causar. Mas nada disso aconteceu. Faltava franqueza e imparcialidade. O engenheiro transmitiu à platéia a sua convicção de que, haja oposição ou não, Belo Monte vai sair de qualquer jeito!


 


Quando após a palestra do engenheiro, o representante do Movimento dos Atingidos por Barragens, iniciou sua fala dizendo que os índios irão defender o Xingu para protegê-lo, ressoou de repente pelo ginásio um terrível grito de guerra. Os índios se levantaram e ergueram bordunas e facões e, em seguida, iniciaram uma dança movimentando-se em direção ao engenheiro. Vi os índios gesticular com facões e bordunas. Simbolizaram um ataque. Do lugar, onde eu estava, não pude observar que um dos fações resvalou no braço do engenheiro, ferindo-o. Quando consegui ficar mais próximo, percebi o corte no braço direito do engenheiro. Vi também como ele derramou toda uma garrafa de água mineral sobre o corte que sofreu. A intenção que teve, foi sem dúvida a de limpar a ferida, mas o resultado foi uma imensa poça d’água misturada com sangue que causou a tétrica impressão de que alguém havia sido esquartejado ou guilhotinado naquele mesmo instante. Inúmeras vezes esta mesma cena foi repetida nas reportagens de televisão. Sangue espalhada por toda parte. O engenheiro foi encaminhado para o hospital. Levou seis pontos e recebeu alta. Padre Renato Trevisan que tem uma larga experiência com o povo Kayapó, além de falar muito bem seu idioma, solicitou a um cacique que apaziguasse na língua Kayapó os espíritos excitados. O cacique pegou prontamente o microfone e falou a seu povo.


 


Nós, da coordenação e responsáveis pelo evento, ficamos espantados, muito aflitos e angustiados ao extremo. Imaginávamos logo a repercussão do acidente nos meios de comunicação. Havia gente nossa chorando convulsivamente. Ninguém se conformara com o acontecido. Tudo estava correndo tão bem, sem sobressaltos. E agora?


 


Afirmo com toda a ênfase e convicção que o corte com o facão que o engenheiro sofreu foi acidental. Muito lamentável, sem dúvida, mas jamais foi tentativa de homicídio, pois se os índios quisessem matar o engenheiro não o teriam atingido apenas no braço. Aliás, o próprio engenheiro em entrevista gravada para o programa “O Fantástico” da TV-Globo admitiu que foi um acidente. Repúdio e rejeito por uma questão de consciência a afirmação de que a agressão foi premeditada ou programada. São as forças antiindígenas que mais uma vez vêm à tona e agora se deleitam no macabro prazer de sustentar essa tese absurda.


 


A coordenação do evento veio imediatamente a público e falou do incidente lastimável. Redigimos uma nota em que lamentamos profundamente o ocorrido. Fui procurado por jornalistas e dei várias entrevistas a diversos canais de televisão. Mesmo assim, parte da mídia optou pela divulgação sensacionalista dos fatos o que engendrou todo tipo de comentário ao longo dos dias e semanas subsequentes. Condenaram sumariamente a Prelazia do Xingu e o seu bispo e as outras entidades coordenadoras do evento.


 


Pensávamos por alguns momentos até em encerrar o encontro, julgando que não houvesse mais clima para a continuação, mas, finalmente, decidimos cancelar apenas a passeata pelas ruas da cidade de Altamira e substitui-la por uma manifestação à beira do rio Xingu.


 


No dia 23 de maio representantes dos povos indígenas e gente que vive ao longo do Xingu e seus afluentes, gente do campo e da cidade e representantes dos movimentos sociais se deram mais uma vez as mãos à beira do rio Xingu. Mais uma vez os índios discursaram e dançaram. As mulheres com as crianças entraram n’água para demonstrar como amam o rio e como dependem dele.


 


Acabou o encontro Xingu Vivo para Sempre mas não acabou a luta em defesa desse rio maravilhoso e dos povos do Xingu. Foi lido o documento final em que os índios fazem questão de manifestar-se como “cidadãos e cidadãs brasileiras”. “Vimos a público comunicar a nossa decisão de fazer valer o nosso direito e o de nossos filhos e netos a viver com dignidade, manter nossos lares e territórios, nossas culturas e formas de vida, honrando também nossos antepassados, que nos entregaram um ambiente equilibrado. Não admitiremos a construção de barragens no Xingu e seus afluentes, grandes ou pequenas, e continuaremos lutando contra o enraizamento de um modelo de desenvolvimento socialmente injusto e ambientalmente degradante, hoje representado pelo avanço da grilagem de terras públicas, pela instalação de madeireiras ilegais, pelo garimpo clandestino que mata nossos rios, pela ampliação das monoculturas e da pecuária extensiva que desmatam nossas florestas”.


 


 “Queremos o Xingu vivo para sempre!”






[1] Por exemplo, O Liberal”  em sua edição de 26 de maio de 2008

Fonte: Dom Erwin Kräutler
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