26/05/2008

Nova onda de ataques contra os povos de Raposa Serra do Sol

 


Uma disputa entre o latifúndio e a lógica constitucional


 


Sempre me causou estranheza o modo como uma história, que sempre tem múltiplas versões e interpretações, é homogeneizada e investida de modo a se tornar única e inegavelmente verdadeira. Essa estratégia de poder, utilizada desde os tempos coloniais, nada mais é do que um modo de legitimar posições privilegiadas, em termos sociais, políticos, econômicos, justificando tais privilégios como condições naturais e incontestáveis. É isso que estamos presenciando, em relação à Terra Indígena Raposa Serra do Sol.


 


Assistindo algumas reportagens de ampla circulação e lendo as notícias de jornais de Roraima me pergunto: onde está aquela regra básica do jornalismo, de que se deve escutar os dois lados? As notícias de maior repercussão têm dedicado especial atenção a escutar aqueles que realmente contam naquela região: podemos então ouvir o governador de Roraima, alguns líderes da política local, representantes de arrozeiros, todos indistintamente contrários à demarcação das terras indígenas. Trata-se de uma avalanche de notícias fazendo uma defesa contundente e escancarada dos arrozeiros, apresentando-os como baluartes do desenvolvimento regional e vítimas de uma grande injustiça. Que tipo de jornalismo é esse que nega aos povos indígenas, diretamente envolvidos nesta questão, o direito à palavra? Cabe perguntar a quem interessam essas versões tendenciosas e distorcidas dos fatos que envolvem a área indígena Raposa Serra do Sol. De longe se pode sentir um sabor de notícia encomendada, daquele tipo que interessa e agrada a quem detém o poder e busca mantê-lo a qualquer custo. Muitas dessas reportagens veiculam opiniões fundadas em estereótipos, marcadas por preconceitos que só se justificam em um discurso colonialista e ultrapassado, que vemos ressurgir de tempos em tempos para respaldar ideologicamente aqueles setores que dominam e subjugam os demais, bem como para criminalizar as lutas daqueles que não acatam a ordem econômica da lucratividade a qualquer custo.


 


Exemplo gritante da forma parcial como tem sido tratada a questão indígena pela grande imprensa, foi o fato ocorrido esta semana em Altamira, Pará, quando um engenheiro da Eletronorte saiu ferido depois de defender o projeto hidrelétrico de Belo Monte, em evento que discute os impactos do empreendimento. O jornal Folha de S. Paulo, por exemplo, tratou o fato como “selvageria”. Ora, quando do atentado em Raposa Serra do Sol, em que homens encapuzados atacaram com tiros e bombas indígenas que apenas construíam barracos, não se falou em “selvageria” e se tratou o ocorrido como “confronto”. Como confirmam muitos estudos acadêmicos sobre mídia, as palavras não apenas descrevem os acontecimentos, elas produzem uma maneira de olhar, e pretendem nos dizer de que lado devemos nos posicionar ao lermos aquela notícia.


 


Manifesto aqui minha indignação a esta forma parcial de noticiar os acontecimentos, que se configura numa tentativa anti-ética de influenciar a opinião pública. Desde o ano de 1999 tenho visitado Boa Vista regularmente, e desfruto da possibilidade de acompanhar o belo processo de organização e de luta dos povos Macuxi, Wapichana, Ingaricó, Taurepang e Patamona para colocar em funcionamento um distrito especial de atenção à saúde indígena. O CIR, esta organização indígena tão caluniada pelos representantes da elite política e econômica interessada nas terras indígenas, administra com seriedade e competência um convênio com a Fundação Nacional de Saúde há oito anos e tem servido de exemplo para muitos outros distritos indígenas no país. Não são poucas as lições de resistência, sabedoria e coragem dos povos indígenas da Raposa Serra do Sol, na qual vivem 18.992 pessoas organizadas em 194 comunidades.


 


O procedimento de demarcação iniciado no final dos anos 70 e finalizado em 2005 comprovou a ocupação tradicional indígena sobre a extensão integral desta área e, para isso, reuniu farta documentação, a partir da qual se torna inegável o direito indígena sobre ela. Embora tenham sido impetradas centenas de contestações aos limites da terra, durante o processo de demarcação, todas foram julgadas e consideradas improcedentes. E agora somos surpreendidos com notícias que tentam desqualificar o trabalho do grupo técnico que realizou os levantamentos necessários para a identificação da terra. Esta é uma estratégia a mais que visa colocar sob suspeita o direito indígena. No entanto, é importante salientar que o procedimento administrativo de demarcação, do qual faz parte a instituição do grupo técnico, reúne informações que servem para reconhecer e não para criar o direito dos índios à terra. Contestar e até suspender o procedimento de demarcação em nada altera o fato de que a terra é de ocupação tradicional dos povos Macuxi, Wapichana, Ingaricó, Taurepang e Patamona.


 


Não é segredo para ninguém que as autoridades do estado de Roraima esforçaram-se, e muito, para inviabilizar a demarcação daquela área, proferindo discursos inflamados, declarando a falência do estado caso se homologasse a terra contínua, atacando diretamente a Fundação Nacional do Índio, a igreja, as Ongs e quem quer que se colocasse favorável à luta indígena no estado. Numa região em que as forças políticas e econômicas são declaradamente anti-indígenas são diversas as formas de violência física, simbólica e cultural, praticadas contra os índios, em especial aqueles que não se submetem às regras do coronelismo local. A violência é a linguagem cotidiana de uma pequena elite, acostumada ao desmando, à discriminação e a brutalidade para garantir vantagens econômicas e privilégios individuais. Se antes eram as fazendas de gado que iam gradativamente invadindo a Raposa Serra do Sol, a partir de 1994 o governo de estado apoiou e incentivou a invasão de arrozeiros, quando esta terra já havia sido declarada indígena. Um lucrativo negócio de monocultivo se iniciou, contando com incentivos e isenções fiscais, numa área de seis mil hectares, com lavouras irrigadas, situadas às margens dos poucos rios ali existentes. E mesmo após a homologação da terra, no ano de 2005, tais arrozeiros se recusam a deixar a área ocupada de má fé e na base da grilagem. Ao contrário do que se tem alardeado na imprensa, os interesses dos arrozeiros em permanecer na terra indígena não estão voltados para o bem comum ou para o desenvolvimento regional que beneficie a todos, mas sim para interesses individuais, restritos, dentro de uma lógica mercantil de acumulação privada de bens e de capitais.


 


Nos últimos dias, o prefeito de Pacaraima Paulo César Quartieiro, um dos seis arrozeiros que pretendem permanecer na terra indígena, se tornou protagonista principal, mas não único, de uma série de violências praticadas contra os povos indígenas na região, e ficou nacionalmente conhecido depois de um ato de terrorismo praticado contra os índios, que deixou 10 feridos a bala. No relato de alguns estudantes indígenas, uma versão bem diferente daquela que tem circulado em grandes jornais:


 


“Cansados de não ser ouvidos e viver num clima de constante terror, indígenas decidiram partir para a ação e após uma grande reunião de homens, mulheres e adolescentes de várias regiões (em torno de 300) e decidiram ocupar no dia 5 de maio de 2008 às 18hs uma parte da margem da fazenda Depósito de Paulo César Quartiero. Deram início a um trabalho de levantamento de barracos e roçados quando foram surpreendidos por um grupo de pistoleiros da fazenda que iniciaram um ataque com bombas e armas de fogo (…). Os pistoleiros abriram fogo contra os indígenas de uma distância aproximada de 15 metros. As armas usadas eram, na maioria, espingardas calibre 16. Se os disparos fossem de uma distância melhor, certamente os tiros seriam mortais. Ao todo, 10 homens foram atingidos pelas bombas e pelos tiros (…). Paulo César foi preso e acusado de três crimes: formação de quadrilha, ocultação de armamento e bloqueio de estrada federal. (Centro Indígena de Formação e Cultura Raposa serra do Sol, 16/05/2008 – Carta de esclarecimento).


 


Antes destes acontecimentos, Paulo César Quartiero e outros arrozeiros foram também protagonistas de ações criminosas e danos contra o patrimônio público, explodindo pontes em manifestações contrárias a ação da Polícia Federal que visava retirar os ocupantes não-índios do interior da terra indígena. Na ocasião, o filho de Quartiero foi ferido com a explosão de uma bomba que transportava em seu veículo. Em janeiro deste ano estes mesmos arrozeiros esperneavam contra a notícia da possível homologação, fechando estradas, ameaçando lideranças indígenas e seqüestrando missionários que atuavam na região. E foram também responsáveis, em novembro de 2004, pela violenta e cruel investida contra as comunidades Jauari, Brilho do Sol e Homologação. Dezenas de homens armados invadiram essas comunidades, atirando nas pessoas e em animais domésticos e atingindo na cabeça uma liderança indígena. Com tratores eles derrubaram 26 casas, deixando desabrigadas mais de 40 famílias.


 


Desde a prisão de Paulo César Quartiero, e libertação sob fiança logo depois, temos o desprazer de ver suas idéias preconceituosas sendo alardeadas em diferentes meios de comunicação. Sua última pérola foi declarar, em entrevista ao jornal Folha de S. Paulo, em 15 de maio de 2008: “Se você disser que a tradição indígena é viver fodido, então concordo. Se você disser que o índio, como ser humano, não quer evoluir, então concordo”. Essa declaração reacionária e preconceituosa de Quartiero se baseia em conceitos evolucionistas do século XVIII, que serviram para legitimar e justificar as invasões, escravizações e genocídios praticados contra os povos de continentes não-europeus. Para este senhor, os povos indígenas estariam numa escala inferior de evolução e, para se tornarem “mais evoluídos” deveriam aceitar a invasão de suas terras e a modificação de suas tradições culturais. Mais do que isso, ele espera que acreditemos que sua presença dentro da terra de Raposa Serra do Sol é benéfica aos povos indígenas, algo como um ato altruísta, um favor prestado aos índios e ao estado de Roraima. Aliás, é exatamente essa a impressão que temos ao ler alguns textos da imprensa local, que anunciam um “final dos tempos”, um futuro de fome e escassez caso os arrozeiros sejam retirados da área indígena. Impressionante o poder das palavras! A este argumento somam-se outros, ampliando exageradamente os limites daquela terra indígena, acusando os seus habitantes de estarem privando a economia do estado dos bens que lá se poderia produzir. A ironia de tudo isso é que um dos maiores rebanhos da região é o da raposa Serra do Sol e esta carne, produzida pelos índios, também abastece os mercados da região, além da farinha e de outros produtos indígenas que colaboram com a economia local.


 


Causa estranheza, ainda, o velho recurso retórico utilizado pelos políticos para conquistar nossa adesão, lançando a pergunta: a quem interessa a demarcação de terras indígenas? Segue-se então a previsível lista de suspeitos: igreja, Ongs, estrangeiros, anti-nacionalistas. Difícil demais para estes intelectuais do jornalismo reconhecerem que demarcar as terras indígenas interessa ao Estado Brasileiro e a todos nós, pois interessa-nos que as leis que criamos sejam cumpridas?


 


Cabe ao Supremo Tribunal Federal (STF) decidir pela manutenção da Portaria 820 que homologa e finaliza o processo de demarcação da terra indígena Raposa Serra do Sol, assegurando o reconhecimento de um direito que não é nenhuma concessão do Estado brasileiro. Se o STF definir pela suspensão da homologação, estará abrindo um perigoso precedente, que coloca em risco os direitos dos povos indígenas, favorecendo aqueles setores que desejam manter seu domínio sobre as terras indígenas, não por interesses nobres voltados para o bem comum, mas para benefício próprio. O que pretendem os políticos da região com seus previsíveis discursos, eivados de um patriotismo quase compulsivo, é a redução da área total da reserva, tornando-a descontínua para, assim, garantir o latifúndio e a monocultura e possibilitando a permanência dos arrozeiros e de outros fazendeiros dentro da área.


 


Está em jogo a lógica do direito constitucional, da limitação do latifúndio em prol da dignidade e da sobrevivência da maioria da população, contra a lógica do latifúndio, da monocultura, do agro-negócio, que interessa a poucos, mas rende verdadeiras fortunas. Fica evidente qual a lógica que orienta o modelo de desenvolvimento daqueles que afirmam que a demarcação das terras indígenas representa um entrave, um atraso, um retrocesso, uma ameaça à soberania nacional. 


 


E o que nos cabe nestas tristes cenas relativas à área indígena Raposa Serra do Sol? Penso que, mais do que assistir perplexos a essa seleção de notícias, imagens e episódios que visam confirmar os lugares de poder no estado de Roraima, e mais do que lamentar a má sorte daqueles povos que vivem nesta situação, precisamos exigir do Estado brasileiro, incluídos aí os poderes Judiciário e Executivo, a imediata retirada dos invasores que, por muitos anos, exploraram as terras indígenas para benefício próprio, e que hoje se articulam para impedir que os direitos destes povos sejam resguardados.


 


Depois de mais de 30 anos de luta para que o estado brasileiro reconhecesse os direitos sobre suas terras, os povos de Roraima ainda enfrentam a opressão física, o assédio moral, a humilhação pública proporcionada por certos setores da imprensa, e o descaso do governo que, conforme o texto constitucional, é responsável não apenas por demarcar as terras, mas por fazer respeitar as culturas e todos os bens indígenas.


 


 


Porto Alegre (RS), 21 de maio de 2008.


 


Iara Tatiana Bonin


Doutora em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul


 


 


 

Fonte: Cimi
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