05/05/2008

Do Brasil de batizados ao Brasil de discípulos missionários

Caminhar com Aparecida além de Aparecida[1]


 


 


Paulo Suess


 


1. Introdução


 


A V Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano e Caribenho aponta com certa insatisfação para o Brasil de batizados, sem empenho missionário. Porque o povo ainda pede o batismo? Nossa América de batizados é um mosaico de cristianismos e religiosidades com múltiplos significados. Olhando de fora, a partir do catolicismo oficial, esse cristianismo popular pode ser visto apenas como cristianismo cultural, e a resistência silenciosa pode ser confundida com conformismo, sem impacto sobre a vida cotidiana. Nem sempre é possível distinguir entre a sabedoria da passividade que espera o momento certo para resistir, e o conformismo que perdeu a esperança da possibilidade de transformações. Num continente de pobres e famintos, de violência e injustiça, de migrantes sem pátria, de sem-terra e sem-casa, a resistência contra “a crescente cultura da morte” (DA 185) com a ajuda da própria religião já pode ser considerada uma missão militante.


 


O realismo pastoral nos lembra que nunca na história da Igreja houve um conjunto de batizados que se tornasse sujeito de uma “religiosidade virtuosa” como modelo da vida cotidiana[2]. Esse modelo radical comprometeria o indivíduo batizado e sua comunidade com uma “ética virtuosa” e rigorosa. Apesar de muitos apelos enfáticos ao heroísmo e à santidade dos discípulos missionários, afinal, à sua “religiosidade virtuosa” no DA, a Igreja de Aparecida sabe que a “ética virtuosa” é apenas um horizonte regulativo. Uma Igreja-missão que correspondesse a uma Igreja toda missionária, mística e militante, deveria trabalhar as mediações históricas (neoliberalismo, sociedade de classe, estrutura ministerial) para alcançar esse objetivo. Como essas mediações não foram suficientemente trabalhadas, o DA em si não terá força para romper com a normalidade da vida eclesial. As nossas cúrias, dioceses e paróquias, grosso modo, não estão dispostas a intervenções estruturais. A transformação de agentes de pastoral em carismáticos ascetas, profetas ou pastores incansáveis de tempo integral, e com religiosidade e ética virtuosas, é pouco provável. Com um clero muito reduzido e, muitas vezes, sobrecarregado pelo dever sacramental, alguns setores de Aparecida apostam nos movimentos carismáticos, outros, provavelmente ainda a maioria, apostam no serviço generoso de leigos voluntários. Mas, no mundo urbano, esses leigos e leigas estão trabalhando de sol a sol para sustentar as suas famílias.


 


O paradigma-síntese de Aparecida, a missão no seu sentido pleno, nos confere a responsabilidade da transformação. Os encarregados de passar o DA para a vida pastoral cotidiana têm pouca autonomia. Todos passam o ferro quente das mudanças estruturais adiante. Para transformar o discurso da “natureza missionária” (DA 347, AG 2), da justiça e solidariedade em ajuda competente, não basta apenas agitar a bandeira dos princípios da doutrina social[3] e das cobranças de políticas públicas[4]. 


 


Depois de 500 anos de missão estreitamente afinada com a colonização, seguiram décadas que denunciaram essa missão como ideologia colonizadora. Mas, depois do Vaticano II, já não é mais possível responder à pergunta dos neófitos sobre o destino dos antepassados, como Francisco de Xavier respondeu aos Japoneses, José de Anchieta aos índios e Antônio Vieira aos escravos africanos. O lugar das almas daqueles que não foram batizados não é o inferno[5]. Juntamente com muitas outras denominações evangélicas, a Igreja não aboliu o espírito da exclusividade salvífica. Mas a Igreja Católica modificou a compreensão dessa exclusividade, afirmando que a graça concedida por Jesus Cristo a ela pode salvar também pessoas de outras religiões ou mesmo pessoas sem religião[6].


 


Hoje, a missão voltou ao coração da Igreja e ao centro da teologia. Tornou-se o paradigma-síntese de Aparecida. Agora depende muito da leitura que fazemos do Documento de Aparecida, para que a missão não se torne apenas um serviço de bombeiros com objetivo de recuperar perdas numéricas. O paradigma pós-Aparecida da missão, resgatado da ideologia de colonização, do exclusivismo salvífico e do fundamentalismo legalista, deve nos ajudar a “conhecer e entender o mundo no qual vivemos, suas esperanças, suas aspirações” (GS 4) e deve nos capacitar “a transformar o mundo” (DA 290). Desde Medellín, cujo tema era “A Igreja na atual transformação da América Latina à luz do Concílio”, a Igreja procura acompanhar a realidade latino-americana na qual “acontecem complexas transformações socioeconômicas, culturais, políticas e religiosas (…)” (DA 511).


 


“Discernimento da realidade”, “conversão” e “transformação”, que configuram o paradigma da missão, são palavras-chave do DA[7]. Esse tripé “realidade-conversão-transformação” vai configurar uma Igreja “em estado de missão” (DA 213). Isso significa que os batizados assumam sua vocação de uma missionariedade ecumenicamente militante e transformadora contra a “cultura da morte”.


 


2. Discernimentos


 


O clamor por transformações é um indicador que vivemos num tempo de crise que exige discernimentos a partir da Palavra de Deus que “é o motor inesgotável da missão eclesial”[8]. É um tempo favorável para discernir entre dois projetos de sociedade, para assumir o projeto de Jesus de Nazaré, para anunciar o Reino de Deus “com palavras e obras, com o testemunho da vida e o ensino”[9].  Entre esses dois projetos de sociedade houve muitas lutas, resistência indígena e afro-americana, lutas camponesas e operárias. Surgiram muitos líderes populares, santos e mártires. Até hoje, os dois projetos se confrontam. Ambos encontram nas Igrejas e no seu trabalho missionário aliados, parceiros e opositores.


 


O paradigma da missão, desde as primeiras experiências pascais dos discípulos e discípulas de Jesus Cristo até Aparecida, deve ser colocado no contexto de uma longa história, marcada por desvios e acertos individuais e coletivos, lutas ideológicas e guerras religiosas. E Aparecida significa continuidade e inovação.


 


2.1. Variantes históricas


 


As variantes coletivas e históricas do paradigma-missão estão marcadas pela colonização, pelo desenvolvimentismo, pelo fundamentalismo, pela tutela e pela contextualização libertadora. De uma ou outra maneira, essas variantes estão presentes no agir eclesial de todos os tempos. Pode-se distinguir cinco práticas missionárias bem diferentes:


 


a) uma missão colonizadora com ênfase na doutrina, nos sacramentos e nas estatísticas que, em estreita aliança com o poder da respectiva época, confunde a cultura como veículo da evangelização com a própria evangelização, como se o Evangelho não fosse capaz de se inserir em todas as culturas;


b) uma missão desenvolvimentista, que confunde o futuro com progresso material e tecnológico. Ela se insere naquilo que os analistas sociais chamam de “modernização conservadora”;


c) uma missão fundamentalista, sem diálogo interdisciplinar, que interpreta a Escritura ao pé da letra, dispensando a racionalidade inerente ao Evangelho;


d) uma missão tutora, acompanhada de atitudes paternalistas. Ela não visa ao cristão adulto e livre. Sua catequese é uma extensão da catequese infantil para todas as faixas etárias; trata os leigos, sobretudo os pobres, como incompetentes em matéria de fé;


e) uma missão encarnacionista-libertadora, com sua inspiração no Vaticano II e no magistério latino-americano, que valoriza o contexto histórico e sociocultural no intuito de “perscrutar os sinais dos tempos e interpretá-los à luz do Evangelho, de tal modo que possa responder, de maneira adaptada a cada geração, às interrogações eternas sobre o significado da vida presente e futura e de suas relações mútuas” (GS 4). Seus pressupostos são a opção pelos pobres e a assunção da alteridade, sem resquícios de colonização e hegemonia cultural.


 


Cada época tem seu tipo missionário hegemônico, o que não quer dizer “único”. Sempre se afirmam também tentativas alternativas de viver o paradigma missionário (Antônio Montesinos!)[10].


 


2.2. Ambivalência


 


Eventos históricos e seus documentos são estruturalmente ambivalentes. Também as cinco Conferências Gerais do Episcopado Latino-Americano e do Caribe e seus “Textos Conclusivos” oferecem ambivalências e ambigüidades. O mesmo aconteceu com os textos produzidos pelo Vaticano II. O fato de eventos e textos serem sempre não-conclusivos exige sua interpretação e permite sua recepção diferenciada. As respectivas conferências e seus documentos ganharam força ou não através de sua recepção eclesial e interpretação teológica.


 


Também o DA é ambivalente. A ambivalência de Aparecida está não só nas contribuições de setores diferentes, mas também na razão de sua gênese. Seu tema “Discípulos e missionários de Jesus Cristo, para que nossos povos nele tenham vida – Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida” nasceu a partir da constatação de uma perda de fiéis (cf. 100 a) atribuída a uma superioridade do esforço missionário das Igrejas pentecostais. “Significativo número de católicos estão abandonando a Igreja para entrar em outros grupos religiosos” (DA 100 f). Aparecida está implicitamente marcado por um espírito de recuperação numérica de fiéis através de atitudes miméticas, copiando métodos de grupos pentecostais, cujos ministros e fiéis não param de crescer. As perdas não devem levar a Igreja Católica a adotar uma espécie de “recall”, estratégia das montadoras de carro para corrigir defeitos detectados em peças de uma série de veículos. É melhor cuidar do jardim do que correr atrás das borboletas.


 


2.3. Setores


 


O DA surgiu a partir da prática de cinco setores diferentes, aos quais correspondem as seguintes pastorais:


 


– a pastoral militante dos adeptos da teologia de libertação;


– a pastoral do bispo “bom pastor” com grande sensibilidade para a realidade do povo;


– a doutrina descontextualizada de alguns movimentos com militância proselitista e/ou fundamentalista;


– a vigilância dos enviados por Roma com sua teologia clássica e descontextualizada;


– os pragmáticos sem alinhamento teológico profundo.


 


2.4. Continuidade e inovação


 


Na bandeira das intenções de Aparecida está escrito: “inovação em continuidade”. A V Conferência dá um “novo passo no caminho da Igreja, especialmente a partir do Concílio Ecumênico Vaticano II. Ela dá continuidade e, ao mesmo tempo, recapitula o caminho de fidelidade (…), que se expressou oportunamente nas Conferências Gerais anteriores do Episcopado (Rio, 1955; Medellín, 1968; Puebla, 1979; Santo Domingo, 1992). Em todas elas reconhecemos a ação do Espírito” (DA 9). O paradigma da missão não é formal nem semanticamente novo. Desde os anos 60, em parte já antes do Vaticano II, existem tentativas na Igreja Católica de resgatar na pastoral o paradigma de uma missão contextualizada, encarnada e libertadora (padres operários, movimento litúrgico, junto aos povos indígena, afro-descendentes e migrantes, da terra). A missão em Aparecida pode ser interpretada como paradigma-síntese das conferências anteriores que tenta integrar descolonização, libertação, opção pelos pobres, assunção da realidade e inculturação no paradigma único da missão, aberto às transformações em curso.


 


2.5. Ministérios


 


A dimensão trágica de Aparecida se encontra na constatação de que tudo está em transformação, de propor transformações do mundo e da própria Igreja, sem poder assumir as transformações mais urgentes que atingem as estruturas ministeriais. Essas transformações seriam necessárias para que “a força transformadora do mandamento novo” (DA 273) chegue aos seus destinatários. Numa situação de múltiplas ofertas, uma loja com cada vez menos vendedores, apesar de propostas de treinamentos sofisticados, vende cada vez menos seu produto[11]. 


 


O paradigma-síntese de Aparecida, a missão no seu sentido pleno, nos confere a responsabilidade da transformação. Para renovar a verdadeira tradição evangélica, que promete vida a todos, para cumprir a palavra de Deus e nos comprometer radicalmente com ela, precisamos saber perder tradições secundárias e sacrificar costumes de acomodação (cf. DA 362). O apelo a um novo Pentecostes parece melancólico: “Esperamos um novo Pentecostes, que nos livre do cansaço, da desilusão, da acomodação ao ambiente; esperamos uma vinda do Espírito que renove nossa alegria e nossa esperança” (DA 362).


 


2.6. Propostas paliativas


 


Alguns setores presentes em Aparecida propõem soluções paliativas: recorrer aos movimentos e aos meios de comunicação. Apostam na prosperidade de movimentos religiosos católicos que dispensam a transformação de estruturas ministeriais e sociais. Os movimentos respondem, segundo F. Houtart, a uma necessidade social, psicológica e religiosa. A migração forçada pelo modelo econômico neoliberal do campo para a grande cidade destruiu as sociedades tradicionais. Os movimentos conseguem reconstruir comunidades urbanas à base de uma espiritualidade intimista sem aprofundamento de compromissos sociais, de uma pertença exclusivista (os novos eleitos!), de uma estrutura hierárquica e de uma doutrina de salvação individual. Em seu conjunto dão sentido à vida, ainda que equivocado, porque não visam uma transformação social que permita uma real integração dos seus seguidores à sociedade[12].


 


O setor da modernização conservadora aposta nos meios de comunicação: “Temos rádios, televisão, cinema, jornais, internet (…) que nos enchem de esperança” (DA 99f). Acreditam que com esses meios podem mimeticamente resistir “a outros grupos religiosos que ganham constantemente adeptos usando com perspicácia o rádio e a televisão” (DA 99f, cf. 486d). Quem assiste às “televisões católicas” dificilmente partilha essa esperança. Por um lado, estão inseridas no sistema capitalista, que as faz econômica e ideologicamente dependentes. Por outro lado, são expressão da “cultura de massa”, que reproduz o sistema neocolonizador, dispensa o protagonismo dos pobres, visa consumidores indefesos em larga escala e produz vítimas da “cultura da visibilidade”. Olham para um altar transformado em palco, assistem uma show-missa dominical e escutam um sermão que parece uma aula catequética para crianças da primeira comunhão. Enquanto os meios de comunicação forem propriedade privada no interior do sistema capitalista, não se pode esperar deles uma contribuição relevante para a causa do Reino, dos pobres e dos outros em nenhum lugar do mundo[13].


 


3. Critérios


 


Os discernimentos permitem delinear critérios e compromissos[14] fundamentais para construir, no contexto pós-Aparecida, o paradigma da missão em sua especificidade, integralidade, universalidade e contextualidade. A especificidade exige nomear os sujeitos da missão e a integralidade visa todas as dimensões da vida desses sujeitos (dimensão material, espiritual, emocional e intelectual). A universalidade do paradigma indica que se trata de uma causa ampla e não de um caso localizado que permite remendos parciais. Mas, essa universalidade da causa precisa ser colocada em seu contexto histórico e sócio-cultural (economia, política, sociedade, cultura). Haveremos de construir esse paradigma sem medo da ruptura entre aparência e essência, entre a naturalização da injustiça e a justiça da ressurreição. Ao romper com o sistema da morte, que coisifica e capitaliza as relações humanas, a missão restabelece, a partir da memória passionis como memória perigosa, o horizonte de uma justiça definitiva na esperança da vida cotidiana dos pobres.


 


3.1. Opção pelos pobres


 


Porque “hoje, toda a Igreja na América Latina e no Caribe quer colocar-se em estado de missão” (DA 213)? A razão da missão é o anúncio do Reino de Deus, o encontro e a peregrinação com Jesus Cristo que é o caminho, a verdade e a vida. Aparecida contextualiza a mediação dessa resposta: “O encontro com Jesus Cristo através dos pobres é uma dimensão constitutiva de nossa fé (…) e do encontro com Ele nos aflitos e marginalizados (…) surge nossa opção por eles” (DA 257). “Tudo o que tenha relação com Cristo tem relação com os pobres e tudo o que está relacionado com os pobres clama por Jesus Cristo” (DA 393). Por causa da proximidade dos pobres com Jesus Cristo e com a realidade, a opção pelos pobres deve ser feita com os pobres.


 


Em nosso continente vive uma multidão crescente “sob o flagelo da pobreza” (DA 176, cf. 62, 444), num mundo globalizado “sem solidariedade” (DA 65). No cristianismo, os pobres são uma questão de ortodoxia. Na lógica do Reino, os que vivem do lado sombrio do mundo são caminhos da verdade e porta da vida. Pecado significa indiferença diante da exploração dos pobres. Desde que o Verbo nasceu em um estábulo e assumiu a “condição humilde, de pobre” (DA 52), tornou-se plausível que “os rostos sofredores dos pobres são rostos sofredores de Cristo” (DA 393). Os pobres são o lugar da epifania de Deus, por excelência. No cristianismo, essa pobreza do próprio Deus tem muitos nomes: encarnação, cruz, ressurreição, eucaristia. “A pobreza é a verdadeira aparição divina da verdade”[15].  Por isso, a “Igreja assume a causa dos pobres” (DA 94), se faz “companheira de caminho” deles, “inclusive até o martírio” (DA 396). Para que a opção pelos pobres seja preferencial, “implica que deva atravessar todas as nossas estruturas e prioridades pastorais” (DA 396).


 


3.2. A realidade


 


Os pobres, vítimas da coisificação e capitalização das relações humanas, são os mediadores de uma realidade que conhecemos apenas através do “ouvir-falar” e de uma “imagem desfigurada” de um retrovisor de carro. A realidade não se revela facilmente. Os pobres e a humanidade mutilada vivem as rachaduras e os bloqueios dessa realidade e nos fazem assumir um “compromisso com a realidade” (DA 491, cf. 403). A “aproximação pastoral à realidade” (DA 403) se faz “presente nas novas realidades de exclusão e marginalização em que vivem os grupos mais vulneráveis, onde a vida está mais ameaçada” (DA 401). A proximidade aos pobres, que gera uma permanente indignação e inconformidade ética com o mundo assim como é, é a condição de uma missão não-ideológica.


 


O Evangelho incentiva expressar essa indignação positivamente, como socorro concreto às vítimas, e como ruptura. A proximidade às vítimas impede que o Evangelho se torne “grande relato” a serviço de uma classe ou cultura dominante. Na opção pelos pobres e com eles, trata-se de uma “teologia fundamental” e de uma “prioridade pastoral”, e não de uma mistificação da pobreza nem de uma idealização dos pobres. Idealizar os pobres e os outros (povos indígenas!) significaria privá-los de sua dignidade humana e histórica de santos e pecadores.


 


A negação sistêmica das condições de vida aos pobres e a negação do reconhecimento dos outros colocam os discípulos-missionários no centro dos conflitos que perpassam o mundo e a humanidade e que exigem transformações profundas. Vivemos numa “realidade marcada por grandes mudanças”, que nos obrigam a “discernir os `sinais dos tempos´, à luz do Espírito Santo, para nos colocarmos a serviço do Reino” (DA 33).


 


Aparecida retoma o método do ´ver, julgar e agir´, que “permite articular, de modo sistemático, a perspectiva cristã de ver a realidade; a assunção de critérios que provêm da fé e da razão para seu discernimento e valorização com sentido crítico” (DA 19). Para os cristãos, a verdade do ser divino no ser humano ilumina a realidade. Deus faz parte da realidade (cf. DA 44, 405). “A ciência e a técnica (…) com os critérios únicos da eficácia, da rentabilidade e do funcional” contribuem para a destruição do “que de verdadeiramente humano há nos processos de construção cultural” (DA 45).


 


Análise e articulação da realidade exigem um “trabalho interdisciplinar de teologia e ciências humanas, que ilumine a pastoral” (DA 437j, cf. 465). A complexidade do mundo “nos tem ensinado a olhar a realidade com mais humildade” (DA 36, cf. 345). Diante da “crise do sentido” (DA 37, cf. 38), que emana dessa realidade complexa e ambivalente, marcada por violência e injustiça (cf. DA 427), o serviço missionário “torna-nos comprometidos com os reclamos da realidade e capazes de encontrar nela profundo significado” (DA 285), porque nessa realidade está a chance de fazer “a experiência do encontro com Jesus Cristo vivo” (DA 167). Jesus Cristo “está naqueles que dão testemunho de luta pela justiça, pela paz e pelo bem comum, algumas vezes chegando a entregar a própria vida” (DA 256). Os cristãos compreendem “a realidade pertinente e significativa de salvação” (DA 480) a partir da fé, quer dizer, “a partir da realidade transformadora do Reino de Deus que se faz presente em Jesus” (DA 382), sobretudo “na pessoa dos mais necessitados” (DA 278e).


 


3.3. Ruptura do Reino


 


O que significa: “O projeto de Jesus é instaurar o Reino” (DA 361)? O que significa: Todos devem converter-se ao Reino e “submeter tudo ao serviço da instauração do Reino da vida” (DA 366), “testemunhar” seus valores (DA 212) e produzir seus sinais? “Sinais evidentes da presença do Reino são: a vivência pessoal e comunitária das bem-aventuranças, a evangelização dos pobres, o conhecimento e cumprimento da vontade do Pai, o martírio pela fé, o acesso de todos aos bens da criação, o perdão mútuo (…)” (DA 383, cf. 374). Que não tenhamos medo de dizer explicitamente o que significa tudo isso, mesmo que os guardiões do pretório e do templo nos venham apedrejar! A missão está a serviço do Reino (DA 33, 190, 223) e o Reino é dos pobres. “No seguimento de Jesus Cristo, aprendemos e praticamos as bem-aventuranças do Reino” (DA 139), sobretudo “sua proximidade aos pobres e aos pequenos” (DA 139). A humanidade mutilada é a mediação do Reino de Deus (cf. Mt 19,16 e Lc 10,25).


 


A Igreja convida os batizados a serem “defensores da vida do Reino” diante de tantas “situações desumanas” (DA 358) e a desenvolverem uma “presença profética que saiba levantar a voz em relação a questões de valores e princípios do Reino de Deus” (518i). Aí está a transformação da América Latina e do Caribe de batizados em discípulos-missionários. “Como fermento do Reino”, em comunhão fraterna a serviço dos mais pobres, temos a força de transformar a “cidade atual” em “Cidade Santa” (DA 516, cf. 382). A dimensão histórica e escatológica do Reino nos faz compreender sua realidade como “serviço”, “construção”, “ruptura” e “mistério” a serviço da vida (cf. DA, cap. VII e VIII).


 


A “paixão pelo Reino” (DA 152) é sofrimento pelo Reino. Nos propõe a continuidade histórica e memorial da caminhada dos pobres que não foi nem será em vão, e impõe a ruptura com o sistema capitalista neoliberal em gestos concretos. Sem essa ruptura, ao menos simbólica, “nossa opção pelos pobres corre o risco de ficar em plano teórico (…) sem incidência em nossos comportamentos e em nossas decisões” (DA 397). Essa ruptura pode configurar-se como resistência, protesto, recusa, conversão, gratuidade e ascese. “Os discípulos e missionários de Cristo promovem uma cultura do compartilhar em todos os níveis, em contraposição à cultura dominante de acumulação egoísta, assumindo com seriedade a virtude da pobreza como estilo de vida sóbrio para ir ao encontro e ajudar as necessidades dos irmãos que vivem na indigência” (540). Eis as exigências da conversão pastoral!


 


3.4. Protagonismo dos pobres


 


Com quem podemos contar para romper o sistema e com quem podemos construir o mundo novo? Com padres e religiosas, com bispos ou párocos? Com quem fazer a Missão Continental e sustentar o dinamismo de paróquias como “centros de irradiação missionária” (DA 306) se mal conseguimos “segurar” os católicos ainda praticantes? Aparecida corre o risco de se tornar “desaparecida”.


 


O anúncio da “boa nova do Reino aos pobres” (DA 30) só pode contar com aqueles setores que estão dispostos a romper com o sistema, que, de um modo geral, são os próprios pobres. Eles “exigem nosso compromisso e nos dão testemunho de fé, paciência no sofrimento e constante luta para continuar vivendo. Quantas vezes os pobres e os que sofrem nos evangelizam realmente!” (DA 257) pergunta Aparecida. “Dia a dia os pobres se fazem sujeitos da evangelização e da promoção humana integral: educam seus filhos na fé, vivem constantes solidariedades entre parentes e vizinhos, procuram constantemente a Deus e dão vida ao peregrinar da Igreja. (…) A partir dessa experiência cristã, compartilharemos com eles a defesa de seus direitos” (398). “A verdadeira promoção humana não pode reduzir-se a aspectos particulares: `Deve ser integral, isto é, promover todos os homens e o homem todo´, a partir da vida nova em Cristo que transforma a pessoa de tal maneira que `a faz sujeito de seu próprio desenvolvimento´” (DA 399). Por isso, há que se organizar uma pastoral que “se faça presente nas novas realidades de exclusão e marginalização em que vivem os grupos mais vulneráveis, onde a vida está mais ameaçada” (DA 401).


 


O protagonismo dos pobres na Igreja está na origem de uma nova eclesiologia. Falar da Igreja significa falar da missão do Povo de Deus. A estrutura dessa Igreja-missão é trinitária. Ela é “Povo de Deus”, “Corpo do Senhor” e “Templo do Espírito Santo (LG 17). Por ser “Templo do Espírito Santo”, é também casa dos pobres. Aparecida expressa isso quando afirma: “A Igreja é morada de povos irmãos e casa dos pobres” (8, cf. 524). Na realidade isso significa que a Igreja é o lugar onde os pobres nunca são excluídos, onde participam das decisões importantes e onde sua causa é prioritária. A causa dos pobres, que é universal, exige alianças com outros setores sociais com afinidade ideológica e em cujo horizonte está igualmente a ruptura sistêmica. Na centralidade dos pobres, a Igreja reconhece “a sua missão de advogada da justiça e dos pobres” (DA 533, 395). Para essa missão, o próprio Cristo “nos confiou o ministério da reconciliação” (2Co 5,18), não como proposta interclassista ou “terceira via”, mas como opção pelos pobres e com os pobres.


 


3.5. Gratuidade


 


No mundo competitivo e excludente, onde tudo vale somente pelo seu preço de mercado, a essência da missão cristã está vinculada à derrota do reino da necessidade (“custo-benefício”) e à recuperação de um espaço e projeto alternativos de não-mercado e gratuidade. O “desejo missionário” não procura uma propriedade, mas uma alteridade reveladora. Deslocamo-nos para um determinado campo de missão, não para abrir uma casa, mas para percorrer caminhos. A posse escraviza, a caminhada liberta. A comunidade missionária confia na atração de seu testemunho gratuito. Seu “marketing” dispensa propaganda e armas. O caminhar no Espírito é sempre um caminhar desarmado na simplicidade e na pobreza.


 


A condição formal e material da revelação do “objeto desejado” é a caminhada. Para ver Deus face a face não é preciso chegar a uma reta final. Ele está na brisa suave do caminho, no brilho dos olhos tristes e alegres do pobre, na caminhada despojada entre dois ou três. O espaço-projeto, que não visa à simples reintegração no projeto falido da sociedade fragmentada pelo neoliberalismo, está configurado pela gratuidade da cruz de Jesus de Nazaré e da experiência pascal dos seus discípulos. Essa gratuidade da cruz não é o prefácio da história de libertação e emancipação, mas seu eixo permanente: “O amor de doação plena, como solução para o conflito, deve ser o eixo cultural `radical` de uma nova sociedade” (DA 543). “Na generosidade dos missionários se manifesta a generosidade de Deus, na gratuidade dos apóstolos aparece a gratuidade do Evangelho” (DA 31). A Igreja missionária, “casa dos pobres”,  é uma Igreja pobre. Dos pobres, materialmente, a Igreja não pode esperar nada. Deles recebe a oportunidade de fazer algo de graça; recebe o dom da gratuidade e a proximidade do Espírito Santo, que é Deus no gesto do dom.


 


A gratuidade impulsiona necessariamente à simplicidade institucional. Somente estruturas leves permitem acolher a perspectiva da gratuidade. Uma Igreja a caminho é uma Igreja simples e transparente. “Quando vos mandei sem bolsa, sem mochila e sem calçado, faltou-vos, porventura, alguma coisa?” (Lc 22,35). À complexidade do mundo a igreja missionária reponde com simplicidade, que é sinal de toda transformação autêntica. Mas, a gratuidade institucional e individual, geralmente, é, como o Reino de Deus, um “horizonte regulativo”, e não um estado conquistável. A gratuidade em todas as suas dimensões espirituais e materiais não é uma “posse”, mas dom e promessa do Espírito Santo.


 


A gratuidade, na contra-mão do sistema capitalista, aponta para a possibilidade de um mundo para todos, mas também para desconexões sistêmicas, mudanças de mentalidade e estruturas eclesiais. O Espírito Santo, que é dom e que dá vida, vive no Verbo encarnado, na Palavra cumprida na cruz e na ressurreição. Ele, que é o pai dos pobres e a vida do Verbo, vive também conosco na Palavra de Deus cumprida na fidelidade à sua missão. O dom não dispensa o próprio esforço. “A vida é presente gratuito de Deus, dom e tarefa que devemos cuidar (…)” (DA 464). O espaço da gratuidade é delineado pela solidariedade desinteressada, pela partilha da palavra, do caminho e dos bens. Vivemos a jornada missionária na partilha do pouco que temos, nas causas do Reino que defendemos e na articulação de comunidades-redes que, a partir de sua fé, resistem contra todo tipo de hegemonia e prestam socorro aos que caíram nas mãos dos ladrões (cf. Lc 10,25ss).


 


Os espaços de gratuidade inerentes ao cristianismo são espaços públicos e universais de resistência contra espaços feitos territórios de lucro. O lucro particulariza e privatiza. O culturalmente correto definido pelos vencedores divide e fragmenta. O mercado não é para todos. A globalização neoliberal produz divisão, acumulação, exclusão e hegemonia. Contra a globalização excludente, a universalidade do Evangelho lembra a todos de sua dignidade como criatura à semelhança de Deus, sua subjetividade, sua cidadania e sua responsabilidade nos processos de libertação.


 


4. Compromisso com a esperança dos pobres


 


Considerando as limitações institucionais e conjunturais de hoje, qual é o núcleo central para a reflexão e a prática missionárias? Como o paradigma missionário pode tornar-se mais coerente com a palavra de Deus, mais relevante para os pobres e por intermédio deles para a humanidade?


 


Para responder a essas e a outras perguntas, devemos captar os anseios profundos dos nossos contemporâneos, as suas feridas, a sua situação psíquica e social presentes não só nos indicadores sociais, mas também nos macrodiscursos que justificam esses indicadores sociais como irreversíveis. Para desmontar a miséria, precisamos concomitantemente, ou até antes, desmontar os discursos e o imaginário que legitimam essa miséria. O imaginário é uma força poderosa do campo religioso. As lutas sociais, às vezes, não avançam no campo político e legislativo por não conseguirem interferir no campo mitológico e no imaginário que sustenta a sociedade alienada, violenta e violentada.


 


Os macrodiscursos com os quais hoje nos confrontamos são os discursos sobre o capitalismo de cunho neoliberal sem alternativa, sobre o fim das utopias e da história, e sobre o consumo como autoafirmação do indivíduo. As estatísticas de suicídios e mortes prematuras assustam. Esses discursos geram um clima depressivo. Interpelam o imaginário pascal performativo do paradigma missionário com sua capacidade de impactar a realidade social. Nossa segunda natureza, a natureza missionária (superestrutura) é capaz de interferir sobre a primeira natureza, que não é só a natureza física, mas inclui as relações sociais de produção e trabalho que transformam o mundo (infra-estrutura). No centro dessa segunda natureza, da natureza missionária, está o imaginário da ressurreição, portanto, uma imagem de esperança e de justiça. Esperança tenho hoje. Justiça haverá amanhã. Na esperança coincidem os três tempos: o passado da memória coletiva da Igreja, que celebramos na Eucaristia; o futuro dos nossos sonhos e utopias, configurados na fé da comunidade missionária como mundo novo; e o presente, que concretamente vivemos na caminhada do povo de Deus, em suas alegrias e angústias de hoje (cf. GS 1). A esperança é uma dimensão comunitária da nossa vida.


 


A esperança nasce quando as vítimas aprendem a falar, agir, organizar; quando os discípulos-missionários se fazem presentes no meio do povo, rejeitam o próprio protagonismo e abrem mão das vantagens de sua classe social, acompanham os processos de organização, ajudam a expulsar o sentimento da incapacidade dos pobres e se empenham em transformar os desejos (alienantes: cobiça, segurança) em esperança histórica[16].


 


Fonte: Cimi - Assessoria Teológica

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