29/02/2008

A “Via Crucis” da saúde indígena no Brasil – Artigo de Paulo Daniel (CIR – Saúde)

A Quarta Conferência Nacional de Saúde Indígena realizada em março de 2006 ofereceu um retrato fiel das contradições que assolam a saúde dos povos indígenas do Brasil nos últimos anos. Realizada em meio a uma série de denúncias e protestos sobre a situação da assistência à saúde em várias regiões do país, a etapa nacional aconteceu na luxuosa Pousada do Rio Quente em Goiás, com um custo elevado e injustificado, que contribuiu para o isolamento e a desmobilização dos delegados e participantes. Ao final, a quase totalidade da delegação indígena da Amazônia e segmentos importantes das outras delegações encaminhou um abaixo assinado ao Ministério Público Federal questionando a legitimidade da conferência, marcada pela falta de democracia em boa parte das etapas locais e distritais, o que resultou na aprovação de um documento que não contempla as preocupações reais do movimento indígena no país. 


 


A crise na gestão do Subsistema de Saúde Indígena tem suas raízes em uma soma de interesses contrários à sua efetiva implementação, como entraves burocráticos, visões tecnicistas e ingerências políticas, que tem levado à paralisação e ao retrocesso os programas de saúde desenvolvidos em quase todos os distritos. A Fundação Nacional de Saúde (FUNASA), órgão responsável pela coordenação do sistema, não conseguiu constituir um corpo técnico adequado às exigências constitucionais de integralidade das ações e de respeito à diversidade da cultura indígena, e resiste às iniciativas voltadas à maior autonomia dos distritos e fortalecimento do controle social, mantendo o poder de decisão concentrado nas instâncias centrais e nas coordenações regionais do órgão.        


 


            O Fórum dos Presidentes de Conselhos Distritais de Saúde (CONDISI) em reunião realizada em março de 2007 denunciou que o volume de recursos públicos destinados à saúde indígena aumentou em mais de 100% no primeiro mandato do Presidente Lula, mas a assistência piorou na maioria dos distritos e a mortalidade infantil indígena hoje é o dobro da média nacional. Segundo levantamento dos presidentes de CONDISI, mais de cinqüenta ocupações de instalações da FUNASA aconteceram somente no ano de 2006 em todas as regiões do país. Entre as causas apontadas estão a falta de investimentos na infra-estrutura (como equipamentos, construções e saneamento básico), a precariedade das Casas de Saúde Indígenas (CASAI), os atrasos no repasse dos recursos para a assistência, problemas na aquisição de medicamentos, e dificuldades para o funcionamento do controle social.    


 


A municipalização da saúde indígena tem sido denunciada por muitas lideranças indígenas, e se manifesta pelo repasse de recursos para os gestores municipais sem a prévia autorização e efetivo acompanhamento pelas instâncias de controle social. O Ministério da Saúde editou em setembro de 2007 a Portaria 2.656, com o objetivo declarado de regulamentar o repasse dos recursos do Incentivo à Atenção Básica dos Povos Indígenas (IAB-PI) para os municípios. A portaria foi considerada por grande parte das organizações indígenas e presidentes dos Conselhos Distritais de Saúde Indígena (CONDISI) como tendo um forte viés municipalizante, ao aumentar de forma acentuada o repasse de recursos para os municípios principalmente na região amazônica sem os mecanismos adequados de fiscalização pela FUNASA e pelo controle social. A experiência da gestão da saúde indígena por meio dos municípios tem sido muito questionada e é considerada insatisfatória na maior parte dos distritos sanitários indígenas do país.


 


A ausência de um marco legal adequado ao estabelecimento de parcerias com organizações indígenas ou da sociedade civil tem provocado graves distorções e fragilidades na execução das ações complementares previstas no Subsistema da Saúde Indígena. O modelo inadequado dos convênios e o desinteresse da FUNASA no aprimoramento destes mecanismos, como solicitado exaustivamente pelas organizações parceiras e pelas conferências nos últimos oito anos, têm levado à criminalização das entidades conveniadas com graves prejuízos para os usuários. Uma ação civil pública movida pelo Ministério Público do Trabalho no final de 2007 determinou a suspensão imediata dos chamados “falsos convênios”, estabelecidos após a edição da Portaria 70 pela FUNASA com o objetivo único de intermediar a contratação de mão de obra para a instituição. A decisão judicial distingue os convênios ilegais daqueles celebrados em harmonia com a legislação pertinente, que poderiam seguir funcionando normalmente. 


 


A ausência dos investimentos urgentes na infra-estrutura dos distritos nos últimos anos é hoje um dos principais problemas enfrentados pelos profissionais que atuam nas comunidades indígenas, levando a um brutal sucateamento dos veículos, barcos, radiofonias, microscópios e equipamentos médicos indispensáveis para a execução das ações de saúde nas aldeias. Esta situação, aliada à falta de medicamentos e insumos indispensáveis, muitas vezes tem impedido o próprio deslocamento das equipes e contribuído para a alta rotatividade dos profissionais na área, gerando enorme insatisfação e colocando em risco a vida de trabalhadores, pacientes e usuários indígenas dos serviços.   


 


As deliberações aprovadas nos conselhos de saúde indígena são sistematicamente desrespeitadas, provocando a desmobilização e o desinteresse por estas atividades. Em muitos distritos as reuniões são canceladas repetidamente, e ficam sem acontecer por períodos superiores a um ano. O desrespeito ao controle social também se manifesta pela falta de recursos para o custeio das reuniões dos conselhos locais e distritais de saúde, cursos de capacitação de conselheiros, e outras atividades de fortalecimento do controle social e gestão participativa. O controle social é visto pela maioria dos gestores como uma obrigação ou um empecilho, e não como um importante aliado na organização dos serviços de saúde.  


 


É preciso dar prioridade aos programas de formação de Agentes Indígenas de Saúde, promovendo a sua regulamentação profissional, a criação de mecanismos diferenciados de contratação, e a garantia dos direitos trabalhistas previstos na Constituição. A necessidade de capacitação no nível básico deve incluir ainda os agentes indígenas de microscopia, endemias, saneamento, saúde bucal, e as parteiras tradicionais indígenas. É preciso também regulamentar e implantar programas específicos e diferenciados de formação de indígenas como técnicos de enfermagem, laboratório, endemias e higiene dental. Também é importante a implementação gradual de políticas de apoio à inserção e permanência de indígenas em cursos de nível superior, como Enfermagem, Medicina, Odontologia, Farmácia e Antropologia, entre outros.


 


            O fortalecimento da capacidade gestora do governo federal tanto nas coordenações dos distritos como no nível de coordenação central depende da formação de um quadro estável de recursos humanos adequado às necessidades estratégicas da gestão, o que só será possível por meio de um concurso público diferenciado e que assegure a participação indígena nos processos de seleção. O órgão gestor da saúde indígena precisa ter um perfil técnico independente das ingerências políticas, o que poderia ser alcançado através da reestruturação do Departamento de Saúde Indígena (DESAI/FUNASA) ou pela criação de uma Secretaria Especial de Saúde Indígena de caráter executivo ligada diretamente ao Ministério da Saúde, como tem sido proposto em diversas conferências.


 


            Um dos principais fundamentos do modelo de atenção à saúde proposto nas Conferências de Saúde Indígena é a autonomia administrativa e financeira dos distritos, que deve ser alcançada com a sua transformação em unidades gestoras do Sistema Único de Saúde (SUS), contando com orçamentos próprios administrados através dos Fundos Distritais de Saúde. Os chefes ou coordenadores dos distritos devem ser aprovados pelos conselhos distritais, e o controle social deve ser efetivo, com participação indígena legítima em todas as instâncias de decisão.


 


Após oito anos da aprovação da Lei Arouca que estabeleceu os marcos legais para o funcionamento do Subsistema de Saúde Indígena, os povos indígenas e seus aliados enfrentam ainda o enorme desafio de superar estes obstáculos e construir os mecanismos técnicos e políticos que assegurem as condições adequadas de assistência à saúde e a melhoria dos indicadores e da qualidade de vida em suas comunidades.


 


Paulo Daniel Moraes – Pastoral Indigenista da Diocese de Roraima e


Setor de Saúde do Conselho Indígena de Roraima (CIR).


Boa Vista, 24 de fevereiro de 2008.

Fonte: CIR
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