11/02/2008

“Não vai acontecer. Pode escrever.”


 


SEMI-ÁRIDO: Frei Luiz faz um balanço da greve de fome contra a transposição; gesto “despertou os movimentos sociais. Existe um ditado chinês que diz assim, ‘quando alguém aponta, os sábios olham para onde o dedo aponta e os idiotas olham para o dedo’. Já estava no 18º, 20º dia de jejum, e eles [governo] estavam altamente preocupados com a minha vida. Mas não olharam para onde o dedo apontava, e sim para o dedo, um bispo que estava morrendo.”


 


Quem é.


Frei Luiz Flávio Cappio nasceu em 1946, no dia de São Francisco de Assis, 4 de outubro. Paulista de Guaratinguetá, foi ordenado frade franciscano em 1971 e trabalhou por três anos na periferia de São Paulo (SP) pela Pastoral Operária. Há mais de três décadas, foi para o sertão nordestino apenas com a roupa do corpo. No dia de seu aniversário de 48 anos, iniciou uma peregrinação de 6 mil quilômetros da nascente até a foz do rio São Francisco, onde chegou exatamente no dia 4 de outubro de 1993. A experiência está retratada no livro “O Rio São Francisco – Uma Caminhada entre Vida e Morte”. Tornou-se bispo da Diocese de Barra (BA) em 1997, escolhido por não ter outro que se dispusesse a viver na região.


 


da Redação


Luís Brasilino e


Tatiana Merlino


 


No dia 20/01/2008, um mês após encerrar a greve de fome contra a transposição do rio São Francisco, o frei Luiz Flávio Cappio, bispo da Diocese de Barra (BA), fez um balanço dos 25 dias que passou sem se alimentar – “sem seqüela nenhuma, graças a Deus”. Nesta entrevista exclusiva ao Brasil de Fato, ele aborda os pontos positivos e negativos do gesto, revive os momentos que encerraram o jejum e fala das perspectivas para os movimentos sociais: “continuar lutando”.


Em fevereiro, ainda sem dia definido, as organizações voltam à Sobradinho (BA), local do protesto, para traçar as lutas para o restante do ano.


 


Brasil de Fato – Qual balanço o senhor faz da greve de fome, como foi o apoio dos movimentos sociais, o dia-a-dia…


Frei Luiz Flávio Cappio – Nós reassumimos o nosso jejum e oração porque quando terminamos a primeira manifestação (em outubro de 2005), um documento foi assinado por nós, representando a sociedade civil, e pelo presidente Lula, representando o governo, prevendo a abertura de um longo, profundo, transparente, sério e ético debate nacional sobre a transposição de águas do rio São Francisco. Durante esses dois anos, tentamos de todas as formas fazer com que esse acordo fosse levado adiante. Mas, infelizmente, a resposta do governo foi o início das obras utilizando o Exército. Diante dessa insensibilidade, assumimos nosso novo período de jejum; desta vez em Sobradinho.


 


Como foi a solidariedade?


Desde o momento em que chegamos a Sobradinho, vimos a imensa solidariedade dos movimentos sociais e, principalmente, da população ribeirinha. Causou a todos uma surpresa ver a adesão, a participação, a comunhão, o espírito fraterno da população de Sobradinho e também de Juazeiro (BA), de Petrolina (PE), do entorno da Bahia, dos Estados próximos, do Brasil e de fora. Foi muito lindo, vocês precisavam ver: o povo, na sua simplicidade, os movimentos sociais, nas diversas organizações. Depois o  pessoal das universidades, os indígenas, os quilombolas, os partidos políticos, as várias igrejas… Deu consistência e visibilidade ao gesto. Não fosse isso, nossa manifestação seria isolada, sem nenhuma representatividade. E foi justamente essa comunhão solidária e toda essa manifestação bonita de espírito de luta que fez com que o movimento e o gesto crescessem, apesar de todo o bloqueio da mídia.


 


O senhor foi chamado de autoritário e fundamentalista. Como enxerga essas críticas?


Vejo com naturalidade, porque quando você fustiga o leão com vara curta, ele mostra os dentes e as unhas. Acredito que essas críticas demonstram, primeiro, que estávamos mexendo com uma questão que dizia respeito à vida de muita gente e feria muitos interesses. E, segundo, que pessoas que tiveram esse tipo de comportamento, pronunciamento, é porque não conhecem nossa luta, nem a luta do rio, nem a luta do povo. Até perguntaria: com que direito nos chamariam de autoritário quando, durante dois anos, nós mendigamos, suplicamos, lutamos por todos os meios para que acontecesse aquilo que foi acordado. Estávamos apenas buscando algo que era o direito, que foi acordado, assinado. Então, eu diria: será que somos nós ou são eles os autoritários? Porque a resposta deles foi uma negativa e o início das obras utilizando o Exército. Não dou muito valor a esses tipos de críticas que são infundadas e não estão de acordo com a verdade dos fatos.


 


Nesse ponto da abertura do diálogo, a resposta do ministro Geddel Vieira Lima (Integração Nacional) era sempre a de que, logo que assumiu o cargo (março de 2007), procurou entrar em contato com o senhor…


Ele telefonou para mim dizendo para eu ir ao gabinete dele conversar, mas falei que não era eu e sim o coletivo. Estamos fazendo parte de uma luta que envolve muitos segmentos sociais. Então, disse que iria com a equipe de trabalho para conversarmos, por termos muitas dúvidas a dirimir, muitos pontos a questionar, mas dentro de um coletivo que esteja realmente a altura desse diálogo. Não uma conversa de gabinete regada a cafezinho e água gelada. É um workshop, uma sessão de trabalho, aí eu me disponho a dialogar. Não da forma que ele propôs, só nós dois.


 


Como responder à crítica do presidente Lula que, no início da greve de fome, disse que, se fosse para escolher entre o senhor e 12 milhões de nordestinos, ficaria com os pobres?


Ele incorre em duas premissas falsas. Em primeiro lugar, não são 12 milhões que serão beneficiados. Quem conhece o projeto sabe disso. Trata-se de uma propaganda falsa. A obra não é para a população, para democratizar a água, mas sim canalizar os recursos para um pequeno grupo empresarial nacional e transnacional interessado na produção de camarão em cativeiro, de frutas nobres para exportação e na construção de uma infra-estrutura hídrica para um parque industrial, o de Pecem, ao lado de Fortaleza. É esse o objetivo. Se eles estivessem realmente preocupados com a população, olhariam para os pobres onde o rio naturalmente passa. Moro na beira do São Francisco há 34 anos e, se caminhar a 500 metros da margem, vejo o povo passando sede. O maior complexo de açudes do mundo está no Nordeste brasileiro. Água em açudes em quantidade suficiente nós temos, o que precisamos é fazer com que ela chegue ao seu destino, ao povo das comunidades mais afastadas.


 


E qual é a segunda premissa falsa?


O governo já tem as alternativas. O projeto de transposição é economicamente absurdo, pois o governo tem, por meio da ANA (Agência Nacional de Águas), todo um complexo de alternativas mais baratas, ecologicamente sustentáveis e socialmente justas. E ainda existem as soluções da ASA para as zonas rurais. Se realmente estivesse preocupado com os pobres, origem da qual ele (Lula) faz parte, fez parte, olharia para essas alternativas.


 


Como foi aquele princípio de negociação com o assessor da presidência Gilberto Carvalho?


Interessante. Existe um ditado chinês que diz assim, “quando alguém aponta, os sábios olham para onde o dedo aponta e os idiotas olham para o dedo”. O que aconteceu naquele momento. Já estava no 18º, 20º dia de jejum, e eles estavam altamente preocupados com a minha vida. Mas não olharam para onde o dedo apontava, e sim para o dedo, um bispo que estava morrendo. “Vamos ver um jeito de criar uma situação para salvar as aparências e nos dirimir das responsabilidades de um possível cadáver episcopal”. Foi uma atitude emergencial, preocupada não com a causa da luta, mas com a vida do bispo que estava prestes a morrer e da imagem que isso causaria ao governo. Tanto isso é verdade que, desde o momento em que o STF (Supremo Tribunal Federal) votou a favor do governo, eles fecharam todas as negociações imediatamente. E no momento em que eu caio lá, em que cheguei ao meu limite e sou levado para a UTI, foi tudo encerrado. O problema não era o rio, o povo, era o bispo.


 


Quando o senhor iniciou a greve de fome, qual era sua expectativa em relação à abertura de diálogo com o governo?


Nosso desejo sempre foi o diálogo. Nunca negamos o diálogo, mas queríamos que fosse transparente, verdadeiro e aberto. E o que aconteceu? Não podemos sentar e fingir que estamos conversando quando, do outro lado, o Exército está trabalhando nas obras. Vamos sentar e nos respeitar: pára aquela obra, vamos dar uma trégua, essas foram as condições. Quando a razão se extingue, a loucura é o caminho, que foi ameaçar a própria vida. O que mais eu tenho a dar quando a força dos meus argumentos não valem mais. Quem sabe minha vida possa valer alguma coisa? Então, foi essa a luta para fazer com que o diálogo acontecesse.


 


O senhor pode falar um pouco do momento em que a greve de fome foi encerrada, quando na seqüência da decisão da Justiça, o senhor passou mal… Depois, o que aconteceu, e como foi tomada a decisão de encerrar?


Eu não cheguei propriamente a essa decisão. Naquele momento, estava totalmente fora de mim, cheguei ao meu limite. De acordo com a convenção internacional de Malta, nesses momentos, os responsáveis diretos ou a autoridade competente devem tomar a decisão. No caso, o responsável era o meu médico, acompanhado pela minha família. Cheguei ao meu limite, não estava mais senhor das minhas ações. Eu, nos momentos de lucidez, tinha quase certeza que ia embora e estava muito em paz comigo. Tive uma experiência muito bonita, daquilo que São Paulo diz: “Viver é graça e morrer é lucro”. Eu estava tão desprendido de tudo, numa comunhão tão grande com Deus, que se eu tivesse partido naquele momento, partiria feliz. Estava bem, mas não queria morrer. Queria viver. Mas não tinha forças para me expressar, estava semi-consciente. Lembro do momento em que recebi a extrema-unção. Eu fiquei feliz de saber que fui levado para a UTI pelo médico, e não pela autoridade. E, quando voltei à consciência, ainda na UTI, pensei, o povo merece respeito e só vou parar o jejum depois que eu me comunicar com ele. Escrevi aquela carta final e ainda passei em jejum mais um dia, o 25º.


 


Olhando para trás, quais os pontos positivos e negativos desse período?


O grande ponto positivo de tudo isso foi que, de repente, os movimentos sociais e a sociedade acordaram. Só por isso valeu o gesto, porque o governo Lula representou muita esperança dos movimentos sociais e, ao mesmo tempo, na mesma intensidade que gerou esperança, gerou decepção. E o pessoal estava todo anestesiado, pensando “quem somos, o que queremos” e, de repente, um gesto assim joga todo mundo para cima. É a redescoberta da força dos movimentos sociais, da sua identidade, do para que viemos, quais são nossos objetivos, a importância de continuarmos lutando. Só por isso valeu. O ponto negativo é a grande insensibilidade do governo federal com o clamor do povo. Um governo que foi eleito pelas bases sociais desse país. Por causa deles que esse governo está onde está e, de repente ele dá as costas para os movimentos sociais e cospe no prato em que comeu.


 


Como o senhor falou, o gesto despertou os movimentos sociais. Por um outro lado, isso não mostra uma certa fraqueza dessas organizações? (Em março, eles haviam montado um acampamento em Brasília – DF e em junho ocuparam o canteiro de obras da transposição em Cabrobó).


Com toda certeza. O pessoal estava desarticulado. Havia um grande desânimo, e isso ajudou a alavancar os movimentos sociais.


 


E as perspectivas?


Continuar lutando. As lutas continuam e aí não é um jogo, quem ganha e quem perde, não estamos numa partida de futebol. A vida é muito mais complexa e as grandes conquistas, mais exigentes.


 


O senhor acha que valeu a pena?


Sempre vale, toda luta vale a pena. Muitas coisas bonitas, só aquele clima que criou naqueles dias…


 


A transposição ainda pode ser barrada?


Não vai acontecer. Pode escrever.


 

Fonte: Brasil de Fato
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