Mato Grosso do Sul, estado campeão de desrespeito aos direitos indígenas
“A Justiça Federal do Mato Grosso do Sul determinou o confisco de 85 fazendas de pessoas acusadas de lavar dinheiro proveniente de atividades como o tráfico de drogas e a corrupção. Juntas, as áreas somam 368 mil hectares – o equivalente ao território de Rio Brilhante, um dos principais municípios produtores de grãos do sul do MS. No ano passado todas as desapropriações feitas pelo programa de reforma agrária do governo federal somaram 204 mil hectares”. (campograndenews, 8/01/08).
“O Conselho Missionário Indigenista – Cimi (sic), um braço da Igreja Católica que deveria funcionar como suporte para as questões indígenas do Brasil, mas que nos últimos anos acabou perdendo o foco e se especializou em desvirtuar a verdade em nome de uma causa que deveria ser nobre, acaba de colocar o Mato Grosso do Sul em situação vexatória perante o resto do país”.
(Jornal O Progesso, de Dourados, 9/01/08).
Mato Grosso do Sul acaba de receber mais um título nacional. Tem o município mais violento do país, Coronel Sapucaia, na fronteira com o Paraguai, a quase 400 km de Campo Grande. Há instantes, na principal TV local, o delegado da cidade tentou justificar o título dizendo que existem indícios de que alguns assassinatos poderiam ter sido cometidos do lado paraguaio, na cidade limítrofe de Capitan Bado. Para o prefeito da cidade, Ney Kuasne, o mapa da violência “é coisa de quem, de alguma forma, quer prejudicar a cidade”. (Correio do Estado, 31/01/08).
Manchetes estampadas nos jornais e charges que retratam a situação explicam que “em alguns casos, os crimes assustam pela crueldade e frieza dos executores, normalmente pistoleiros profissionais contratados por pessoas de maior poder aquisitivo”. (Correio do Estado, 30/01/08).
Os títulos e suas causas
Justificativas à parte, esse título, soma-se a outros já revelados neste janeiro. Um deles é de estado onde se praticou o maior índice de violência contra os povos indígenas com 53 assassinatos registrados. Em todo o país o número chegou a 81. O número alarmante fica mais fácil de entender quando observamos outro título conferido ao MS: o de menor índice de terras indígenas por pessoa (com exceção das terras dadas por D. Pedro II aos Kadiwéu, em grande parte invadidas). Aproximadamente 65 mil índios vivem em menos de 60 mil hectares de terra. Aqui também se registrou a maior violência sofrida por uma comunidade em sua luta pelo direito à terra, Kurusu Ambá, que fica exatamente no município mais violento do país.
Poderíamos enumerar na questão indígena outros indicadores que mostram a gravidade da situação. Quase todos suicídios de indígenas registrados durante o ano foram no Mato Grosso do Sul (onde acontecerem mais de 40), mais especificamente entre os Kaiowá Guarani. A grande maioria das mortes por atropelamento também foram entre esse povo. Só em Nhanderu Marangatu, onde a comunidade esteve acampada à beira da estrada por mais de seis meses, após a pavimentação da via dois indígenas morreram atropelados. Isso sem que as autoridades responsáveis tivessem colocado qualquer sinalização, placa ou quebra mola no local. A última morte foi de Tomás Nunes, no dia 18 de dezembro. O rapaz ficou caído no asfalto e o carro que o atropelou sequer parou. “Nos matam como se mata um cachorro!”, desabafou uma liderança.
Certamente o estado também é campeão disparado em indígenas presos. Conforme levantamentos preliminares, é possível que o número chegue perto de duzentos. E quantos não-indígenas estão presos por matarem as lideranças desse povo? Nenhum. Além disso, poderíamos juntar os títulos de estado em que as famílias indígenas mais dependem de cestas básicas. O governo estadual, que chegou a distribuir 11 mil cestas, voltou nesse ano eleitoral a fazer a distribuição. O governo federal, através do programa de Segurança Alimentar, Funasa e Funai faz a distribuição de milhares de cestas a famílias indígenas.
“O juiz Odilon de Oliveira, da vara especializada em lavagem de dinheiro, afirma que o agronegócio é um dos destinos preferenciais das remessas polpudas do crime organizado. Segundo ele, a compra de fazendas é uma das maneiras mais fáceis de lavar os lucros com atividades ilegais. A partir delas, os criminosos que movimentam grandes somas de capital conseguem esconder a origem do dinheiro sujo em operações fictícias de venda de boi e grãos – estratagema que a Polícia Federal chama de vaca-papel e soja-papel” (campograndenews, 8/01/08).
Kurusu Ambá – comunidade indígena que sofreu mais violências em 2007
Ali uma comunidade de aproximadamente duzentas pessoas, teve duas de suas lideranças assassinadas – Julite, em 9/01/07, e Ortiz Lopes, em 8/07/07; seis feridos pelas milícias armadas e jagunços e quatro lideranças presas, em 8/01/07.
As lideranças presas foram julgadas pela justiça local em tempo recorde e condenados a 17 anos de prisão, cada um. Não bastasse, decretaram prisão de mais uma liderança. Mentiras, falsas acusações, julgamentos a partir de interesses políticos e econômicos, armações, arbitrariedades, pressões, tudo isso contra uma comunidade jogada à beira da estrada, traumatizada pela violência, vivendo em situação de miséria e dependência.
Apesar de estarem submetidos a uma verdadeira situação de genocídio, os Kaiowá Guarani encontram razões e forças para sua luta pela terra e pela vida. “Vamos vencer!” afirmou uma das lideranças.
Fui com integrantes de entidades e movimentos sociais levar solidariedade à comunidade, neste final de janeiro. Vimos, ouvimos e sentimos de perto o sofrimento, a resistência e a esperança de uma comunidade indígena profundamente golpeada, mas que não perde a dignidade e a vontade de continuar a luta pelo seu sagrado chão. Fomos dizer a eles em alto e bom tom : “Vocês não estão sós! Muita gente no Mato Grosso do Sul, no Brasil e no mundo está do lado de vocês nessa luta por direitos”.
Algumas dezenas de barracos plantados à beira da estrada, no município campeão de violências do país, abrigam a esperança de heróicos lutadores.
Os novos títulos esperados
Os Kaiowá Guarani estão dispostos a começar reverter essas tristes estatísticas referentes à violência com seu povo. E uma das expectativas maiores é a de que as suas terras comecem a ser identificadas e demarcadas durante esse ano. Já existem um compromisso assumido pelo governo federal neste sentido e a Comissão de Direitos Kaiowá Guarani, através das Aty Guasu (Assembléias) e outras mobilizações estará acompanhando esse processo. Quem sabe esse será o ano em que os povos indígenas poderão ter um outro título que não campeão de violências, mas de terras identificadas e demarcadas.
Quiçá neste ano poderemos comemorar não só uma substancial diminuição das violências, mas uma efetiva caminhada rumo à reconstrução da autonomia dos Kaiowá Guarani, com recuperação da sua economia, principalmente na produção de alimentos. Para essa tarefa toda a sociedade, governos, aliados em todo o país e mundo estamos sendo convocados. O ano da virada!
Egon D. Heck
Cimi MS
Campo Grande, 1º de fevereiro de 2008