02/10/2007

Transposição do rio São Francisco e migração – artigo de Arivaldo J. Sezyshta

 


Garantir água para 12 milhões de brasileiros que sobrevivem no semi-árido é o que se propõe o governo com as obras da transposição do Rio São Francisco. Por que somos contra tão belo propósito? Porque, por um conjunto de fatores, somos levados a não acreditar nessa cara promessa. Aqui no Nordeste não falta água: a carência é de políticas públicas efetivas de distribuição e aproveitamento da água disponível nos próprios estados, além da necessidade premente de intensificação das iniciativas já existentes na região, que buscam um desenvolvimento sustentável, baseado na agricultura familiar, especializada na produção de alimento.


 


Não é isso que defende o governo e o agronegócio: buscam um desenvolvimento a qualquer custo, visando, não a produção de comida, mas o aumento do lucro para poucas famílias, representantes de grandes grupos econômicos.


 


São duas lógicas distintas, dois modelos antagônicos e excludentes. Interessa-nos, enquanto parte constituinte do Movimento Popular, que luta por um outro mundo possível, na perspectiva do desenvolvimento sustentável, expor algumas razões porque dizemos não à transposição:


 



  • A água da transposição destina-se, sobretudo, para o agro e o hidro negócios: é água que vai fortalecer um modelo de desenvolvimento que nós não acreditamos e que, mais que isso, combatemos diuturnamente;

  • Propaganda criminosa: essa água não matará a sede dos 12 milhões de nordestinos que vivem no semi-árido, não eliminará o caminhão pipa e, por conseqüência, fortalecerá ainda mais a famigerada indústria da seca;

  • Impacto social: a construção de uma obra de tão grande porte[1] produzirá um novo êxodo nordestino, dessa vez dentro da própria região, com levas de homens buscando e não encontrando trabalho nos canteiros de obra; além disso, comunidades inteiras serão removidas pela construção de barragens, para controlar a vazão do Velho Chico, a exemplo do que pode ocorrer na bacia do Rio das Velhas, em municípios como Presidente Juscelino, em Minas Gerais;

  • Impacto ambiental: você doaria sangue se estivesse doente? Já se sabe que o Rio São Francisco está doente: retirar parte de suas águas é intensificar sua agonia. A revitalização cobrada pela sociedade não é a mesma da qual fala o governo, para quem a revitalização tornou-se “moeda de troca”: uma espécie de compensação para que o projeto de transposição aconteça. Há anos os pescadores e ribeirinhos denunciam o desaparecimento de muitas espécies ou que têm encontrado peixes de águas salgadas a 300 quilômetros do mar, o que significa que o rio vem perdendo forças (aqui de desfaz outra falácia daqueles que dizem que as águas se perdem no mar: isso não é perda, é processo vital e necessário na cadeia da vida, da qual somos parte integrante);

  • Impacto político: o Rio que era conhecido como da Integração Nacional, pela polêmica, está produzindo um país dividido, provocando conflitos entre estados. O governo está desrespeitando a decisão do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco, que se posicionou contra a obra;

  • Impacto econômico: primeiro estimada em 4 bilhões de reais, agora a obra est’a orçada em 20 bilhões. Na lógica do “negócio” trata-se de um investimento, que deve gerar lucro. Certamente essa água, se chegar onde se promete, chegará com um alto custo (prevista a 14 centavos o metro cúbico) e, uma vez mais, só os ricos e as grandes empresas terão acesso, como já ocorre nas plantações irrigadas que já utilizam água do Velho Chico nas proximidades de Juazeiro e Petrolina;

Essas razões poderiam ser ampliadas. Mas, o fundamental é perceber que há alternativas mais simples e mais baratas, capazes de, realmente, levar água para a população dispersa do semi-árido, a exemplo do que tem divulgado a própria Agência Nacional das Águas, em seu “Atlas do Nordeste” ou do que tem feito a Articulação do Semi-árido Brasileiro, construindo vida, liberdade e cidadania através de cisternas, barragens subterrâneas, açudes, poços artesianos, tanques de pedra, barreiros-trincheira e outras técnicas que valorizam a capacidade inventiva da população. Essa população está sendo usada para convencer a opinião pública de que a transposição é necessária. O que dizemos é que, além de desnecessária, ela é tecnicamente inviável e, possivelmente, entrará para o rol das grandes obras inacabadas, que, mal-feitas e superfaturadas, permitem com que a elite nordestina perpetue-se no poder e aumente sua fortuna.


 


Conclusão


Ser contra a transposição das águas do Rio São Francisco, não significa, sob nenhum aspecto, ser contra aqueles que sofrem com a falta de água. Ao contrário: as entidades que se colocam contra a transposição, há anos vêm ajudando as comunidades na convivência com o semi-árido e condenam, e denunciam essa grande mentira, na tentativa de impedir que, uma vez mais, se faça uso político do sofrimento do povo, vendendo à opinião  pública, através de chantagem emocional, uma criminosa ilusão, que não solucionará o problema. Ao invés de fazer uma falsa promessa de “levar aos nordestinos uma caneca de água”, o governo deveria aplicar esses bilhões de reais em políticas públicas direcionadas à melhoria da qualidade de vida do sertanejo.


 


Há muito tempo o Movimento Popular vem denunciando que o que expulsa o nordestino de sua região, o que produz o conhecido retirante, para além da seca, é a cerca. Ou seja: mais do que a falta de água, é a concentração da terra e da riqueza nas mãos de poucos que causa a migração forçada. Dessa forma, como ser favorável a uma obra onde o próprio governo admite que a água não chegará à população difusa[2]? Como ser a favor de algo que faz do povo, ao invés de protagonista, apenas figurante? Como concordar com o visível aprofundamento da desigualdade?


 


Nesse sentido, cabe a pergunta fundamental: quem, de fato, serão os beneficiados? E a resposta, inequívoca: os mais abastados, outra vez. Por isso, a única certeza: a obra não vai solucionar o problema social da seca. É o interminável calvário, a infindável via-crúcis dos pobres e migrantes. É a perpetuação da indústria da seca. E isso, quem tem sede, de água e de justiça, não pode apoiar.


Arivaldo J. Sezyshta


SPM – João Pessoa – PB









[1] A previsão é de construir 720 km de canais de concreto, medindo 25 mt de largura por 5 mt de profundidade, mais aquedutos, túneis, estações de bombeamento e reservatórios (de cada lado do canal haverá uma área de recuo de 100 mt, onde não será permitido nenhum tipo de cultivo).



[2] 70% da água será destinada à irrigação (leia-se agro e hidro negócio), 26% para uso urbano-industrial e apenas 4% para consumo humano do “sedento nordestino”, em nome de quem tenta-se justificar a execução da obra.

Fonte: Cimi
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