10/09/2007

Missão, o paradigma-síntese de Aparecida


Missão, o paradigma-síntese de Aparecida


Paulo Suess


Do Vaticano II emergiu a visão de uma Igreja que é por sua natureza missionária. A ênfase teológico-pastoral do tempo pós-vaticano está no ser missionário de todos os batizados e não na territorialidade das missões, que deveriam ser administrados. Muitas decisões do Concílio não deram o resultado esperado, porque não foram acompanhadas pelas reformas estruturais necessárias que poderiam responder às mudanças profundas da nossa civilização. Assistimos um processo de redução dos católicos em números absolutos [100a] exatamente num momento em que se redescobriu a natureza missionária da Igreja [347]. Como abrir os olhos dos batizados diante da realidade do nosso continente, “marcada por grandes câmbios” [33], e despertar a sua responsabilidade [14, 33]? Essa pergunta, porém, precisa ser completada por uma outra pergunta sobre a estrutura ministerial da Igreja, se não queremos responsabilizar a “fadiga” dos batizados, um suposto “descuido” da Igreja local e a fatalidade de fatores civilizatórios por essa redução estatística da Igreja Católica em nosso continente.


Aparecida deu continuidade ao Vaticano II e ao magistério latino-americano. Ao mesmo tempo, iniciou um novo capítulo na sua contextualização [9]. Se Rio de Janeiro representava um primeiro despertar da cristandade para a organização própria da Igreja da América Latina, que levou à fundação do Celam, Medellín, na base do Concílio, significou o início da descolonização de muitas práticas sociais amalgamadas ao labor missionário. Em Puebla, sentiu-se forte resistência a esse movimento de emancipação da Igreja latino-americana de suas amarras coloniais. Em Santo Domingo, a ala hegemônica entre os delegados da Conferência endureceu seu discurso contra pedidos de perdão do próprio Papa João Paulo II e contra a memória simbólica ou discursiva da “conquista espiritual” do Continente. A rejeição ao método ver-julgar-agir era uma conseqüência dessa resistência exógena à realidade histórica. Mesmo assim, o paradigma da inculturação, que insere os evangelizadores nessa realidade, ganhou destaque como imperativo do seguimento de Jesus (SD 13).


Sedimentados na pastoral pós-conciliar a metodologia e os conteúdos das conferências anteriores, os delegados da V Conferência não precisavam inventar um novo paradigma. Assumiram a missão como paradigma-síntese e sempre inacabado, incorporando nele as bandeiras da descolonização e inculturação, libertação e opção pelos pobres. Pelo tema da V Conferência – “Discípulos e missionários de Jesus Cristo, para que nele nossos povos tenham vida” – já estava previsto que “discipulado” e “missão” seriam palavras-chave no Documento de Aparecida (DA).[1] O termo “missão” é invocado mais de 100 vezes nas diferentes dimensões ou tarefas específicas. Essa missão representa um processo sem fim e o sonho de uma “religiosidade virtuosa” (Max Weber) que se traduz em aproximação samaritana e em presença profética nas comunidades, em suas lutas por justiça e reconhecimento, e na construção de um mundo para todos. Nesse sonho, sem as devidas mediações históricas, está a beleza e a fraqueza do DA.


 


1. Ver e responder à realidade


A criação dos seres humanos à semelhança de Deus e a encarnação do amor redentor de Jesus até a cruz fundamentam nosso compromisso com a realidade do mundo e com o sofrimento do outro [491]. A missão faz ver e responder à realidade. A pastoral missionária da Igreja se confronta com desafios que emergem de novos contextos históricos e socioculturais [367, 538]. Para poder responder a essas transformações, a Igreja precisa transformar os cristãos culturais e tradicionais em discípulos missionários: “Todo discípulo é missionário” [144] e, por isso, “a missão é inseparável do discipulado” [278e].


A realidade interpela aos cristãos e seus pastores; cobra coerência com as promessas e os imperativos do Evangelho, “compromisso” [491] e relevância diante daqueles que caíram nas mãos dos ladrões [135]). Sobretudo no segundo capítulo da primeira parte, o DA apresenta um “olhar dos discípulos missionários sobre a realidade”, nos âmbitos sociocultural, econômico, sociopolítico, étnico, ecológico [33-97] e eclesial diante de desafios novos e herdados [98-100]. A missão dos discípulos missionários nessa realidade é sempre implícita ou explicitamente uma missão transformadora e evangelizadora, integral, específica, contextual e universal [cf. 214, 287, 341, 450, 486i, 532, 545, 550]. Essa missão nos conduz “ao coração do mundo”, onde os discípulos missionários abraçam “a realidade urgente dos grandes problemas econômicos, sociais e políticos de América Latina” [148]. A missão, lembram os delegados de Aparecida o DI do Papa, não é “uma fuga da realidade até um mundo exclusivamente espiritual” [148]. A sabedoria samaritana e a denúncia profética acompanham o cristianismo desde os primeiros mártires, as primeiras comunidades descritas nos Atos dos Apóstolos e as definições cristológicas de Calcedônia (451 a.C.): Deus está em Jesus Cristo inseparavelmente (“indivise”) ligado à humanidade sofredora, sem se confundir (“inconfuse”) com ela. Se diluirmos Jesus de Nazaré na miséria humana ou se o separarmos dela significaria em ambos os casos não a valorização da humanidade, mas a sua traição. Espiritualidade e solidariedade dos cristãos estão sempre numa relação de proximidade não identificadora e de solidariedade até as últimas conseqüências.


A missão autêntica “unifica a preocupação pela dimensão transcendente do ser humano e por todas as suas necessidades concretas” [176]. Só essa missão abrangente pode cumprir a tarefa “de fazer novas todas as coisas” [131]. Ela está “a serviço de todos os homens” e se manifesta como vida nova “em todas as dimensões da existência pessoal e social” [13; cf. 7.1.3 e 7.1.4.] e “abraça com o amor de Deus a todos e especialmente aos pobres e aos que sofrem. Por isso, não pode separar da solidariedade com os necessitados e da sua promoção humana integral” (550, cf. 545). A questão social está estreitamente vinculada à questão da ortodoxia. Pecado significa indiferença diante da exploração dos pobres. Neles, a Igreja reconhece “a imagem de seu Fundador pobre e sofredor” (Lúmen gentium 8c). No cristianismo, essa pobreza do próprio Deus tem muitos nomes: encarnação, cruz e eucaristia. “A pobreza – disse certa vez o atual papa – é a verdadeira aparição divina da verdade,”[2] a pobreza reconhecida em “novos rostos de pobres” e “novos excluídos” [402, 207].


Nessa caminhada, Cristo “acompanha o Povo de Deus na missão de inculturar o Evangelho na história” (491). Dessa articulação entre a fé em Cristo e sua encarnação na história, o Papa, em seu Discurso Inaugural (DI) da Conferência, já tinha apontado algumas conclusões importantes, inclusive sobre a articulação cristológica da opção pelos pobres. Repetidas vezes o DA cita essa parte do DI [148, 392, 405, 505]. A articulação cristológica e, em sua conseqüência, trinitária da opção pelos pobres faz dessa opção, e de seus desdobramentos concretos, imperativos pastorais irrevogáveis.


 


2. Itinerário trinitário


Jesus nos revelou o mistério da comunhão trinitária de Deus como origem da missão. Essa comunhão trinitária [109, 153, 157, 523s] é sinônimo de amor. Jesus é manifestação e testemunha deste amor intratrinitário [348]. Falar de Deus significa falar de amor e missão. Diante a Aliança rompida pelo pecado Deus envia o Filho no Espírito Santo em missão para inaugurar uma Nova Aliança, anunciando um Novo Mandamento como Boa-Nova da recriação do mundo e da humanidade [241]. Dessa “missão de Deus” (missio Dei) todos os cristãos participam, desde seu batismo [153], encontrando-se “plenamente no serviço para com o outro” [240; cf. 153, 347].


O Deus trinitário, que esta na origem da criação, está também presente na recriação do mundo, na encarnação. Respondendo aos movimentos pentecostais, Aparecida dá um certo peso à atuação do Espírito Santo. Maria concebeu seu filho Jesus, Palavra de Deus, pela força do Espírito Santo. Esse mesmo Espírito está no início da missão de Jesus de Nazaré. Nele, o filho do carpinteiro foi confirmado “Filho bem-amado”, por ocasião de seu batismo no Jordão (Lc 3,22). Por ele foi conduzido “ao deserto para preparar-se para sua missão. Nele foi ungido Messias e fez o discernimento decisivo de sua vida sobre a finalidade e os colaboradores de sua missão: “Ele me ungiu para evangelizar os pobres” (Lc 4,18).


A partir de Pentecostes, a Igreja começa “a falar em outras línguas” (At 2,4). O Espírito “forja missionários” e indica os lugares da evangelização [150]. Pentecostes continua na missão dos discípulos missionários. O tempo pós-pascal é tempo do Espírito Santo, protagonista da missão (cf. RM 21b; [267]). O Espírto Santo está no início de todas as caminhadas que geram vida. Ele é dom divino e doador dos dons (dator múnerum).[3] O Espírito Santo é Deus no gesto do dom [cf. 162].[4] Ele é o “Espírito da Verdade” (Jo 14,17) que articula as diferenças culturais e étnicas numa unidade maior, que não afeta a verdade ou a identidade. A verdade acontece na geração da vida: na prática do novo mandamento (Jo 13,34) e da justiça maior em favor dos pobres. Na raiz da pobreza-miséria está a ação do “pai da mentira”, que perturba a ordem social. O Espírito Santo é o Paráclito, o “consolador”, o “advogado” dos pobres. A opção missionária pelos pobres está enraizada na cristologia e na pneumatologia.


 


3. Comunhão eclesial


Segundo a eclesiologia do Vaticano II, presente no DA, a dignidade do Povo de Deus precede à diferenciação de dignidades hierárquicas (LG 1): “Todos os batizados e batizadas da América Latina e do Caribe ´através do sacerdócio comum do Povo de Deus´(DI 5), somos chamados a viver e a transmitir a comunhão com a Trindade” [157]. Falar da Igreja significa falar dessa missão do Povo de Deus. A estrutura dessa Igreja-missão é trinitária porque ela é “Povo de Deus”, “Corpo do Senhor” e “Templo do Espírito Santo” (LG 17). Por ser “Templo do Espírito Santo” é também “casa dos pobres”; ela “convoca e congrega todos em seu mistério de comunhão, sem discriminações nem exclusões por motivos de sexo, raça, condição social e pertença nacional” [524, cf. 8].


A opção missionária pelos pobres é uma opção comunitária da Igreja Povo de Deus [154]: “No povo de Deus `a comunhão e a missão estão profundamente unidas entre si (…). A comunhão é missionária e a missão é para a comunhão`” (ChL 32; [163]). O discipulado, o envio, e a missão “sempre supõem a pertença a uma comunidade” [164, cf. 169]. Com essa e nessa comunidade acreditamos, celebramos e assumimos os compromissos pastorais de colaborar na transformação do mundo. E esse compromisso é urgente.


Muitas vezes, o DA aponta para essa urgência. Tudo no campo pastoral [368, 389, 437j, 456, 518, 548] e social [148, 384, 550] parece urgente: Urgente é um projeto missionário nas dioceses [169] e o anúncio nas comunidades [289]; urgente é o diálogo entre a fé, a razão e as ciências, sobretudo com a bioética [466]. Urgente é a formação específica do laicato [283]; urgente é a “promoção vocacional [315]; urgente são os “grandes problemas econômicos, sociais e políticos” [148]. “Urge criar estruturas que consolidem uma ordem social, econômica e política” [384]. Urgente é o cancelamento da dívida externa [406c], urgente é a solidariedade entre as Igrejas e comunidades [545]. E finalmente é urgente “educar para a paz” [541; cf. 394].


O anúncio do Reino é uma questão urgente, de vida e morte. “A caridade de Cristo nos compele” (2Cor 5,14) a destruir as estrutura da morte, interromper a lógica dos sistemas e questionar a lentidão das burocracias. Mas quem deveria fazer tudo isso? A descoberta da natureza missionária da Igreja Povo de Deus aumentou as responsabilidades, mas não o número dos agentes de pastoral nem o perfil da prática cristã.


 


4. A serviço do Reino


A missão, com seus dois movimentos, a diástole do envio à periferia do mundo e a sístole que convoca, a partir dessa periferia, para a libertação do centro, é o coração da Igreja. Sob a senha do Reino, propõe um mundo sem periferia e sem centro. O Reino de Deus é o kerigma central do DA.[5] Inúmeras vezes, o texto convida os discípulos missionários a serem o que são, desde seu batismo[6]: missionários de Jesus Cristo que vivem a sua vocação cristã não apenas através de múltiplas tarefas, mas “em estado de missão” [213] à serviço do Reino de Deus. Converter-se ao Reino é tarefa cotidiana dessa Igreja Povo de Deus. Ser discípulo missionário significa anunciar, como Jesus fez, o Evangelho do Reino de vida como “boa nova do Reino aos pobres” [30/29][7]. A missão está a serviço do Reino [33, 190, 223], e a missão está, num sentido amplo, a serviço dos pobres [516].


Nas causas do Reino se sobrepõem os verbos “anunciar”, “construir”, “denunciar”, “defender”, “viver”, “partilhar”, “presenciar” e “esperar”. O DA enfatiza os valores do Reino, pede o testemunho desses “valores alternativos” [224], sem nomeá-los explicitamente [212, 374, 518j]. Certamente podem ser levantados a partir das parábolas e da resposta de Jesus ao jovem rico e ao doutor da Lei, que perguntaram a ele: “O que devo fazer para herdar a vida eterna?” (Lc 10,25; Mt 19,16). Os valores do Reino são algo mais subjacente e estrutural, enquanto os sinais do Reino são visíveis e pontuais: “Sinais evidentes da presença do Reino são: a vivência pessoal e comunitária das bem-aventuranças, a evangelização dos pobres, o conhecimento e cumprimento da vontade do Pai, o martírio pela fé, o acesso de todos aos bens da criação, o perdão mútuo (…)” [383, tb. 374].


Nas reflexões da Terceira Parte do DA sobre o Reino de vida e justiça, reencontramos a realidade da Primeira Parte, agora com o intuito de transformá-la. Diante da utopia do Reino, o DA aponta para as múltiplas transformações necessárias. O Reino está em nosso meio [143], mas está, ao mesmo tempo, sempre em construção [278, 280, 282, 548], transformando a realidade das nossas sociedades e da nossa Igreja [382, 516, 358]. Quase tudo está em transformação e deve ser transformado: a realidade [210], o mundo [290], a sociedade [283, 330, 336] e estruturas eclesiais e pastorais [365]. O tema da transformação que acontece e da transformação que o Evangelho produz está desde Medellín[8] na pauta da Igreja latino-americana [cf. 511] e da pastoral. Aparecida retoma a Evangelii nuntiandi quando afirma que a missão procura “modificar pela força do Evangelho os critérios de julgar, os valores que contam, os centros de interesse (…), os modelos de vida” (EN 19; [331]). O anúncio do Reino é historicamente relevante para além da história. O projeto de Deus, que nos foi comunicado por Jesus Cristo, tem sempre como horizonte a transformação última, que permitirá ver Deus face a face (cf. Mt 2,2; Ap 22,4).


 


5. Missão paroquial, continental e ad gentes


Depois dessas considerações decorrentes da natureza missionária do Povo de Deus, o DA distingue ainda três âmbitos diferentes: a) a paróquia missionária, não como algo extraordinário, mas como novo padrão pastoral, b) a missão continental e c) a missão ad gentes. Aos três âmbitos se sobrepõe parcialmente a clássica divisão entre missão ad intra, quer dizer, a missão entre batizados na própria Igreja Católica, e missão ad extra, entre não batizados. Está também presente em Aparecida, transversalmente, o diálogo inter-religioso [95, 99g, 232, 237ss] e ecumênico [95, 99g, 100g, 227s, 230-234], remetendo a posturas já assumidas nas Conferências anteriores.


 


a) Paróquia missionária


O DA aposta no papel missionário da paróquia, aponta para as dificuldades existentes e propõe, genericamente, mudanças estruturais. As paróquias devem ser “comunidades de comunidades” [cf. 309, 517e] e transformar-se de comunidade de manutenção em “centros de irradiação missionária em seus próprios territórios” e “lugares de formação permanente” [306; cf. 304]. A formação missionária deve ser integral [279, 299, 329, 337, 441a, 456], permanente [299, 306, 326, 437i, 518d], específica [179, 283], comunitária [305] e inculturada [325]. Isso exige “abandonar as ultrapassadas estruturas que já não favorecem a transmissão da fé” [365], entre elas, a estrutura ministerial. O povo quer os interlocutores de sua fé por perto. Enquanto a relação entre “pastores evangélicos” e “padres católicos” é de 6 a 1, na falta do padre o povo opta, muitas vezes, pela presença do pastor [cf. 90]. A proposta de renovar as estruturas paroquiais [172] sem enfrentar mudanças na estrutura ministerial da Igreja permanece um desejo piedoso. Existem outros desafios de caráter estrutural. Entre estes o DA elenca a extensão territorial, a pobreza, a violência, a distribuição desigual dos presbíteros na Igreja do Continente [197]. Aparecida propõe decentralização, desburocratização [203], multiplicação dos braços e qualificação dos ministros [513, 517, 518]. Por causa da extensão enorme das paróquias, propõe, o que não é novo, a divisão do território paroquial em setores [372, 518c]. Ao afirmar que “a renovação da paróquia exige atitudes novas dos párocos e dos sacerdotes” [201], o DA aponta para falhas na formação seminarística. A maioria dos delegados de Aparecida conhece os problemas, aumenta as tarefas e sobrecarrega os párocos e suas equipes.


 


b) Missão continental


Na preparação da Conferência de Aparecida, a Missão Continental dava mostras de que se tornaria o assunto mais importante do evento, o que não aconteceu. No dia 24 de maio 2007, na sala de imprensa, o Cardeal Cláudio Hummes, prefeito da Congregação para o Clero, questionado sobre um eventual caráter proselitista da Missão Continental, respondeu: “Essa missão se dirige aos católicos batizados. (…) Vamos em busca dos católicos pouco evangelizados, não de uma forma proselitista nem antiecumênica, pois se trata daqueles que já foram batizados; conseqüentemente, essa missão exigirá uma mudança na vida de todos os agentes pastorais”. A Missão Continental deveria, portanto, assumir o que já foi chamado de “nova evangelização entre os cristãos culturais” (cf. RM 33, SD 24) e “re-evangelização entre os não-praticantes” (RM 33, 37). Na Missão Continental todo o Continente “quer colocar-se em estado de missão” [213], porque “temos uma alta porcentagem de católicos sem consciência de sua missão de ser sal e fermento no mundo, com uma identidade cristã débil e vulnerável” [286]. “Assumimos – ressalta o DA – o compromisso de uma grande missão em todo o Continente (…). Esperamos um novo Pentecostes que nos livre da fadiga, da desilusão, da acomodação ao ambiente; uma vinda do Espírito, que renove nossa alegria e nossa esperança” [362]. A operacionalização dessa Missão Continental foi confiada ao Celam e seus departamentos. Dificilmente ela acontecerá nos moldes do entusiasmo documentado.


 


c) Missão ad gentes


Junto com a Missão Continental, o compromisso com a missão ad gentes continua [cf. 373-379]; continua a missão de “anunciar o Evangelho do Reino a todas as nações” (cf. Mt 28,19; Lc 24,46-48; [144]). Missão ad gentes significa, no DA, praticamente “missão universal” da Igreja: “Somos testemunhas e missionários nas grandes cidades e nos campos, nas montanhas e selvas da nossa América, em todos os ambientes de convivência social, nos mais diversos ´areópagos` da vida pública das nações, nas situações extremas da existência, assumindo ad gentes nossa solicitude pela missão universal da Igreja [548]. Recentemente, o próprio Papa apontou para as transformações da missão ad gente: “O campo da Missão ad gentes se ampliou notavelmente e não se pode definir só na base de considerações geográficas ou jurídicas. De fato, os verdadeiros destinatários da atividade missionária do povo de Deus não são só os povos não-cristãos e as terras distantes, senão também os âmbitos socioculturais e, sobretudo, os corações”[9] [375]. Na missão universal ad gentes partilhamos a nossa fé, desde a pobreza dos nossos meios. Aparecida espera “uma nova primavera da missão ad gentes” [379].


 


6. Dar, perder, receber


Hoje, a “missão ad gentes” é “missão inter gentes”, missão entre povos e continentes. Os discípulos missionários que vêm da Ásia ou da África para trabalhar na pastoral missionária da América Latina também podem dizer que foram enviados para uma missão ad gentes. Vive-se hoje na Igreja local cada vez mais uma reciprocidade missionária inter gentes. Na pastoral missionária todos são mensageiros e destinatários da Boa Nova, na mística e militância da esperança e da justiça. Na vida “de nossos povos bate um forte sentido de esperança (…). Ele é experimentado (…) graças aos dons e sinais de vida nova que se compartilham” [536, cf. 7, 27, 29, 106].


Essa esperança é nosso dom, não nossa obra. “A vida é uma dádiva de Deus, dom e tarefa que devemos cuidar” [464]. Vivemos a esperança na partilha do pouco que temos, nas causas do Reino que defendemos e na articulação dos poucos que somos. A missão da esperança é o permanente anúncio da vida num mundo no qual a miséria não é acidente, mas produto de sua organização social e de sua civilização. A alternativa para a exploração e a violência desse mundo é a gratuidade: “O amor de doação plena, como solução para o conflito, deve ser o eixo cultural `radical` de uma nova sociedade” [543]. A esperança é a irmã dos pobres e dos crucificados. “Na generosidade dos missionários se manifesta a generosidade de Deus, na gratuidade dos apóstolos aparece a gratuidade do Evangelho” [31/30]. O “total dom de si” é “o diferencial de cada cristão” e “não pode deixar de ser a característica de sua Igreja” [138, cf. 302, 336]. Na lógica do Reino “a vida acrescenta dando-a, e se enfraquece no isolamento e na comodidade” [360, cf. 361]. Nesse contexto, os delegados de Aparecida assumem o compromisso audaz de se tornarem companheiros “de caminho de nossos irmãos mais pobres, inclusive até o martírio”. Depois reafirmam que a opção preferencial pelos pobres “deva atravessar todas as nossas estruturas e prioridades pastorais. A Igreja latino-americana é chamada a ser sacramento de amor, solidariedade e justiça entre nossos povos” [396].


Grandes tarefas esperam a Igreja latino-americana e caribenha. O realismo pastoral nos lembra que nunca na história da Igreja aconteceu que o conjunto dos batizados se tornou sujeito de uma “religiosidade virtuosa” como modelo da vida cotidiana. Esse modelo radical comprometeria o individuo batizado e sua comunidade com uma “ética virtuosa” na qual a transformação do mundo seria uma exigência e uma extensão de sua atividade religiosa. O realismo da ortodoxia institucional e da prática pastoral nunca foram tão longe.[10] O encaminhamento dos cristãos secularizados ou meramente culturais, através da evangelização continental, às práticas da religiosidade popular, que tem tempos fortes de celebração, ou, em alguns casos, a comunidades de base, já seria um passo na direção certa.


Também a transformação de agentes de pastoral em carismáticos ascetas, profetas ou pastores incansáveis de tempo integral e com religiosidade e ética virtuosas, é pouco provável. Com um clero muito reduzido e, muitas vezes, sobrecarregado pelo dever sacramental, Aparecida aposta no serviço generoso de leigos voluntários. Mas, no mundo urbano, esses leigos e leigas estão de sol a sol trabalhando para sustentar as suas famílias.


Com quem transformar o mundo? Com quem fazer a Missão Continental e sustentar o dinamismo de paróquias como “centros de irradiação missionária” (306) se mal conseguimos “segurar” os católicos ainda praticantes? Depois da interpretação do mundo, o paradigma-síntese de Aparecida, a missão no seu sentido pleno, nos confere a responsabilidade da transformação. Quem vai abrir a jaula de ferro ministerial, que é apenas uma das aberturas que se fazem necessárias para realizar as propostas de Aparecida? Para ganhar a verdadeira tradição evangélica, que promete vida para todos, para cumprir a palavra de Deus e nos radicalmente comprometer com ela, precisamos saber perder tradições secundárias e sacrificar costumes de acomodação (cf. 362). A gratuidade, na contra-mão do sistema neoliberal, aponta para a possibilidade de um mundo para todos, mas também para mudanças de mentalidade e estruturas eclesiais. O Espírito que é dom e que dá vida, vive no Verbo encarnado, na Palavra cumprida. Ele, que é o pai dos pobres e a vida do Verbo, vive conosco na Palavra de Deus cumprida na fidelidade à missão.








[1] Cf. SUESS, P. “Lugar da missão em Aparecida”. In: Vida Pastoral, 48/254 (maio-junho de 2007), p. 1-8.



[2] J. RATZINGER, Der Dialog der Religionen und das jüdisch-christliche Verhältnis, in: IDEM, Die Vielfalt der Religionen und der Eine Bund. 3.ª ed., Bad Tölz: Urfeld, 2003, 93-121, aqui 116.



[3] A mesma Seqüência fala dos sete dons (sacrum septenárium), sete fontes da graça e dons da vida, como os sacramentos, lembrando a tradição messiânica de Isaías: Sabedoria, inteligência, conselho, fortaleza, ciência, piedade, temor de Deus (Is 11,2).



[4] AGOSTINHO, A Trindade, liv. XV, 29.



[5] Cf. 25, 29, 32, 33, 95, 121, 139, 143, 144, 152, 154, 184, 190, 196, 212, 219, 223, 224, 250, 276, 278e, 280, 282, 315, 353, 358, 361, 366, 367, 374, 382, 383, 384, 417, 438, 441, 516, 518i,j, 520, 548, 552.



[6] Cf. 10, 127, 153, 157, 160, 184, 186, 211, 213, 228, 349, 350, 357, 377, 382.



[7] Nas edições do DA pela CNBB e pelo Celam existem diferenças entre os números 23 a 32. Nas citações dos respectivos itens, o primeiro número corresponde sempre à edição brasileira.



[8] Tema de Medellín: “A Igreja na atual transformação da América Latina à luz do Concílio”.



[9] BENEDICTO XVI, Discurso a los miembros del Consejo Superior de las Obras Misionales Pontificias, 5 de mayo de 2007 (infelizmente o texto não se encontra no discurso publicado no sítio do Vaticano).



[10] Cf. WEBER, Max, Economia e sociedade, 2 vols., São Paulo: Imprensa Oficial, 2004/1999, aqui vol. 1, parte 2, cap. 5: Os caminhos de salvação e sua influência sobre a conduta da vida. – A religiosidade virtuosa ou heróica, segundo M. Weber, é a religiosidade de místicos, ascetas e santos. Ela se diferencia da religiosidade oficial dos quadros da ortodoxia institucional e da religiosidade popular. Apesar de muitos apelos enfáticos ao heroísmo e à santidade dos discípulos missionários do DA, a ortodoxia institucional viveu sempre em tensão com a “religiosidade virtuosa”, colocando ao lado das estátuas de grandes santos grandes confessionários para o povo.

Fonte: Cimi
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