Terra Cachoeirinha: do sonho à conquista
Terena: muitos anos de luta, opressão e perseguição
Jorge Vieira*
O povo indígena Terena está localizado no estado do Mato Grosso do Sul, inserido bem no coração do Pantanal. Lá chegou há alguns séculos, originário do Chaco boliviano. Impulsionado por conflitos com espanhóis e, conseqüentemente, expulso de seu espaço territorial, guiado pelo Sol, marchou em busca de terras férteis. Atravessou os limites impostos pelos colonizadores e aliou-se ao guerreiro povo Guaicuru. Muitos de seus “patrícios”, como se tratam internamente, lutaram na guerra da “Tríplice Aliança” – Brasil, Argentina e Uruguai –, 1863-1865, contra o bravo e promissor povo paraguaio, com a promessa de garantir seus territórios.
Ao contrário da promessa dos militares brasileiros, quando voltaram seus territórios encontravam-se invadidos por militares que voltavam da guerra e gaúchos. Antes, a população não-indígena, que vivia no entorno das aldeias, mantinha uma relação de certa dependência, visto que a produção indígena era comercializada ou trocada no local. Com a chegada dos novos moradores, foi criada uma outra relação, a exemplo da expulsão dos indígenas de suas terras, a perseguição e imposição do sistema de mão-de-obra escrava.
Sem os territórios e obrigados ao trabalho escravo, a população Terena foi esparramada por toda a região, em busca de moradia e emprego. Os terena encontram-se atualmente, ainda, nos estados de São Paulo e Mato Grosso. Somente na região sul-mato-grossense são cerca de 35 mil.
Em 1910, com a criação do Serviço de Proteção ao Índio – SPI, o governo federal criou algumas “Reservas Indígenas” em algumas partes do Brasil. Nesse contexto foi criada a área indígena Cachoeirinha. A ocupação de “Cachoeirinha” ou “Bôcôôti”, segundo os Terena, remonta às primeiras décadas do século XIX, mais precisamente a 1844, como foi constatado por Francis Castelnau – a “duas léguas em um terço a noroeste de Miranda”. Ali permaneceu uma pequena parte de Terena, lugar de resistência política, cultural e religiosa, em menos de 3 mil hectares.
Com o crescimento populacional, a maioria da população foi obrigada a buscar emprego nas grandes cidades. O antropólogo Roberto Cardoso de Oliveira identificou que, na década de 1960, parcela significativa dos jovens tinha como sonho e buscava sua realização nas grandes cidades, conquistando emprego e ensino universitário. Cabe observar que essa foi a política indigenista implantada pelo Marechal Rondon, apoiada na tese da aculturação, fomentando entre os indígenas e na sociedade brasileira a idéia de que os Terena não tinham mais como perspectiva viver em seus territórios.
A política indigenista e a falsa teoria da aculturação foram desmascaradas pela própria história Terena. Elas tinham um objetivo: abrir os territórios indígenas para expandir as fronteiras agrícolas e para a pecuária. Aos poucos os Terena foram participando das lutas e mobilizações indígenas e políticas, ocupando espaço na sociedade, conhecendo seus direitos e retomando internamente a luta pela recuperação dos territórios.
A partir de fevereiro de 2000, os Terena da área Buriti, localizada nos municípios de Sidrolândia e Dois Irmãos de Buriti, retomam parte da terra e impulsionam a luta dos outros patrícios.
Organização e luta pela terra de Cachoeirinha
A luta pela recuperação do território de Cachoeirinha deu mais um passo à frente: a terra foi homologada pelo presidente Lula, no último 19 de abril.
Com a homologação, fiquei pensando em 2002, sobre como se encontrava o processo de demarcação! Lembro-me que, mais ou menos em agosto daquele ano, algumas lideranças visitaram a sede do Cimi, em Campo Grande, MS, para conhecer a equipe missionária chegada recentemente. Na oportunidade, expuseram os problemas e solicitaram o apoio para lutar pela terra. Foi acordado que voltariam para discutir internamente, e depois entrariam em contato.
No mês seguinte, por telefone, o cacique de Cachoeirinha, Lourenço Muchaco, convidou para uma reunião na comunidade. Prontamente a data ficou agendada. A reunião aconteceu no centro social de Cachoeirinha. Encontravam-se exatamente 16 pessoas, entre lideranças, chefe de posto e outros membros da comunidade. Na pauta, a questão da terra.
Diante da situação de paralisação do processo de demarcação, em Brasília, solicitaram apoio financeiro para deslocamento de uma delegação que iria até as autoridades federais para pressionar, fazer andar o processo administrativo, que estava parado há muitos anos. Toda a discussão se deu entre o grupo, na língua Terena.
Entra aqui uma participação pessoal. Confesso que não entendi absolutamente nada, exceto a reivindicação. Imagine um nordestino, recentemente chegado no Mato Grosso do Sul, acostumado com os indígenas de outra região, pegando uma realidade conflituosa e desconhecida! Pensei: O que disser aqui, como será interpretado?! Bem, lembrei de uma afirmação de um velho cacique Geripankó, Genésio Miranda, de Alagoas: “estou de canela seca de ir à Brasília, já fui 32 vezes, e não consegui nada. Agora, vou organizar primeiro o meu povo”. E aí me dirigi para o grupo (olhe a ousadia!): como está a organização e mobilização das comunidades, lideranças, grupos, igrejas, enfim, do povo? E completei: o problema não é ir à Brasília, vocês mesmos têm essa experiência, a questão é como está a organização do povo.
Considero que aquelas perguntas foram fundamentais, pelos menos para aquele momento! Respirei fundo, aliviado, achei que consegui ser entendido, visto que os presentes começaram a falar em Terena e demonstrar uma olhar de apreensão. Parecia dizer, puxa, de fato, estamos trabalhando somente as lideranças! Aí propuseram uma nova data para discutir a organização.
Na reunião, realizada na igreja evangélica de Cachoeirinha, encontravam-se cerca de 40 pessoas. Percebi que estava melhorando! Entre outras propostas, foi sugerida a realização de um seminário para discutir a problemática da terra, com representantes de entidades e das lideranças da terra Buriti. Foram 100 pessoas! Ficou programado o segundo para o mês seguinte, que foi realizado com cerca de 180 participantes. Depois desse, foi a Assembléia que reuniu quase 400 representantes dos “Setores”, ou Aldeias, como os Terena tratam suas comunidades. Nesse processo foi uma delegação à Brasília, que foi avaliada como muito proveitosa, visto que conseguiram o compromisso do procurador da Fundação Nacional do Índio (Funai), em fazer o processo de demarcação avançar.
Aí, ninguém segurava mais a luta! Com muitas reuniões, mobilizações e viagens, o processo foi crescendo, mesmo com o aumento das pressões contrárias dos fazendeiros, que repercute até os dias atuais. Como exemplo disso, a notícia veiculada no site Campo Grande News, dia 22 de junho, em que o deputado federal do Mato Grosso do Sul, Valdir Neves, ingressou na Mesa Diretora da Câmara dos Deputados com projeto de decreto para suspender a portaria que desapropriou a Terra Indígena Cachoeirinha, justificando a defesa dos interesses dos fazendeiros invasores.
Apesar disso, os terena continuam firmes na defesa da retomada “Mãe Terra” e da homologação, trabalhando e lutando pela conquista de todo território de Cachoeirinha.