Etanol e a galinha dos ovos de ouro
Uma fábula ambiental
Neste início de junho, fomos sacudidos por um vendaval de reportagens e notícias sobre aquecimento global, superprodução de lixo, poluição e agressões ao planeta e ao meio ambiente. Questões urgentes, sem dúvida, com uma divulgação invejável e, diante disso, podemos nos perguntar: por que esse súbito interesse, potencializado em reportagens e em publicidade divulgada em horário nobre, nas grandes emissoras de televisão?
O Dia do Meio Ambiente foi sintomático dessa atual onda de preocupações com o planeta. Foram abundantes as notícias sobre experiências de pessoas e comunidades empenhadas para reduzir os impactos da ação humana sobre a natureza, projetos exemplares de reciclagem de lixo, reaproveitamento de materiais, destino adequado aos dejetos, reflorestamento de áreas devastadas. Todas são iniciativas importantes, assumidas individual ou coletivamente, para assegurar condições de vida para as gerações futuras.
Enquanto isso, nosso presidente embarcava em mais um vôo, dessa vez para reunir-se com o grupo de nações mais poderosas do mundo, como “embaixador do etanol”, conforme noticiaram as manchetes dos principais jornais. Etanol, essa solução milagrosa, capaz de conter a poluição, frear o aquecimento global, tirar o país do atoleiro. Quantas qualidades! Quantos ovos em um mesmo cesto e, no entanto, quando a reza é demais o santo desconfia.
Enquanto se enaltecem as pequenas práticas de proteção ambiental, criativamente mantidas por pessoas comuns, nos altos postos da nação se tramam grandes estratégias para assegurar a expansão do plantio de cana-de-açúcar e a produção do milagroso etanol, o “combustível limpo” que nosso governo faz questão de propagandear. Quem pode se atrever a questionar essa nobre iniciativa, esse passo em direção ao futuro?
A monocultura de cana-de-açúcar constitui um retrocesso a práticas que exploram o meio ambiente à exaustão e a população local, tal como aquelas dos tempos de Brasil – Colônia. Esse modelo econômico foi responsável, em grande medida, pela exploração de populações indígenas e negras, e serviu para justificar a concentração de terras, a expulsão de populações que nelas habitava, intensificando a escravidão e as profundas desigualdades sociais que nunca foram resolvidas. As experiências atuais com monocultura de cana-de-açúcar para nutrir a indústria açucareira e de biocombustíveis são um documento vivo da exploração de milhares de trabalhadores bóias-frias, empregados somente na época de colheita. Organizações de Direitos Humanos tem denunciado sistematicamente as condições de semi-escravidão a que são submetidos esses trabalhadores, tendo que alcançar metas exorbitantes,obrigados a colher, em média, 12 toneladas de cana-de-açúcar por dia. Trabalham até a exaustão, morrem em acidentes de trabalho, adoecem devido às péssimas condições de vida, mutilam-se para assegurar qualquer ganha-pão. Muitas dessas pessoas são vítimas de políticas que privilegiam a grande produção, expulsando os pequenos trabalhadores do campo, excluindo-os, explorando-os, tratando-os como resíduos humanos, tal qual um bagaço de cana que resulta da produção que alimenta a insaciável voracidade de empresários e usineiros.
Mas voltando ao meio ambiente, como esta preocupação caiu, de repente, nas graças do governo? Será que foi mera coincidência essa temática ganhar fôlego no momento exato em que se buscam adeptos para o projeto desenvolvimentista baseado na produção de etanol?
É interessante comparar os discursos com as medidas objetivas tomadas pelo governo brasileiro nos últimos tempos, nessa nova “febre desenvolvimentista”. Um sintoma parece ter sido a publicação das Diretrizes para a Política de Agroenergia, em 2005, pelo Ministério da Agricultura, de Ciência e Tecnologia, de Minas e Energia e do Comércio Exterior. Onde foi parar o Ministério do Meio Ambiente nessa difícil tarefa de formular diretrizes ambientais? A resposta é simples: desnecessário garantir acento aos órgãos governamentais que, em tese, respondem pelas questões ambientais, já que se trata de um “negócio” que diz respeito ao desenvolvimento tecnológico, à produção em larga escala e a melhoria genética para maior produtividade por hectare, à construção de obras de infra-estrutura. Ou seja, trata-se de um “espaço” onde circulam incontáveis cifrões e nos quais as preocupações ecológicas não têm a menor relevância. No documento, a tônica é a gestão dos recursos e não os impactos ambientais, econômicos, culturais, estruturais dessas grandes obras. Nesse sentido, a seguinte afirmação que consta das diretrizes é sintomática: “o principal desafio para a sustentabilidade é fazer o melhor uso dos recursos humanos e físicos disponíveis”. Usar, esgotar e descartar! Não é isso que ensina o mercado global– através de produtos cada vez menos duráveis, fazendo de nós colecionadores de sucatas e de atos de consumo?
Outros “sintomas” da falta de cuidado e preocupação ambiental são obras como as hidrelétricas projetadas no PAC, a transposição do Rio São Francisco, a pressa em “conquistar” licenças ambientais, mesmo que para isso seja necessário desmontar as estruturas oficiais de controle e fiscalização, tal como o IBAMA, bem como as áreas cada vez maiores destinadas ao plantio de eucalipto e a produção de um verdadeiro deserto verde, com conseqüências ambientais nada animadoras. Um paradoxo que expõe a falta de coerência entre os discursos ecologicamente corretos e as decisões que afetam diretamente o meio ambiente e as condições de vida de milhares de seres no planeta – e isso faz lembrar daqueles “poucos bagres” que, de acordo com Lula, não podem impedir a construção de uma hidrelétrica no Rio Madeira.
Neste momento de euforia com as possibilidades que a produção de etanol parece anunciar, o território brasileiro é mapeado a partir de áreas de plantio, terras rentáveis por oferecer possibilidades de mecanização da produção, e tudo isso se traduz em números, tabelas, gráficos, projeções de encher os olhos. Especuladores do Etanol investem seus excedentes de capital, uma iniciativa que visa sondar o terreno, à espera de melhores condições que possivelmente serão dadas com a absoluta flexibilização das leis de proteção ambiental. Se as “condições” não são assim tão favoráveis, não é por falta de empenho do governo brasileiro que, nas palavras do próprio presidente, faria o possível para destravar o desenvolvimento e remover alguns “penduricalhos”.
A preservação ambiental tem sido tarefa abraçada pelas populações tradicionais, especialmente os quilombolas e os povos indígenas, através de sua convivência respeitosa com a natureza. Enquanto isso a mão de quem “conduz o leme” se estende para saudar usineiros, os “heróis da pátria”, e tratar aquelas populações como entraves ao desenvolvimento. Os interesses desse governo estão, mais do que nunca, voltados para quem sempre lucrou com a exploração do capital, da terra, dos recursos, da força de trabalho da população empobrecida. Velhas soluções, maquiadas como novidades pela indústria do marketing, são anunciadas como “soluções milagrosas” em projetos de desenvolvimento em que o Meio Ambiente é visto simplesmente como recurso a ser explorado sem escrúpulos. “Sorte a nossa, sermos um país munido de florestas e águas abundantes, recursos a serem explorados e convertidos em lucrativos empreendimentos” isso é o que frequentemente se ouve falar.
A sociedade é convocada a “prevenir”, fazer a sua parte para o bem do planeta, estabelecer parcerias com o Estado para o provimento de condições sociais que deveriam ser mantidas através de políticas sociais adequadas. Na mesma direção – escancarando a falta de políticas adequadas – chamou a atenção, nestes dias, uma série de reportagens sobre a situação do sistema público de saúde, que resultou numa procura desesperada por atendimento em hospitais na grande Porto Alegre. Assistimos atônitos aquelas tristes cenas de dezenas de mães passando horas, com seus filhos no colo, aguardando por atendimento em filas intermináveis, submetidas a uma condição de “coisas”, ou de entulhos amontoados nos corredores de um sistema sucateado, sobrecarregado, sem financiamentos suficientes, entregue a própria sorte. A solução apresentada por um conceituado profissional de saúde, numa reportagem de televisão foi a seguinte: “a população precisa se cuidar melhor para não adoecer”. Ocorre que os direitos sociais foram convertidos em serviços e reconceituados como um negócio e, desse modo, reivindicar sistemas públicos que efetivamente assegurem educação, saúde e saneamento, soa apenas como um eco de velhos e ultrapassados ideais, de um tempo em que se propunha um Estado provedor de “bem estar social”.
Definitivamente, aquela máxima política de assegurar o crescimento, presente nos discursos atuais das grandes legendas partidárias, aboliu o componente humano das mais nobres projeções. A gente ouve falar, e cada vez mais, em crescimento econômico, o que não implica em melhores condições de vida ou geração de empregos que não sejam transitórios, temporários, como ritos de passagem para um mundo de mega-produções, cada vez menos comprometidas com as pessoas, cada vez mais exigentes em termos de lucratividade, cada vez mais geradoras de desigualdade e pobreza, cada vez menos implicadas com os efeitos na vida das pessoas e com as garantias sociais. “Sair do atoleiro” é hoje expressão que adquire sentido somente em termos financeiros, e nada tem a ver com bandeiras sociais e ecológicas.
E, por ironia, essa “milagrosa solução” que o etanol parece representar para a salvação do planeta não é consensual nem mesmo entre grandes interessados. O Estadão publicou em 08 de maio deste ano uma matéria intitulada “ONU faz advertência para perigos dos biocombustíveis”, dando destaque a um relatório das Nações Unidas. O documento produzido por 20 agências internacionais afirma que o etanol pode colaborar para reduzir o aquecimento global, mas pode também gerar conseqüências desastrosas, tal como a elevação do preço de alimentos, produzidos em menor escala para dar lugar à monocultura, levando a uma exclusão ainda mais violenta da população, já que esse tipo de produção privilegia altos investimentos e concentração de terra em grandes propriedades. O relatório alerta para as mudanças provocadas no solo, “o uso de monoculturas em larga escala poderá levar a perda significativa de biodiversidade, erosão do solo e sangria de nutrientes”, e ainda, o plantio em regiões de floresta e cerrado poderá eliminar o benefício do uso de biocombustíveis para a redução do efeito estufa. O documento conclui que “o crescimento rápido da produção líquida de biocombustíveis colocará demandas substanciais sobre os recursos mundiais de terra e água, num momento em que a demanda por alimento e produtos florestais também se eleva rapidamente”.
É preciso vencer a tentação de acreditar em soluções rápidas e milagrosas e indagar qual o preço que teremos de pagar por essas escolhas. O que isto significa para as pessoas, para as relações de trabalho e para o meio ambiente? Se é possível destinar grandes áreas para a monocultura de eucalipto, soja ou cana-de-açúcar, satisfazendo a demanda de e a voracidade de grandes investidores, também é possível estabelecer outras prioridades. Em outras palavras, se o país pode dispor de grandes áreas para plantio de cana, também pode planejar o plantio de culturas variadas para resolver os problemas de alimentação necessária e de qualidade para os milhões de pessoas que hoje sobrevivem de migalhas. Mas, plantar alimentos não interessa quando estão em jogo apenas valores econômicos, mesmo que seja uma boa forma de assegurar o bem estar das pessoas, assumindo o pressuposto de que os bens da natureza não nos pertencem.
Uma preocupação efetiva com a vida do planeta exige reorientar o curso de nossa história, redefinindo prioridades, colocando em primeiro plano a justiça social, o direito inalienável de todo ser humano à vida e à dignidade, a proteção da natureza, o rigor na aplicação da legislação ambiental, e não a sua negociação. Se podemos aprender algo com a antiga fábula da “galinha dos ovos de ouro”, fica aqui a singela mensagem de que ao matar a galinha não se chega a um grande tesouro mas, ao contrário, elimina-se precisamente o bem mais precioso.
Porto Alegre, 9 de junho de 2007.
Iara Tatiana Bonin