Colaboração entre indígenas e poder público viabiliza iniciativas na área de saúde
Texto e fotos de Priscila D. de Carvalho, especial para as Agências Carta Maior e Repórter Brasil*
Quando a Fundação Nacional de Saúde (Funasa) assumiu a saúde indígena, em 1999, não havia planos para atendimento a índios em cidades. Mas o quadro de pobreza de algumas comunidades e, sobretudo, diante da demanda cada vez maior de organizações indígenas expostas nos Conselhos Distritais de Saúde Indígena, a administração pública vai, aos poucos, abrindo espaço para atender as reivindicações dos indígenas que moram nos centros urbanos e não vivem em terras demarcadas.
Para a Funasa, aqueles que deixam suas aldeias e passam a viver em cidades devem ser atendidos pela rede de saúde pública, como todos os outros cidadãos. A assessoria de comunicação do órgão informa que a orientação geral é assistir apenas indígenas de aldeias reconhecidas pela Fundação Nacional do Índio (Funai). Assim, terras como as Guarani em São Paulo ou em Porto Alegre, reconhecidas, têm atendimento específico.
Em São Paulo, onde os Guarani vivem em duas terras de 26 hectares cada e em outra com apenas dois hectares, sem lugar para plantar seus alimentos, a mortalidade diminuiu após o inicio da atuação da Funasa, mas segue alta. Em 2002, a taxa de mortalidade infantil foi de 92,6 para cada mil crianças nascidas vivas. O número caiu para 40,8 em 2005, mas voltou a crescer em 2006, chegando a 90,9 por mil. Em números absolutos, foram 3 mortes de um total de 33 nascimentos em 2006, e 2 de um total de 49 em 2005. Os números seguem, no entanto, mais altos do que a média estadual, que ficou em 52,6 por mil no ano de 2005 e de 62,5 por mil em 2006.
Os grupos que migram para as cidades seguem lutando pelo atendimento diferenciado. Apesar da orientação da coordenação da Funasa, em Brasília, no dia-a-dia das unidades administrativas do atendimento à saúde indígena, a presença das reivindicações pelo atendimento diferenciado acabou levando os Distritos Especiais de Saúde Indigena a iniciarem políticas para a população que vem de outras cidades.
Como nos centros urbanos já existe estrutura (médicos, postos de saúde, etc.), não é necessário criar toda uma nova rede de atendimento. Mas, ainda assim, a entrada desses cidadãos no Sistema Único de Saúde (SUS) nem sempre é automática. “Na medida que estes índios estão fora da aldeia, eles já têm uma interação com o sistema local de saúde. Não caberia à Funasa criar um sistema paralelo ao sistema de saúde local. Então, cabe à Funasa, por ser o órgão responsável pela saúde indígena, fazer uma interlocução com o gestor local, o município, para dar assistência melhor a esse índios, respeitando a questão cultural. A Funasa fica responsável por aquilo que o município não tem dentro da sua estrutura para fornecer – algum medicamento especifico, por exemplo”, afirma Paulo Eduardo Sellera, chefe da Assessoria de Saúde Indígena da Funasa em São Paulo.
A avaliação da coordenadora do Núcleo de Políticas Públicas para Povos Indígenas, da Secretaria de Direitos Humanos de Porto Alegre, Ana Freitas, é semelhante. “O que é necessário é qualificar a intervenção do Sistema Único de Saúde (SUS), preparar os agentes públicos no posto de saúde próximo”, avalia.
Atendimento diferenciado
As dificuldades que podem ser enfrentadas pelos indígenas nas periferias são exatamente as mesmas de toda a população – demora para consultas, falta de dinheiro para compra dos remédios prescritos pelo médicos. Mas as reivindicações indígenas vão além da qualidade do atendimento: estão ligadas ao respeito às características da população.
A necessidade de uma política especifica para a saúde indígena está na ponta da língua dos próprios indígenas. “Mesmo que [a rede de atendimento] fosse boa, não iam respeitar nunca a medicina tradicional. Se aqui na cidade um indígena fica doente, o hospital não permite rede no hospital, garrafada de chá, pajé. Porque às vezes a gente adoece de espírito, e médico não descobre. A gente busca, não importa onde se esteja, a valorização da medicina tradicional”, explica Mara Cambeba, de Manaus. Zílio Kaingang, pajé da Lomba do Pinheiro, em Porto Alegre, traz ervas de seu território natal, em Nonoai, interior do Rio Grande do Sul. “A Funasa tem que trabalhar junto com a gente, respeitar as ervas. Se não tiver erva que vence, aí tem que usar remédio de farmácia”, afirma.
Mara Cambeba fundou, em conjunto com outros indígenas, o Instituto Centro de Referência e Apoio à Saúde Indígena de Manaus (Icrasim). Ela conta que até mesmo as lideranças indígenas do interior tinham resistência às demandas por saúde na cidade. As conversas tiveram que começar no Conselho Distrital de Saúde, para o qual os povos da cidade conseguiram até mesmo eleger um representante. “No inicio, os próprios indígenas eram contrários, por causa dos recursos. Teve que haver diálogo, conscientização. Falamos muito da realidade, do tipo de doença que existe na cidade, da discriminação nos hospitais. Nossa intenção nunca foi de dividir recursos, mas sim de ampliar e fortalecer”, relata.
São Paulo, Porto Alegre, Manaus e Campo Grande têm, atualmente, agentes indígenas de saúde (AIS), que são pessoas das comunidades encarregadas de facilitar a ponte entre os usuários dos serviços e o sistema de saúde. Assim como no Programa de Saúde da Família, são eles que fazem o primeiro contato com as comunidades, marcam consultas, identificam as residências, trabalham com prevenção. No caso dos indígenas, eles fazem, muitas vezes, a “tradução” do sistema publico de saúde aos povos, e vice-versa. E também acompanham às consultas pessoas que têm dificuldades de compreensão em português, ou solicitam que familiares possam acompanhá-las. Estas características das populações indígenas dão sentido às reivindicações por uma política diferenciada de saúde existem também na cidade.
Conselhos, população difusa e reconhecimento
Em Mato Grosso do Sul, a decisão que levou ao início do atendimento específico de saúde aos índios em Campo Grande partiu do Conselho Distrital, segundo Wanderley Guenka, chefe do Distrito Especial de Saúde Indígena de Mato Grosso do Sul.
Para Guenka, as limitações orçamentárias e a urgência para o atendimento de comunidades afastadas dos municípios, sem acesso ao sistema de saúde, fazem com que o atendimento aos povos da cidade não possa ser prioridade. “O serviço público trabalha em cima de orçamento, e é sempre meio apertado. A prioridade, desde quando começamos o trabalho aqui, é atender quem está longe da assistência, os mais vulneráveis e os de mais difícil acesso. Os Kadiwéu estão a 175 km da cidade de Bonito. Campo Grande é a capital, quando há necessidade, existem postos de saúde”
Os dois agentes e dois auxiliares de enfermagem contratados pela Funasa em Campo Grande atendem às aldeias urbanas de Água Bonita e Marçal de Souza. “Não tem como atender os que vivem dispersos”, afirma o chefe do Distrito de Saúde.
A coordenação da Funasa em Brasília, por sua vez, avalia que uma das dificuldades para o atendimento aos indígenas na cidade é como reconhecer quem é ou não indígena. Há, no entanto, experiências neste sentido São Paulo. Na capital paulista, a demanda inicial por atendimento diferenciado foi apresentada pelos Pankararu do Real Parque, atualmente atendidos por agentes indígenas de saúde. Hoje, os contatos deles com outros povos é usado pela Funasa para conseguir identificar esta população que vive espalhada pela cidade. “Como conhecemos povos urbanos, ficamos coma função de cadastrar famílias Fulni-ô, Pankarare e Atikum, povos do Nordeste que a gente conhece as lideranças e sabe exatamente quem são as pessoas”, relata Dora Pankararu. Sinal de que, com vontade política, o atendimento à saúde que respeite as características dos indígenas nas cidades pode ser feito.
* O projeto que deu origem a este trabalho foi ganhador das Bolsas AVINA de Investigação Jornalística. A Fundação AVINA não assume responsabilidade pelos conceitos, opiniões e outros aspectos de seu conteúdo