Moradia ocupa posição de destaque entre problemas enfrentados por índíos
Texto e fotos de Priscila D. de Carvalho, especial para as Agências Carta Maior e Repórter Brasil*
A questão da moradia está relacionada com outros problemas enfrentados pelos povos indígenas que vivem em Campo Grande, Porto Alegre, São Paulo e Manaus. Aldeias urbanas, conflitos pela posse da terra em espaços na cidade, tentativas de incorporação a conjuntos habitacionais convencionais e disputa por áreas públicas nas zonas periféricas revelam dois traços marcantes: a variedade de impasses em curso no que se refere à habitação e a falta de providências de caráter universal por parte do poder público.
Mais de um terço dos 4.641 mil indígenas de Campo Grande autodeclarados no censo de 2000 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) vivem nas 293 casas construídas nas três aldeias urbanas construídas na cidade – Marçal de Souza, Jardim Noroeste e Água Bonita.
Primeiro loteamento, Marçal de Souza foi construído depois que um grupo Terena ocupou, em 1995, um terreno – na época, ainda vazio – que a Prefeitura de Campo Grande havia doado para a Fundação Nacional do Índio (Funai) para o estabelecimento de uma Casa do Índio. Em 1999, o poder municipal forneceu material de construção e os próprios moradores ergueram 135 casas. A prefeitura construiu também escola e um prédio que abriga o Memorial de Cultura Indígena, espaço de exposição de artesanatos. Lideranças da aldeia contam 200 famílias em 135 casas, somando um total de 1050 pessoas.
A Aldeia de Água Bonita, iniciativa do governo estadual, foi o segundo loteamento construído em Campo Grande. Fica na saída saída para Cuiabá, no final de um conjunto habitacional, e reúne 60 famílias em casas dispostas em círculos, decoradas com grafismos dos povos indígenas do Estado. Gerente de Produção e Planejamento da Agência Estadual de Habitação (Agehab), Maria Teresa Rojes Palermo ressalta que Água Bonita fez parte de uma iniciativa mais ampla do governo estadual que construiu 1055 unidades habitacionais para indígenas de todo o Mato Grosso do Sul, com recursos estaduais e federais: para saneamento básico e dentro do Programa de Subsidio à Habitação de Interesse Social (PHS).
Não existiu, segundo ela, nenhum planejamento maior na decisão de construir casas para índios na cidade. “Foi um projeto pontual. Não era intenção fazer para índio desaldeado. Foi decisão do diretor da época”. A aldeia urbana, admite Maria Teresa, fugiu das regras dos programas habitacionais do Estado. “A política habitacional é de colocar perto de locais de trabalho, inseridos na malha urbana. A aldeia de Marçal [de Souza] tem ônibus, escola, posto de saúde. Lá em Água Bonita não tem nada”.
Em 2006, os moradores receberam o comprovante de quitação e a posse das casas, mas o restante da área total de 13 hectares de Água Bonita permanece em desuso. Leopoldo Vicente, Terena, e Nito Nelso, Guarani, lideranças de Água Bonita, afirmam que têm tentado desenvolver projetos na parte desocupada – como de produção de mandioca e de construção de salão para a comunidade produzir artesanato – que possam contribuir para o sustento da comunidade. Mostram um documento de protocolo do pedido para uso da área encaminhado à Procuradoria Geral do Estado.
“Existe, sim, a solicitação no papel para passar a área para eles. Mas nunca passou na minha mão um projeto de desenvolvimento para a área. Seria interessante. Mas eles não se organizam suficientemente para fazer uma proposta com credibilidade”, reclama a gerente da Agehab. Na frente de Água Bonita, cresce uma nova ocupação que já reúne outras 60 famílias. Por ora, Maria Teresa nega a possibilidade de construção de novas casas no curto prazo. “O governo estadual já entrou com pedido de reintegração de posse [da área ocupada pelas 60 famílias] porque este é o procedimento padrão. Sabemos que a demanda é maior que a oferta. Mas existe um sistema de inscrição que precisa ser respeitado”.
As 98 casas do Jardim Noroeste, terceira aldeia urbana de Campo Grande, foram inauguradas neste ano. O loteamento foi fruto de uma reivindicação do Conselho Municipal de Indígenas – que reúne lideranças da cidade e é responsável por intermediar o diálogo entre o poder público e as comunidades – encaminhada à Empresa Municipal de Habitação (Emha). “Na mesma semana em que o Conselho encaminhou a reivindicação, por coincidência, o prefeito [André Pucinelli, atual governador do estado] tinha uma reunião com a Caixa Econômica Federal e perguntou sobre a possibilidade de projeto específico para os indígenas. Descobriu que havia recursos disponíveis pelo FNHIS [Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social]. Foi o primeiro convênio realizado no Centro-Oeste pelo Fundo”, relata Rodrigo Aquino, diretor-presidente da Emha.
Morro do Osso
A aldeia urbana do Morro do Osso, em Porto Alegre, atende apenas 23 famílias Kaingang, parcela ínfima dos 13.794 autodeclarados indígenas na capital gaúcha. Os Kaingang conseguiram uma área de 5,8 hectares, comprada pela prefeitura, no âmbito do Orçamento Participativo (OP). Mas a construção das moradias só se tornou possível graças a um convênio firmado entre a administração municipal e a organização não-governamental (ONG) basca Fundación Paz y Solidaridad, sensibilizada pela situação dos indígenas durante a primeira edição do Fórum Social Mundial, em 2001.
A cooperação espanhola aportou cerca de R$ 1 milhão para as obras no terreno e, em contrapartida, a prefeitura entrou com R$ 500 mil. Em 2006, foram finalizadas 23 casas, com saneamento ambiental, além de uma escola bilíngüe, um posto de saúde. “Nas vilas, é muito perigoso para os filhos da gente. Tem muito assalto, banditismo. Ia pra feira, tinha que levar as crianças para não acontecer alguma coisa. Aqui, a gente se sente bem porque está entre os índios, não tem misturança. Não dava pra fazer rituais no meio das vilas. Precisamos de espaço para fazer danças, para o pajé fazer trabalhos”, discorre Dona Irundina, do povo Kaingang.
O principal imbróglio no Morro do Osso, porém, diz respeio à posse da terra. Por causa dela, agressões físicas entre o secretário municipal de meio ambiente e mulheres Kaingang foram parar nas manchetes dos jornais locais. As 23 famílias vivem desde 2004 na entrada do Parque Natural do Morro do Osso, unidade de conservação municipal. De acordo com o secretário de Meio Ambiente de Porto Alegre, Beto Moesch, o parque foi criado a partir de demanda dos moradores da região pela preservação da área, último espaço remanescente de Mata Atlântica da cidade.
Um sonho levou a pajé da comunidade ao local, onde ela encontrou vestígios de ocupação Kaingang e Guarani. Uma decisão da Justiça Federal em julho de 2006 permitiu ao grupo permanecer nas casas até o julgamento do mérito da reintegração de posse pedida pela prefeitura – que propôs a transferência da comunidade para uma outra área, que não foi aceita pelos indígenas, que consideram a área um “tekoha” (território tradicional). O secretário apresenta uma tese controversa para defender a saída dos Kaingang do Parque do Osso. Os índios, sustenta, degradam o parque. “Está no processo a comprovação triste de como eles destroem o meio ambiente. A área ficou comprometida com queimadas, clarões, plantio de espécies exóticas que mostram o desconhecimento deles em relação ao ecossistema”.
Roberto Liebgott, do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) em Porto Alegre, discorda. “O Parque foi criado sobre uma área de ocupação tradicional. A prefeitura divulgava, na sua página na internet, informações turísticas de que ali existem sítios arqueológicos e cemitério indígena. A existência deles caracteriza a área como sendo, de fato, de ocupação indígena”, argumenta. Há questionamentos também com relação ao tamanho do parque – 27 hectares não são área suficiente para uma área desse tipo – e não existe conectividade com outros espaços naturais, o que é um preceito básico para Unidades de Conservação.
Doações e programas habitacionais
Os três “tekohas” de São Paulo são do povo Guarani: Tenondeporã (Morro da Saudade) e Krukutu ficam em Parelheiros, Zona Sul da cidade, e a terra Jaraguá, na Zona Norte. Foram demarcadas na década de 1980, pela Secretaria Estadual do Meio Ambiente. Krukutu foi uma terra onde os índios viviam e que foi deixada para eles pela pessoa que tinha a posse da terra, depois regularizada como terra indígena.
As terras do Jaraguá foram da Sociedade de Geografia de São Paulo, cujos sócios convidaram para serem caseiros uma família Guarani que vivia em situação de pobreza. Esta família foi o princípio do grupo que vive hoje na “aldeia de baixo”, registrada com dois hectares. Seguindo a lógica das migrações Guarani, novas famílias chegam, se agregam em torno de uma liderança – em geral religiosa – e os grupos, aos poucos, crescem. Com a chegada do pajé José Fernandes, cresceu no Jaraguá a “aldeia de cima”. As famílias das duas aldeias, separadas por uma rua, são proibidas de usar 4,9 milhões de metros quadrados de mata do Parque do Jaraguá, do qual são vizinhas.
São poucos os indígenas que conseguem ser contemplados em conjuntos habitacionais populares convencionais. Na capital paulista, algumas famílias Pankararu e Kaingang estão sendo atendidas por programas públicos desse tipo nos bairros de São Mateus e Itaquera, mas o único conjunto habitacional que atende especificamente indígenas no Real Parque sofre criticas dos outros Pankararu, que continuaram morando na área favelizada no mesmo local. “Só arrumaram a parte da frente da favela. Só fizeram esses prédios aqui para cobrir a favela. Para não ver o que está atrás. Esses prédios são um espelho para quem passa de carro. E a gente se esconde atrás do espelho”, questiona José Carlos da Silva, apontando para os prédios do Cingapura, que se vêem da porta de seu barraco de madeira.
Zona Franca
Em Manaus, o caos urbano criado pela ocupação desordenada propulsionada pela Zona Franca levou a uma multiplicação de bairros pobres e sem estrutura urbana – sem saneamento, sem água encanada, sem transporte organizado – , mas sempre com muita gente. “Não houve e não há planejamento”, afirma a diretora da escola de educação da Universidade Federal do Amazonas (UFAM), Arminda Mourão, que vem estudando o processo de industrialização do estado. Ela avalia que a violenta migração que ocorreu em Manaus não só foi feita sem o planejamento urbano necessário, como teve efeitos sobre as cidades vizinhas da região. “Manaus se desenvolve e a atividade econômica dos municípios se esvazia. O esvaziamento ocorre não só na atividade produtiva, mas também na saúde e educação. Não havia nem mesmo ensino médio fora da cidade. Tudo se concentra em Manaus”, avalia.
Foi neste contexto em que parte das terras destinadas à Zona Franca acabaram sendo ocupadas pelos migrantes para habitação. Um grupo de indígenas Kokama vive em terras que pertencem à Superintendência da Zona Franca de Manaus (Suframa).
Alguns setores, entre eles a pastoral indigenista de Manaus, têm tentado a regularização da terra pela Funai, mas Edgard Ferndandes Rodrigues, do povo Baré, administrador do órgão federal não vê muita possibilidade de avanços. “A legislação da Funai não tem positivada legislação que visa apoio a índios urbanos”, responde.
A Suframa vem encaminhando a regularização da área da mesma forma como acontece com famílias não indígenas que ocupam terras da superintendência. “No Distrito Industrial não existe área rural, toda a área é urbana. Acontece que a ocupação nessa região se deu por produtores rurais. A reivindicação dos índios é resultado da ocupação de produtores, que no caso, se dizem índios, fato que está sendo averiguado pela própria Funai. Será como produtores que a regularização dessas terras se fará. E esta condição é defendida pela própria Funai”, afirma, em entrevista por e-mail, o coordenador geral de Análise e Acompanhamento de Projetos Agropecuários da Suframa, Paulo Sérgio B. Cal.
* O projeto que deu origem a este trabalho foi ganhador das Bolsas AVINA de Investigação Jornalística. A Fundação AVINA não assume responsabilidade pelos conceitos, opiniões e outros aspectos de seu conteúdo