15/05/2007

Experiências na área da educação mostram relevância da abordagem étnica

Texto e fotos de Priscila D. de Carvalho, especial para as Agências Repórter Brasil e Carta Maior*


Não é fácil encontrar linhas comuns entre as políticas públicas de educação para indígenas nas cidades. Por ser responsabilidade dos estados, e não da União, a educação é gerenciada por governos de linhas políticas diferentes. O traço geral das políticas que existem é que elas têm foco em grupos que vivem aldeados nas cidades. Ou seja, uma criança indígena que freqüenta uma escola de maioria não indígena raramente vê tratados temas ligados à sua realidade étnica em sua escola. E não são poucas as crianças que vivem assim: em Porto Alegre, há 13 mil pessoas autodeclaradas indígenas, e menos de 200 famílias vivem em comunidades visíveis – em aldeias urbanas ou em terras demarcadas.


Pesquisadores destacam a importância da abordagem do tema étnico pela escola pública, freqüentada pelas crianças indígenas cujos pais migraram para as cidades. E sobre como todas as crianças das cidades poderiam ganhar se as escolas trouxessem, para a sala de aula, a realidade de seus alunos indígenas. “Para grupos que moram na zona rural de Manaus, ou que se organizam para fazer um bairro indígena e vivem ali, meio como em uma aldeia, têm sentido lutar por uma escola indígena, com professor indígena”, afirma Rosa Helena Dias da Silva, da Universidade Federal do Amazonas (UFAM). “Mas há também os índios que estão em grupos pequenos ou isolados e, para estes, acredito que o desafio é tratar da realidade desta criança dentro da escola que ela freqüenta. Com isso, a escola pública também ganha, porque consegue tratar o tema da diversidade cultural dentro da própria escola. Mas é complicado, porque, ainda que o tema da inclusão pareça estar na moda, os professores ainda não estão formados para promover mesmo um diálogo entre a diferença, onde a criança não tenha vergonha de dizer de onde vem, onde ela que seja valorizada”.


Há um traço que une, no entanto, as políticas em Porto Alegre e as que começam a ser construídas em Manaus: a proposta é de atendimento diferenciado às comunidades pelo fato de serem indígenas. Não se questiona, a princípio, se os grupos têm terras demarcadas ou se são migrantes. Em Porto Alegre, os Kaingang que vivem no Morro do Osso têm escola e professor indígena, apesar de ainda disputarem judicialmente o direito de viver ali.


Em Manaus, o atendimento ainda não começou, mas 12 professores indígenas foram contratados pela Secretaria Municipal de Educação. Com a medida, a cidade abre espaço, nas políticas de educação, para as comunidades indígenas que não são originárias dali e não têm terras demarcadas. No entanto, as aulas em algumas comunidades não começaram ainda porque não há escolas construídas. A Semed informa que duas escolas sairão ainda em 2007 e que o primeiro trabalho dos professores será refazer um censo para identificar o tamanho da demanda – no primeiro estudo feito, foram identificadas 1,5 mil crianças indígenas freqüentando escolas da cidade. Nas comunidades que já são atendidas por escolas rurais, mas que não trabalham com a especificidade indígena, professores indígenas e rurais deverão trabalhar juntos por algum tempo.


Migrantes e população dispersa
Em São Paulo, no entanto, a orientação da Secretaria de Educação é de que as populações sem terra não podem receber o mesmo tipo de políticas públicas daquelas que têm terra demarcada. “A leitura que se faz da legislação federal é que terra e língua determinam povo”, explica a responsável para política educacional para indígenas no estado, Deusdith Velloso, coordenadora do Núcleo de Educação Indígena (NEI). “Os Pankararu são desaldeados, mesmo estando no conjunto habitacional, porque não têm organização de aldeia, não têm cacique, terra, língua”. Deusdith afirma que seria possível, no entanto, uma escola pública com projeto pedagógico voltado para os alunos indígenas, desde que solicitada por uma “reivindicação organizada”. E como, apesar de ter um representante no Conselho de Educação da cidade, propostas desse tipo ainda não foram apresentadas, a Secretaria de Educação não planeja criar políticas específicas para os povos.


Maria das Dores do Prado, a Dora , da coordenação da ONG SOS Pankararu, explica que a reivindicação de seu povo – que perdeu o idioma original durante os séculos de contato com os não índios – é um centro cultural onde as crianças possam ficar após a escola, quando os pais saem para trabalhar. “Se o governo quisesse, negociaria um espaço dentro do Real Parque para um centro cultural Pankararu. Sem isso, as crianças perdem porque, ao invés de saírem para a escola e depois voltarem, terem pintura, artesanato, religião, elas não têm nada para fazer”, questiona.


Experiência Terena
Em Campo Grande, a escola no loteamento Marçal de Souza foi criada em 1999 para atender a comunidade da região. Ampliado em 2003 e pintado de azul, o prédio tem gravado nas paredes símbolos Terenas para o masculino e o feminino, e quadros com imagens dos povos. As sete salas da escola atendem, oficialmente, a 40% de alunos indígenas. “A escola não pode ser puramente indígena porque os que se identificam como Terena são 40% dos alunos, mas é referência porque é a única que atende diretamente a uma aldeia urbana na cidade”, contextualiza a diretora da escola, Lucimar Trindade. Apesar de trabalhar com o dado oficial, a diretora avalia que, pelas características físicas dos alunos, a porcentagem real de Terena deve ser mais alta. “Não sei se se sentiriam desvalorizados, ou se é porque não têm registro na Funai”, pondera.


Como política específica, a escola oferece aulas do idioma Terena, de artesanato com sementes e de danças. As atividades duram quatro horas por semana, fora do horário regular dos estudantes, e contam com professores da comunidade contratados pelo município. Segundo a diretora, os temas indígenas são trabalhados com todos os alunos principalmente em abril, no Dia do Índio, quando a escola realiza uma feira. “Em 2006, trabalhamos sobre as nove etnias do estado e a contribuição delas para a sociedade – caça, flecha, artesanato, tipo de língua, maquetes do tipo de moradia”, conta.


Já a aldeia Água Bonita vive uma situação completamente diferente. Lideranças contam 196 crianças de 0 a 12 anos que vivem na localidade, ainda sem escola específica.


Escolas diferenciadas
As três terras Guarani na cidade de São Paulo têm escolas – estaduais e municipais – e professores indígenas, e seis deles participam do curso na USP. Poty Poran é professora na escola dos Guarani do Jaraguá e é aluna do curso de formação superior para professores para 1a. a 4a. séries, realizado pela Secretaria Estadual de Educação em parceria com a Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP).


Poty conta que, depois de muita insistência das lideranças “mostrando que tinha indígenas na cidade”, o Estado fez uma pesquisa sobre aquela demanda. “Chegaram à conclusão de que a aldeia do Jaraguá era um modelo, porque a maioria das pessoas tinha até a sétima série”. Mas a comunidade não considerou isso motivo de orgulho. “A gente não se considerava modelo porque uma geração inteira já não falava Guarani. Minha geração nasceu falando português. A gente começou a reivindicar escola como caminho para resgatar a língua e a cultura”, avalia a neta de seu Joaquim, chefe do primeiro grupo familiar Guarani que chegou ao Jaraguá.


A primeira turma da escola estadual do Jaraguá, com 24 alunos, começou em 2001. Aos 18 anos, com ensino médio concluído, Poty passou a dar aulas. “Nem passava pela minha cabeça ser professora. Logo percebi que só o conhecimento de estudante não me capacitava para dar aulas”. Ela conta que fez o cursinho pré-vestibular oferecido pelos alunos da Escola Politécnica da USP, prestou vestibular para a USP e para a PUC (Pontifícia Universidade Católica).


Passou na PUC e, com ajuda do Projeto Pindorama, estuda pedagogia. O Pindorama é uma iniciativa da Universidade, da Pastoral Indigenista de São Paulo, da Associação Indígena SOS Pankararu e de lideranças indígenas da cidade que, desde 2002, já ofereceu bolsas de estudos a 74 alunos que conseguiram passar pelo vestibular da Universidade. No mesmo ano de 2002, Poty começou o curso de magistério indígena para o povo Guarani, promovido pela Secretaria Estadual de Educação.


A formação de professores em cursos modulares, divididos por povos e quando eles já atuam nas escolas, ocorre em outros lugares do país. Em Manaus, a proposta também é de que a formação dos professores e a construção dos projetos pedagógicos ocorram “no exercício”. “Isto funciona se for feito na perspectiva de construir a escola com o indígena e não para ele. Vai ser uma construção. Tempo e diálogo dirão se funciona”, avalia Leonízia Santiago, do Núcleo de Educação Escolar Indígena de Manaus, que em fevereiro deste ano aprovou verba para a contratação de 12 professores indígenas, indicados pelas comunidades.


Idioma guarani
Hoje, a escola das três aldeias de São Paulo – assim como no Rio Grande do Sul – alfabetizam as crianças em Guarani, idioma que as crianças ouvem em casa e que, por decisão da comunidade e com o incentivo da escola, voltou a ser valorizado. A educação bilíngüe – no idioma indígena e em português – é uma das conquistas dos povos indígenas desde a nova Lei de Diretrizes e Bases (LDB), de 1996.


Sobretudo quando aprendem a falar em casa um idioma que não é o português, as crianças indígenas que vão para escolas regulares têm dificuldade de alfabetização, pois têm que aprender códigos de um idioma que não conhecem. Esta situação sempre contribuiu para aumentar o preconceito em relação a elas, o que dificultava ainda mais a aprendizagem e a convivência na escola.


A situação é semelhante quando as escolas são em aldeias, mas os professores não são indígenas. É o que acontecia com os Guarani na aldeia Tenonde Porã, em Parelheiros, São Paulo. Construída pela prefeitura, a escola foi assumida pelo Estado em 1997. Sem a exigência de currículo específico, passou a ter professores que não eram Guarani. “Só a última aula era de língua e cultura Guarani”, conta Jera Guarani, hoje professora da escola. “Por isso, teve movimento forte das lideranças para professor indígena. Elas acharam que era muito tempo para as crianças ficarem falando numa língua que não era delas. Mesmo que elas precisem aprender o português, precisava trabalhar a cultura do branco na nossa forma”, afirma, usando um argumento constante entre os Guarani – em São Paulo ou em Porto Alegre. “A gente não quer formar produtores, nem gente para trabalhar e juntar dinheiro. Queremos educação para as crianças conhecerem a própria cultura e para conhecerem a sociedade envolvente, saber de seus direitos e deveres e poderem defender”, define Jera.


“Ao exigir professores indígenas, as comunidades impedem que o professor branco destacado pela prefeitura vá alfabetizar. Tem toda uma relação de poder dentro disso. É uma forma de garantir salários, de ter gente dentro dos quadros de funcionários do município. E é uma forma de valorizar a cultura deles também. Aos poucos, no jogo de forças, vão mostrando que sua língua tem valor”, avalia Iara Bonin, doutora em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). 


 








* O projeto que deu origem a este trabalho foi ganhador das Bolsas AVINA de Investigação Jornalística. A Fundação AVINA não assume responsabilidade pelos conceitos, opiniões e outros aspectos de seu conteúdo


 


 
Fonte: Agência Repórter Brasil
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