Os casos João Hélio e Galdino Pataxó e a barbárie midiática
Jorge Vieira[1]
Um dos primeiros ensinamentos que o estudante de comunicação aprende nos manuais é sobre o papel que a mídia exerce, sua importância na formação da sociedade, o direito da população em ter uma informação de qualidade, independente de raça, credo religioso e situação econômica e o respeito aos direitos fundamentais da pessoa. Esses direitos estão escritos nas constituições de países como os Estados Unidos, França e Inglaterra. Eles estão consagrados na Declaração Universal dos Direitos Humanos e garantidos na Constituição brasileira, promulgada em outubro de 1988.
Nos últimos dias o país se encontra chocado e atônito diante do bárbaro assassinato do menino João Hélio, de 6 anos, praticado por cinco jovens, sendo que um deles é menor, segundo a legislação brasileira vigente. Aliás, como este texto está sendo escrito intencionalmente depois dos festejos carnavalescos, percebe-se que a comoção já desapareceu da cabeça e do coração da maioria da população (sob efeito de goles de cerveja, danças e ritmos), inclusive, também, da pauta midiática.
O fato merece uma profunda análise, sem o calor e agitação emocional próprios de uma situação como essa. Até porque, basta dar uma olhada para trás, que se percebe que outros fatos recentes tiveram o mesmo enfoque da mídia e o mesmo comportamento da maioria da população. Vale a pena lembrar, por exemplo, a queda da barreira da construção do metrô da Marginal Pinheiros, em São Paulo, onde sete pessoas morreram aterradas. Outros dois casos que tiveram uma grande repercussão nacional foram os acidentes que ocorreram com o Boeing 737 da Gol, no estado do Mato Grosso, onde morreram quase duas centenas de pessoas e o ocorrido há 10 anos com o Fokker 100 da TAM, em São Paulo, onde morreram 99 pessoas.
Entre outros fatos bárbaros, pode-se relatar o assassinato dos pais de Suzane von Richthofen, praticado por ela e os irmãos Cravinhos e, também, do casal de jovens namorados que foram mortos, em São Paulo. Entre os culpados deste último caso, estava um menor, denominado de Champinha. Poderíamos lembrar ainda as chacinas ocorridas na Praça da Sé, contra os moradores de rua.
Mas, numa tentativa de descentralizar o local dos fatos, pode-se relatar o caso dos três fiscais e o motorista do Ministério do Trabalho, em Unaí, e o da médica Maria Cristina, da Previdência, em Governador Valadares, ambos no estado de Minas Gerais.
Entre muitas outras notícias veiculadas diariamente nos meios de comunicação, principalmente a televisão, destaca-se o crime hediondo praticado contra o líder indígena Galdino Pataxó Hã-Hã-Hãe, 44 anos, da área Caramuru/Paraguassu, sul da Bahia, que se encontrava em Brasília, tratando da demarcação de sua terra. O fato ocorreu dois dias depois das comemorações do Dia do Índio, em abril de 1997. Ao voltar para a pensão onde estava hospedado, perdeu-se nas ruas daquela capital e, cansado, sentou-se num banco de parada de ônibus, ali adormecendo. Às 5 horas da manhã, acordou ardendo numa grande labareda de fogo. Um grupo de cinco jovens de classe média alta, entre eles um menor de idade, residentes no Plano Piloto da Capital Federal, parou o veículo na avenida W/2 Sul e, enquanto um manteve-se ao volante, os outros quatro dirigiram-se até a avenida W/3 Sul, local onde se encontrava a vítima. Logo após jogar combustível, atearam fogo no corpo.
Os criminosos foram presos e confessaram o ato monstruoso. Aí estupefação: os jovens disseram que “queriam apenas se divertir” e “pensavam tratar-se de um mendigo, não de um índio”, o homem a quem incendiaram.
Do ponto de vista da comunicação, pode-se levantar uma questão de fundo: por quê será que a mídia só veicula notícias da região Sudeste, leia-se as cidades do Rio de Janeiro, São Paulo e, às vezes, Belo Horizonte?
Mas, além disso, voltando aos casos do menino João Hélio e o do índio Galdino Pataxó, que são o objeto central dessa reflexão, com um olhar mais atento, chama-nos a atenção o enfoque dado pela mídia, considerando algumas semelhanças no que se refere à barbárie dos fatos, de como foram praticados pelos respectivos atores e a fragilidade das vítimas. Por outro lado, também é motivo de reflexão o desdobramento político dado pelos meios de comunicação.
O que há de semelhança? Primeiro, a forma bárbara como as vítimas foram mortas. Por mais frio que um ser humano possa ser, não conseguirá se manter distante dos acontecimentos. O menino, arrastado ao longo de mais de 7 km e o índio queimado vivo como uma tocha acesa! Os dois, indefesos: um preso ao cinto de segurança do carro e o outro, dormindo num banco da praça. Nas duas situações, o sofrimento das vítimas não sensibilizou seus algozes!
Esta realidade desperta, antes de qualquer análise jornalística, a necessidade de identificar a situação social, política, econômica e étnica das duas vítimas e de seus respectivos assassinos. De antemão é importante deixar claro que, os dois casos, assim como qualquer outro ato violento, merecem o repúdio e veemente repugnância de qualquer ser humano.
Entretanto, por ironia histórica, as vítimas eram de classes sociais e origem étnica diferentes: o João Hélio, de classe média e cor branca; o Galdino, pobre e indígena. Politicamente, o primeiro inofensivo ao sistema, enquanto o segundo se encontrava lutando pela demarcação de sua terra e tinha como inimigos os produtores de cacau e o senador baiano, Antônio Carlos Magalhães, invasores de seu território tradicional.
As diferenças também acontecem com os atores dos referidos crimes. Os do João Hélio são pobres, moradores de favela e quase todos negros. Os do índio Galdino, filhos de pais de classe média-alta, inclusive membros do poder judiciário brasiliense, educados nos melhores colégios da capital federal, moradores de zonas urbanas com bem-estar social avançado e todos brancos. Um detalhe relevante: nos dois grupos um dos integrantes era menor de idade!
E onde se encontram as diferenças na cobertura jornalística da grande mídia? Primeiro, o caso João Hélio, como é do conhecimento de todos, tomou uma repercussão e conseguiu provocar uma comoção nacional. Em cada esquina o tema estava na boca das pessoas, pelo menos durante uns quinze dias. O caso Galdino, pelo contrário, quase que não era noticiado pela grande mídia. Se não fossem as entidades indigenistas o caso não passaria de uma nota de roda-pé nos jornais locais.
Ora, pelo que se observa nas matérias jornalísticas, colunas e comentários da imprensa nacional, ao contrário do caso João Hélio, em nenhum momento o caso Galdino suscitou a discussão de pena de morte, diminuição da maioridade penal e coisas semelhantes. Será que a atrocidade de um é diferente do outro caso? E o menor de classe alta, não cometeu a mesma barbárie? E porque a mídia não levantou o debate de mudança da legislação? O exemplo mais cabal dessa comoção nacional foi o comentário apresentado pela Miriam Leitão, Rede Globo, defendendo a mudança na legislação quanto à diminuição da idade penal e insinuando a pena de morte.
O porquê da ação militante dos meios de comunicação no caso João Hélio e omissão jornalística no caso Galdino, é algo intrigante que suscita uma profunda análise quanto ao papel dos meios de comunicação como formadores de opinião. Que sociedade está por trás da linguagem dos comunicadores? Não seria o momento dos comunicadores fazerem uma auto-crítica quanto ao conteúdo veiculado, a exemplo do individualismo exacerbado, personalismo narcisista, concentração de renda nas mãos de uns poucos, exploração dos trabalhadores, promoção do capital privado, destruição da escola e saúde públicas, venda da riqueza nacional para o capital internacional? Por quê escamoteiam a realidade social, política e econômica geradora das desigualdades sociais? Por quê tratam com desdém os pequenos, pobres, a mulher, o negro e o índio e com comoção aos ricos? O que está em jogo nesse posicionamento parcial e equivocado da mídia?
A barbárie dos assassinos é promovida 24 horas pela barbárie midiática, principalmente quando à maioria da população é negado o acesso aos bens necessários a uma vida digna e à cidadania. Da mesma forma, nos condomínios fechados formam-se concepções individualistas e de segregação social, ou seja, as pessoas não são formadas para pensarem num projeto de sociedade includente e solidário.