Kurussu Ambá – um mês de lutas, sofrimento e esperança
Início de mais um ano. Para a maioria dos quase quarenta mil Kaiowá Guarani do Mato Grosso do Sul é também o momento de reunir forças e esperança para continuar o sonho e a luta por seus territórios tradicionais. Sair do confinamento, da prisão, da opressão. Caminhar em direção à liberdade, ao teko (jeito de viver Guarani), à utopia da terra Sem Males.
É o que uma pequena comunidade na diáspora (dispersa em várias aldeias), expulsa de Kurussu Ambá, iniciou naquele dia chuvoso, 4 de janeiro. As famílias reuniram seus poucos pertences, enrolaram na esperança e partiram. A chuva era qual benção acompanhando seus passos, sem impedi-los. Chegaram ao seu tekohá, confiantes. Não tiveram maiores dificuldades. Conseguiram se entender com o gerente que estava na sede da fazenda Madama. Parecia até compreensivo e chegou a reconhecer de que estavam dentro do seu direito. Suas lideranças, especialmente as religiosas, mostravam muita disposição acreditando que Tupã e os espíritos guerreiros e da paz os protegeriam em toda essa volta ao seu território tradicional.
Início da violência, armadilha, prisão e assassinato
Além de começar a construir barracos, era também preciso providenciar a sobrevivência no dia a dia. Por isso um pequeno grupo partiu em busca de alimentos na aldeia Taquaperi, donde saíram. Na volta, já de madrugada sofreram o primeiro ataque à bala e o seqüestro de um menino de quatro anos. Depois de alguns dias se soube que os fazendeiros o levaram e deixaram na cidade de Amambaí. Apesar da intimidação e preocupação do grupo com a vida do menino, continuaram a reconstrução de sua vida em Kurussu Ambá.- procurar material para construir os barracos, providenciar alimentos, comunicar-se com os parentes e amigos, através de um celular. Permaneceram em diálogo com a Funai, tiveram conversas com fazendeiros e seus trabalhadores…Tudo parecia caminhar para a consolidação e normalização. O gerente da fazendo chegou a lhes fazer a oferta que parecia generosa e sincera de utilizarem o trator para suas necessidades mais prementes na construção do barraco e busca de alimentos. Foi nessa armadilha, que no dia 8, foram presos e algemados quatro lideranças, inclusive uma mulher, quando foram com o trator para a aldeia buscar alimentos. Juntamente com mais integrantes do grupo, foram todos levados para o presídio em Amambaí. As mulheres e crianças foram liberadas depois de várias horas. Os quatro líderes do grupo continuam até hoje na prisão.
Com a armadilha e prisão dos líderes, os fazendeiros avaliaram, que o passo seguinte, a expulsão, seria fácil. Mas, de toda forma, seria preciso uma ação enérgica e eficaz na retirada dos índios. Isso não seria difícil, pois era apenas preciso contato com a “empresa de segurança” (milícia armada a serviço dos fazendeiros) e engrossar o grupo com as forças próprias dos fazendeiros (camionetes, ônibus, caminhão, armas…) e tudo daria certo. E tudo foi minimamente planejado para o amanhecer do dia 9 de fevereiro. Durante a noite ficaram observando qualquer movimentação no acampamento. No amanhecer, chegaram em mais de 12 carros, disparando inúmeros tiros em direção aos barracos onde os índios se encontravam. Formado o alvoroço, a questão era garantir que os índios rapidamente entrassem no ônibus e caminhão para serem retirados do local. Um dos fazendeiros reconheceu Xuretê, que trabalhara para ele, e que muito bem conhecia a região e as pessoas da região, pois ali morou por muito tempo. A queima roupa disparou sua arma contra ela, assassinando-a no local. Mais tiros, índios feridos, alguns fugindo e os demais foram sendo carregados no ônibus, da firma Sperafico, ali trazido com tal finalidade. Inclusive o corpo de Xuretê e o índio Valdecir, ferido, foram levados ao ônibus e deixados na beira da estrada, a MS 289, próximo à aldeia Taquaperi, município de Coronel Sapucaia.
O enterro, o acampamento e a solidariedade
No mesmo dia do covarde ataque, assassinato e despejo, dia 9 de janeiro, os representantes do Ministério Público Federal estiveram na área, encontrando no local do assassinato inúmeros cartuchos disparados. Logo foi aberto inquérito pela polícia federal.
Na imprensa passou a circular a informação de mais uma fazenda “invadida” pelos índios Guarani no Mato Grosso do Sul. Era a versão dos fazendeiros e da polícia. Depois foi anunciado a prisão de indígenas por “furto e estelionato qualificado”. Após o ataque das milícias armadas e pistoleiros, foi noticiado que houve um confronto entre índios invasores e trabalhadores das fazendas. Cinismo de quem quer transformar uma mentira em verdade ou acoberta uma crueldade covarde e genocida.
Porém em nível nacional e internacional começaram as manifestações de protesto e indignação por mais essa violência e brutal agressão aos direitos de uma comunidade indígena. Da Austrália, da Inglaterra e de diferentes partes do mundo e do Brasil surgiram as manifestações de repúdio à violência e solidariedade à comunidade de Kurussu Ambá.
A solidariedade mais importante foi a dos próprios Kaiowá Guarani. De diversas aldeias eles foram até o local do acampamento e do velório de Xuretê levar seu apoio à luta daquela comunidade e expressar sua repulsa veemente contra mais esse ato bárbaro, de agressão e morte de sua gente. A Comissão de Direitos Kaiowá Guarani, juntamente com a Comissão de professores Kaiowá Guarani e os indígenas acadêmicos estudando em Dourados organizaram uma viagem de solidariedade ao local e uma manifestação pública em Dourados, dia 12.
Os movimentos sociais, através da Coordenação dos Movimentos Sociais do Mato Grosso do Sul, também se manifestaram através de nota pública e organizaram uma caravana de solidariedade que esteve no acampamento dia 20. Ali viram, ouviram e sentiram o sofrimento por que passou e está passando essa comunidade indígena. Se comprometeram a apoiar sua luta de todas as formas, política e de apoio material nesse momento difícil. Por isso desencadearam uma campanha de solidariedade, pedindo o envio de cartas ao presidente da República, Ministro da Justiça e Presidente da Funai, exigindo medidas imediatas de segurança para a comunidade e regularização de sua terra, bem como apuração e punição dos responsáveis. Também foram promovidos gestos de solidariedade com manifestações nas ruas e praças da cidade. Essa ação teve até o apoio inédito de uma escola de Samba, “Catedráticos do Samba”, cujo enredo versa sobre a questão indígena.
Pressa e lentidão da justiça – dois pesos, duas medidas!
Causa estranheza o fato de os índios estarem presos enquanto os mandantes e assassinos de Xuretê estarem tranqüilamente circulando na região. Enquanto o Ministério Público Estadual ofereceu denúncia contra os índios presos, em tempo recorde, sete dias, a ação pedindo transferência da ação para nível federal, pois trata-se de fato envolvendo luta de terra, ainda não foi julgada. Além disso, ações requerendo o direito de sepultamento de Xuretê no local do assassinato em Kurussu Ambá foram julgadas contrário aos índios nas duas instâncias ( Ponta Porá e São Paulo), obrigando seu sepultamento provisório, em Taquaperi, próximo da casa donde partira.
Quando se completa um mês de mais uma retomada de terra tradicional Kaiowá Guarani, o que se tem a lembrar é a heróica luta de uma comunidade e brutalidade com que continuam sendo tratados os índios, além de uma estranha atuação da justiça.
Conforme eles têm expressado em diversas manifestações “mais esse sangue derramado não será em vão. Xuretê, mais dia ou menos dia vai ser sepultada em Kurussu Ambá.”
Egon Heck