A Amazônia que mudou quatro décadas depois
Entre o primeiro e o segundo semestre desse ano de 1966 “cobri”, testemunhei e relatei dois acontecimentos que mudariam os rumos da Amazônia. Um deles, em junho, foi o Simpósio Internacional sobre a Biota Amazônia, em comemoração ao centenário da mais antiga instituição de pesquisa científica da região, o Museu Paraense Emílio Goeldi, evento reprisado agora, 40 anos depois, pelo Museu e a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC). O segundo, em outubro, foi a Iª (e única, como Momo) RIDA (Reunião de Investidores para o Desenvolvimento da Amazônia), que resultaria na criação da nova política de incentivos fiscais, a ser executada por dois novos órgãos públicos: a Sudam (Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia) e o Basa (Banco da Amazônia). Não por acaso, assim, as teias da minha vida se entrelaçaram aos fios – freqüentemente invisíveis a olho nu – da história da Amazônia, no seu mais recente e talvez derradeiro capítulo. Alguns batizaram esse capítulo, com apenas meio século de duração, de “a integração da Amazônia”, procurando defini-lo através de paralelos com a “corrida” ao Oeste americano, no século XIX. Eu prefiro chamá-lo de “conquista e submissão”, comparando-o à conquista – e submissão, à força – da África e da Ásia pelo colonizador europeu. A Amazônia, nessa transformação sem volta, é, antes de tudo, colônia. Não há mais exata conceituação para um lugar que é ocupado de fora para dentro, impositivamente. O conquistador chega com a régua e o compasso na mão, trazendo consigo um mundo, o seu mundo, para superpor ao mundo no qual se instala. A aculturação do colonizado não é uma faculdade: é uma imposição. A região é conquistada para ser transformada, para servir aos propósitos do colonizador. A Amazônia, uma particularidade e uma singularidade neste planeta, tem que deixar de ser Amazônia para ser “integrada”, incorporada, absorvida. O inferno verde precisa ser uma extensão do outland. Para se tornar moderna, contemporânea, precisa aceitar sua condição subordinada, de extensão da metrópole. Ainda que, num crescimento de rabo de cavalo, para baixo, ameace se tornar não um deserto vermelho, como previam os americanos Robert Goodland e Howard Irvin, na década de 70, mas uma savana africana. A Amazônia terá sido poupada por dois séculos para resultar na mesma selvageria destruidora da África e da Ásia. Em 1966 a Amazônia já acumulava muita história, mas tudo estava ainda por fazer. Apenas uma fração dos seus primeiros ocupantes, que nela se instalaram sete mil, oito mil ou talvez mais de 10 mil anos antes, conseguira sobreviver à sangrenta fixação do europeu à terra. Mas havia todo um universo de conhecimento a descobrir ou recuperar sobre a harmonia entre o homem e a natureza, a página do Gênesis que Deus deixara para o homem escrever, na observação que Euclides da Cunha fez no alvorecer do século XX, impressionado com aquele mundo ainda em formação, geologicamente imaturo, materialmente inconsolidado. Essa página em branco já tinha algumas garatujas, mas eram pequenas, feitas a lápis. Nada que a boa assepsia de uma borracha não eliminasse. Reino da luz, da água e da floresta, a desafiar os cânones do saber criados com base em outras paisagens, a Amazônia é – e é cada vez menos – o território ideal para um derradeiro experimento do homem, impenitente e impertinente homo agricola: o estabelecimento de uma civilização florestal, baseada no uso inteligente do bem mais nobre desse bioma, centrado na massa vegetal, fonte da maior biodiversidade da Terra. No entanto, eis que já ingressamos nos anais da história humana como o povo que mais destruiu florestas em todos os tempos. Em menos de meio século, mais de 700 mil quilômetros quadrados de floresta nativa postos abaixo. A velocidade e a amplitude dessa destruição impressionam. Em 1976 o satélite Skylab “fotografou” o maior incêndio registrado pela máquina de informação, provocando comoção internacional. O fogaréu de quase 10 mil hectares fora provocado pela Volkswagen, que se achava no sul do Pará produzindo não veículo automotor, sua especialidade exclusiva até então, mas boi, sua “desespecialidade”, para usar uma expressão neológica, que Lewis Carrol assinaria com embevecimento, dada sua aptidão para a linguagem surreal, a única que cabe à reprodução da insensatez padrão na conquista amazônica. Naquele momento, toda alteração das condições naturais da região ainda estava abaixo de 1% da sua superfície. Por causa do impacto da imagem do satélite americano, flagrando uma das empresas mais poderosas e vanguardistas de então, com a mão na mais primitiva tecnologia do homo sapiens, o fogo, a queimar a página da criação divina delegada ao homem, a Amazônia foi a primeira região a ser integralmente coberta por imagem de satélite, cinco anos depois do investimento pioneiro no Radam (Radar da Amazônia), programa de alta tecnologia que substituiria a cartografia convencional, só depois se estendendo ao restante do país. Na mesma Belém daquele já distante 1966, num intervalo de apenas quatro meses, os dois elementos antitéticos se apresentavam para encenar o drama, que freqüentemente degenera na farsa malsã: os “desenvolvimentistas” de um lado e os “conservacionistas” do outro, se me permitem usar conceitos tão pouco heurísticos. Os donos do capital e do poder, exercido diretamente ou através de seus representantes políticos, querendo expandir seus tentáculos sobre o sítio da natureza, conjuminando estratégias e enredos na Iª RIDA. Os representantes do conhecimento, reunidos no encontro acadêmico comemorativo ao centenário do “Goeldi”, empenhados em conciliar o fazer ao saber – e tentar aumentar o conteúdo de verdade desse saber. Os primeiros à frente, derrubando mata, levantando cidades, abrindo estradas, edificando hidrelétricas, semeando cultivos agrícolas, abrindo buracos nas entranhas da terra fecunda de minérios. Os segundos, ora ouvindo estrelas, ora juntando os cacos fragmentados, ora – e sempre – a lamentar a perda da oportunidade de conciliar o homem com a natureza na fronteira. Esta não é a terra nula e não é o espaço vazio dos militares e da sua geopolítica. Esta terra tem uma história densa. Para usar uma poesia tão significativa desde o título, do americano naturalizado inglês T. S. Elliot, esta é uma terra arrasada (ou devastada). É a fronteira amansada pelo bandido. Essa política de terra arrasada veio em círculos, em novos círculos dantescos, em vários momentos. Numa sucessão muito rica de uma história muito complicada, é assim a história da Amazônia, eventualmente tocando na história do Brasil. Nós, para todos os efeitos, até para os efeitos políticos, devíamos produzir a nossa história como uma história paralela de um país vizinho ao Brasil. E se de um lado nós temos a história da natureza, como ela é, de outro temos a história da cultura de quem viu a Amazônia a partir de expectativas, preconceitos e verdades pré-estabelecidas, raramente conseguindo ver a Amazônia como ela é. Imediatamente se lhe atribuem valores e muitas vezes os valores nada têm a ver com a constituição física e mesmo com a tradição histórica da região: o Eldorado, a Terra das Amazonas, o Inferno Verde, o Celeiro do Mundo, o Deserto Vermelho. Se nós não conseguimos ver essa história real, a natureza como ela é, nós vamos sempre impor um padrão que temos na cabeça em relação à Amazônia. A aproximação do real resultará sempre em distorção e colonialismo, em destruição. No romance Quarup, de Antônio Calado, há um capítulo sobre os índios. É um momento em que se confrontam os dois maiores sertanistas que já houve no Brasil, o Chico Meireles, que no romance aparece com o nome literário de Chico Fontoura, e Orlando Vilas Boas, que aparece como Vila Verde. Eles começam a discutir sobre o que fazer diante dessa sucessão de destruições fantásticas, destruições impressionantes, destruições ecológicas, antropológicas, sociológicas, históricas. Chico Meireles diz mais ou menos o seguinte: Só tem uma saída. Pegar os índios colocar em num avião da FAB e descer no Rio de Janeiro – que era a capital federal de então – e flechar o máximo de gente que puder até morrer o último guerreiro. Mas ele morre como guerreiro, não morre de sarampo, febre, diarréia. Pode um guerreiro morrer de diarréia? É a solução do desespero, mas é a solução induzida pela realidade. Quando nós olhamos o futuro, muitas vezes temos que olhar para trás – “nós, civilizados”, entre aspas. Porque a história é o nosso maior patrimônio e nós pagamos muito caro pela história de vida. Eu gostaria de pensar o futuro sempre pensando em algumas situações do passado. Não vou remontar muito e nem exibir transparências para fazer uma reedição mais graciosa. Mas eu gostaria de remontar a um ponto traumático da nossa vida, do qual sempre iremos falar, que é a Cabanagem. Cinco anos atrás, David Cleary divulgou documentos que encontrou no Foreign Office, em Londres, publicados pelo Arquivo Público de Belém. No meio dos documentos reunidos, absolutamente inéditos, havia uma carta do embaixador da Inglaterra no Rio de Janeiro para Lorde Palmerston, que era então, em 1835, o ministro das relações exteriores da mais poderosa nação do planeta. Nessa carta, o embaixador informava que fora chamado para um encontro sigiloso com o paulista (sempre os paulistas!) Diogo Antônio Feijó, que governava o Brasil como regente em nome de D. Pedro II, ainda criança. Nessa reunião, Feijó informou que o nascente Império brasileiro enfrentava duas rebeliões, nos dois extremos do Brasil. Uma em São Pedro da Aldeia – o nosso atual Rio Grande do Sul – e outra na Amazônia, o Grão Pará e Rio Negro.O governo não podia reprimir os dois movimentos ao mesmo tempo. Por isso, decidira convocar não apenas o embaixador da Inglaterra, mas também os representantes da França e – pasmem – de Portugal, país do qual o Brasil ainda estava se libertando. Feijó sugeriu ao embaixador que reunisse mil homens da mais temida esquadra e invadisse Belém, matando quantos cabanos precisar, depois entregando a província “pacificada” ao Império, que ignoraria a invasão e as mortes. Perplexo, o embaixador narrou o encontro e sugeriu a Palmerston que não acatasse a sugestão. Lembrou-lhe que a constituição brasileira não permitia a presença de tropa estrangeira em território nacional. Só com a autorização do congresso tropas estrangeiras podiam entrar no país. Que isso seria uma guerra e que não valia a pena à Inglaterra. A Inglaterra tinha que respeitar a soberania brasileira, mesmo com a autorização de Feijó, dada, porém, secretamente. Nessa época a armada inglesa deslocara de Barbados para Belém uma expedição para averiguar ataque e saque praticado contra um navio mercantil inglês na costa do Pará. Toda a tripulação foi assassinada, exceto um sobrevivente, e a carga roubada. O comandante da expedição, depois de inspecionar Belém, ocupada pelos rebeldes, verificou que com apenas 150 fuzileiros poderia acabar com aquela rebelião. Não precisaria nem dos mil homens autorizados Essa documentação obriga a uma profunda revisão histórica desse período. Por que o Feijó fez essa proposta tão monstruosa, renunciando à soberania nacional? Por que, tendo que optar, optou pela revolta farroupilha, no Sul, e entregou a revolta do Norte à repressão estrangeira? O império negociou durante cinco anos, para que São Pedro da Aldeia não tentasse se separar do Brasil e formar um novo país. Mas nós, da Amazônia, do distante Grão Pará, que não tínhamos nenhuma relação com a capital nacional, que não éramos exatamente um igual, nós tínhamos que ser reprimidos porque éramos selvagens. Selvagens que não tinham história, que não podiam ser respeitados, nem naquela época e nem hoje. Não interessava se ingleses, franceses e portugueses matassem os bugres da Amazônia, talvez ainda dominados pelos colonizadores portugueses. Eles não eram iguais. Eram, na verdade, desconhecidos, integrantes de um Brasil tardio, atrasado, inferior. O Estado nacional lavava as mãos, queria manter a integridade nacional como um lastro para o projeto da hegemonia de um poder, de um colonialismo endógeno. Os estrangeiros fariam o serviço E até hoje, na maioria dos palanques, os líderes “neo-cabanos” de hoje dizem que os estrangeiros, sobretudo, a Inglaterra, não tomaram conta da Amazônia porque os cabanos resistiram, porque o presidente cabano Eduardo Angelim resistiu, porque ele recusou as armas que os ingleses lhe teriam oferecido para proclamar a independência da Amazônia. Toda uma mitologia baseada num ouvi dizer de um único testemunho escrito da época, de Domingos Antônio Raiol, autor do livro Motins Políticos, que começou a ser publicado 30 anos depois da Cabanagem. Na verdade, nem Inglaterra e nem França queriam naquela época transformar a Amazônia numa colônia. Era muito mais rentável explorá-la através do Estado nacional brasileiro, do capitão do mato, economizando recursos, investindo menos e extraindo mais, sem o custo da estrutura estatal metropolitana. Da mesma maneira como é por uma razão econômica que hoje se insere o conhecimento tradicional dos índios nos estatutos jurídicos internacionais. Essa é uma lição terrível. Nós, da Amazônia, precisamos nos relacionar com o mundo exterior. Não existe a nossa história sem esse relacionamento. Nós sempre estivemos diante do mundo e só nos afirmaremos face a ele. O que significa jogar no lixo a retórica da geopolítica militar, que tem feito um mal terrível à Amazônia. De outro lado, o Estado nacional nada nos diz. Nós fazemos parte de uma federação, unida por uma abstração, a língua nacional. Mas esse Estado nacional, não tem nada para nos dizer, nem nós a ele. Ele não é permeável a nós, não nos expressa, não nos representa. Ele se impõe a nós coercitivamente, de cima para baixo. Daí a Constituição de 1988 ter sido terrível para os interesses da Amazônia, a tal constituição-cidadão do nosso Ulysses Guimarães, que trabalhou sobre uma cláusula pétrea, inamovível, a organização federativa da república. Por ironia, essa constituinte foi convocada por um nativo híbrido da Amazônia, o maranhense José Sarney, o primeiro presidente civil desde 1964. Com essa cláusula prévia, ele traiu os interesses políticos e jurídicos da sua terra. Nós tivemos um outro momento de ligação espasmódica com o Brasil, na época da borracha. Para explicar nosso insucesso nessa época, inventamos mais uma mitologia, muito simpática e reconfortadora, de que só perdemos o domínio do mercado da borracha porque o inglês Henry Wickham, mais um estrangeiro na nossa vida, contrabandeou as sementes de seringueira lá de Santarém. Levou-as para se adaptarem no Kew Garden, em Londres, e depois foram plantadas no Oriente. Outro estrangeiro, o americano Warren Dean, no primeiro grande livro da história verdadeiramente ecológica do país, demonstrou a falácia: nós permitimos a saída legal das sementes da hevea brasiliensis. Talvez por estarmos convencidos de que Deus é realmente brasileiro e nos manteria com o monopólio. O mundo aprendeu uma lição nesse episódio: não podia depender do Brasil, da Amazônia, da biodiversidade. A Amazônia perdeu, com a borracha, uma guerra ecológica, experimentando o lado negativo de um caleidoscópio que lhe costuma ser favorável. A partir da perda do monopólio de produção e da expressão que nossa produção tinha, até se tornar insignificante no mercado internacional, nós entramos na nossa chamada Idade Média. Tão dominados somos pela mentalidade colonial, que um dos períodos mais ricos da nossa história nós chamamos de Idade Média, idade das trevas. Ninguém então nos dominava e ninguém nos exigia. Tivemos que fazer vários esforços, inclusive, para os capitalistas, o esforço mais dolorido, que é tirar dinheiro do bolso. Nossos capitalistas tiveram que investir nos negócios deles e correr risco, o que constitui a pedra de toque do capitalismo. Por isso, a pedra contrária é a do monopólio, ou do subsídio estatal, que tem sido a constante ao longo da história da Amazônia, desde a época de Pombal. E assim tivemos que dar conta das tarefas, entre as décadas de 20 e 40 do século passado, até que, logo depois do fim da Primeira Guerra Mundial, os Estados Unidos mandaram uma missão econômica, com a qual começava uma nova era na Amazônia. Essa história até hoje permanece nos arquivos estrangeiros, esperando um pesquisador que tenha paciência de ler documento primário sobre essa nova história, que agora é definitiva. Nós não vamos mais nos desligar do mundo. Queiramos ou não. Na década de 20, os Estados Unidos e o mundo começam a discutir para valer a Amazônia – para valer para eles, é claro. Queriam encontrar o caminho real entre os mitos de celeiro do mundo ou inferno verde. Verificaram que a Amazônia é muito diversificada, muito mais complexa do que pensavam. Aos poucos os estrangeiros foram aprendendo muito mais rápido do que nós. Porque eles tinham um projeto e nós não tínhamos. Eles tinham a tecnologia que nós não tínhamos, tecnologia compatível com o projeto que eles conceberam e que foi se adaptando, apesar de muitos erros cometidos, às peculiaridades locais. Começaram a descobrir que a Amazônia é diferente do resto do mundo tropical; que há alguma coisa específica nessa designação de Amazônia, a região que corresponde a mais da metade do território brasileiro e, no continente sul-americano, tem quase o tamanho dos Estados Unidos. No esforço da Segunda Guerra Mundial e no trabalho que se seguiu, da Comissão Mista Militar Brasil-Estados Unidos, eles fizeram o levantamento aerofotogramétrico da calha central do rio Amazonas. Na época se imaginava que havia hidrocarbonetos nessa área, a maior bacia terciária do planeta, de terras muito recentes. Depois, verificaram que tinha petróleo, mas que a tecnologia não era suficiente para extraí-lo. As perfurações em águas profundas e o uso de helicóptero viriam depois. A bacia terciária deixou de ser área prioritária à época. O interesse foi desviado para os espinhaços do Pré-Cambriano, geologicamente mais antigos, no qual estavam as mineralizações. Rapidamente foi iniciada a exploração do manganês do Amapá, a partir da metade da década de 50. Mas nós não chegamos a perceber que aquele manganês constituía uma das melhores jazidas do mundo ocidental, em uma época em que a indústria siderúrgica era toda a base da economia. Faziam-se festas para comemorar a saída, a cada ano, de 800 mil ou um milhão de toneladas de manganês para os Estados Unidos, numa escala tão intensa que, antes do fim da concessão, a Icomi, a empresa formada pela Bethlehem Steel com o empresário mineiro Azevedo Antunes, devolveu as jazidas – ou melhor, os buracos das jazidas. E aí entram os intelectuais. Os intelectuais da época foram para o meio do mato, que é uma coisa não muito comum entre intelectuais. Foram recrutados alguns do sul do país, como Glycon de Paiva. Eles inventaram uma história. De que o manganês do Amapá não tinha preço para ser trazido para o sul do país, ajudando sua industrialização. Não tinha preço para chegar à Bahia, por exemplo. O comércio de cabotagem tornava o frete proibitivo. Muita produção acadêmica passou a mostrar que a matemática era determinante para nós termos que exportar, a preços cada vez menores, o manganês para os Estados Unidos. Quando o teor baixou para 42%, 38%, 36% de manganês contido na rocha, a matemática mudou. E aí, o Amapá exportava crescentemente para a Bahia, para o Sul, e não houve o combate intelectual contrário a isso. A inteligência da esquerda não conseguiu combater com argumentos. Combateu com plataformas políticas e com gritos de urra. Não demonstrou que aquilo era uma manipulação. Esse “detalhe” é muito importante, porque, em geral, os temas amazônicos são debatidos com exuberância em palanque, mas não sobre esquadro e compasso. Deixando a bacia sedimentar para depois e se concentrando nas terras mais antigas, os americanos descobriram Carajás, que é a maior província mineral do planeta. E descobriram saindo muito depois de iniciada a corrida ao minério. Nós tínhamos saído em 1954, com o Projeto Araguaia, que era o maior projeto de mapeamento mineral executado até então. É preciso considerar esse “detalhe”: o projeto internacional para a Amazônia, liderado pelos Estados Unidos, não era único e o Estado não era apenas caudatário, um mero “cão de fila do imperialismo ianque”, como se dizia no jargão da época. O Estado também tinha a sua margem de autonomia, a sua margem de interesses específicos, relacionados ao seu caráter patrimonial, burocrático, da sua própria elite, que costuma ser derivada da elite estrangeira, mas nem sempre. Nos momentos de colisão, nossa elite consegue ser pior do que as elites estrangeiras. O Estado brasileiro chegou à conclusão de que a Amazônia tinha importância, ou viria a ter. Na base orgânica do Estado, agia o pensamento militar, com destaque na Amazônia. Um dos grandes erros que a esquerda cometeu até 1964 (e volta a ele atualmente) foi não dialogar com os militares. Em geral, a esquerda mantinha com os militares uma relação de Tom & Jerry. Eram militares com espada correndo numa direção e a esquerda, sem espada, correndo em outra direção. Não houve um fórum para o debate. Os fóruns, em geral, eram a praça pública e nós, realmente, quebrávamos a cabeça literalmente, no momento do choque. Pois os militares tinham um projeto seu para Amazônia. Sempre tiveram. É uma das bases da weltanschaaung dos militares na base da república. Quando perceberam que os estrangeiros estavam na frente, os militares formularam projetos. Com a democratização de 1945, os militares souberam se ajustar como uma categoria moderna ao estado civil e surgiu a Superintendência do Plano de Valorização Econômica da Amazônia, como um dos elementos da origem do planejamento regional, que começou na Amazônia, apesar de tudo ter passado pelo Nordeste, graças ao brilho de Celso Furtado. O Estado brasileiro se comprometia a aplicar, durante 20 anos, 3% da renda tributária nacional na Amazônia. Os conceitos-chave eram valorizar a Amazônia, conhecer e valorizar a Amazônia. Esse era o jargão. Por quê? Primeiro porque o Estado brasileiro vivia um dos momentos de maior democracia e, por isso, de maior lucidez. Não é mera coincidência a conciliação destes dois termos. Reconheceu a autonomia da região, reconheceu que precisava saber da região, reconheceu que ela não era uma terra vazia. Havia inteligência e desinteligência na Amazônia, mas ambas precisavam ser consideradas. Então, conhecer para valorizar e para utilizar. Em 1956 (há meio século, portanto) o Brasil sediou o congresso internacional de geografia. Um dos roteiros oferecidos aos participantes era na Amazônia. Um grande brasileiro, Lúcio de Castro Soares, escreveu o roteiro da visita, contando também a história da Amazônia naquela época, 1956, dez anos antes da biota amazônica, da criação da Sudam, do Basa. E naquela época, qual era o grande anseio do planejamento regional mais antigo do país? Era que as dificuldades do inferno verde fossem resolvidas pela ciência e a tecnologia. Lúcio era um homem positivista, otimista, que achava que o agente de colonização da Amazônia ia ser o cientista, que herdaria o acervo deixado pelos viajantes estrangeiros, que foram mais longe do que os brasileiros no hinterland, exceto os poucos e honrosos brasileiros, como Alexandre Rodrigues Ferreira e Ferreira Pena. Toda a confiança, toda a esperança da região, era de que ela não deveria mais ficar dominada pelo extrativismo, para não ficar inerte pelo extrativismo dos coronéis de barranco, os donos de rios, como José Júlio de Andrade, no rio Jari, José Porfírio de Miranda, no Xingu, Altevir Leal, no Envira. Tinha que sair desse feudalismo, conforme chegou a ser visto por teóricos marxistas. A ciência e a tecnologia à frente, seria possível conciliar a expansão econômica, incorporação das novas áreas, com a eliminação da Amazônia insalubre, terrível, que assustava os estrangeiros, que foi uma das principais causas de, até o início do século XX, nenhuma grande nação tentar tomar essa região de Portugal e, depois, do nascente império brasileiro. A excursão foi em 1956, quando Juscelino decidia iniciar a construção da Brasília-Acre e da Belém-Brasília. É um momento de ruptura: um mundo vai ficar para trás e outro irá se estabelecer, sem ligação com o passado. Todas as projeções de futuro se fariam em torno de floresta e água. Na floresta havia uma combinação do conhecimento ocidental com o conhecimento das populações tradicionais. Os índios Tupi-Guarani conheciam a kaigapó, a floresta da várzea. Já então manejavam a floresta da várzea e também tinham um conhecimento – porém mais mitológico do que prático, utilitário – sobre a kaaété, que era a floresta de terra firme. Em tupi, ela significa a floresta verdadeira. Os índios tinham a plena consciência de que o grande desconhecido era a kaaété e não a kaigapó, determinada por suas características, pelo domínio da água, domínio que não podia ser contestado. O rio Amazonas chega a descarregar 200 mil metros cúbicos de água por segundo e a cada dia manda para o oceano seis milhões de toneladas de material em suspensão. A verdadeira floresta estava na terra firme, com sua madeira de alta consistência, de grande densidade e, ao mesmo tempo, leve. Porque ali, a floresta verdadeira ia desafiar a nossa capacidade de ver a Amazônia. Todos nós achamos que a Amazônia é o nosso ponto em comum, que é o pressuposto, mas esse pressuposto é falso. Porque raros conseguem ver a Amazônia. É preciso ter lentes especiais para vê-la, sem as quais não se conseguirá vê-la, por mais que se tenha informação cultural, tecnológica e científica. Sempre me lembro de um sobrevôo de helicóptero com técnico da Eletronorte em cima do que viria a ser o reservatório da hidrelétrica de Balbina, no rio Uatumã, no Amazonas, que eu criticava por causa do afogamento da floresta. E o técnico, bem intencionado, honesto dizendo: mas como é que você defende isso? Isso aqui é um latossolo amarelo vagabundo. Sim, e a floresta lá em cima do latossolo, respondi eu, com 40, 50 metros de altura, densidade fantástica? Não conta? Mas é justamente o que conta. Afinal, o que é a hiléia, expressão grega, que inspirou Humboldt para fazer o grande batismo da nossa região? É floresta densa. Este é o desafio: descobrir o coração, a essência, a alma da Amazônia nessa combinação de água e floresta. Que nós teimamos, relutamos, não aceitamos em descobrir até hoje. A Amazônia é uma criação ao mesmo tempo da natureza e da cultura Mas qual cultura? A cultura que procura descobrir e adaptar, ou a cultura que muda, que transforma a paisagem, a expectativa de quem chega como um emigrante, seja o “seu” João da Silva, seja Daniel Ludwig. Quando Ludwig chegou à várzea do rio Amazonas, primeiro e único dos capitalistas dos grandes projetos, a ir para lá, em 1967, o que ele fez? Ele transplantou a técnica da Geórgia e fez uma plantação de arroz irrigado inviável, que faliu completamente. O que fez o “seu” João da Silva quando chegou pela primeira vez à Transamazônica? Desmatou o máximo de floresta que ele pôde ao redor, porque, entre muitas outras coisas, ele ouvia sons, que eram agressivos, que ele não conhecia, dos quais tinha medo. E de lá da floresta densa saía um terrível animal chamado pium, um mosquito com o qual os nativos conviviam sem alarde, mas que provocou febre hemorrágica entre os colonos e muita gente morreu sangrando. Seja o MST, seja a multinacional, eles não entendem o que é Amazônia. E querem fazer que a Amazônia deles seja a Amazônia verdadeira. Seja do assentado pobre, do assentado explorado, que vai destruir o capital dele sem saber que aquilo é capital. Porque nós não conseguimos descobrir a Amazônia. Nós nos recusamos a isso. Nós somos os eternos colonizadores. Mesmo aqueles que moram na região e pensam que são os agentes dos oprimidos, os intelectuais, rastreadores do sentido da história, mas que nela – e nela – não aprendem. O futuro começou irremediavelmente, para nós, em 1973, quando, depois de todas essas preliminares – o levantamento aerofotogramétrico da Comissão Mista Militar Brasil/EUA, o Projeto Radam, o Projeto Araguaia –, já se tinham alvos selecionados na Amazônia. O Estado brasileiro, o mesmo que ofereceu a Amazônia aos franceses, ingleses e portugueses, que criou a SPVEA e o plano de valorização econômica, sem nunca aplicar na região os 3% da receita tributária que a valorizaria,.sem nunca aprovar o seu plano de desenvolvimento, o primeiro plano regional, essa mesmo Estado esqueceu esses “detalhes” e criou a Sudam, com suas terríveis estradas, rasgando a floresta verdadeira, a da terra firme, e entregando-a na pira do sacrifício ao devastador insano, insensível, irracional. Muitos dizem que sou pessimista quando faço esse discurso, que exagero. Remeto os incréus ao texto do II PDA (Plano de Desenvolvimento da Amazônia), que foi produzido na administração imperial do nosso prussiano general Ernesto Geisel. No II PDA, que é um plano qüinqüenal, para o período 1975/79, mas que até hoje é o enunciado mais claro do destino da Amazônia pela ótica de Brasília, esteja lá quem estiver, inclusive o nosso Luiz Inácio Lula da Silva. O ministro japonês Saburo Okita visitou Brasília, em 1971, e foi recebido pelo ministro mais poderoso de então, Delfin Neto, que hoje é do PMDB de São Paulo, conselheiro e, quem sabe, futuro ministro de Lula (ah, os irônicos deuses da história!). Na época, os dois países milagreiros eram o Japão e o Brasil, que estava crescendo a mais de 10% ao ano. O ministro japonês do comércio exterior quis saber o que o Brasil ia fazer para manter aquela taxa de desenvolvimento, que não pode ser sustentada por muito tempo através de instrumentos como o A-5. Delfim lhe respondeu, com pança e rompança, que o Brasil não tinha poupança igual à do Japão, mas contava com a Amazônia, que compensaria a insuficiente poupança nacional agregando produtos novos à economia brasileira, destinados totalmente à exportação, drenando volumes crescentes de dólares às contas do país. Essa era a lógica que inspirava o PDA: o modelo de desenvolvimento da Amazônia é inevitavelmente desequilibrado. Ele gera o caos, uma concentração de renda fantástica, a irracionalidade. Ele é desequilibrado pela própria natureza, em função da necessidade de crescimento rápido. Mas esse desequilíbrio seria corrigido pelo planejamento, um ato de vontade do governo. Daí ser um modelo de desenvolvimento desequilibrado corrigido. O problema é que o modelo tem sido eficiente apenas na criação do desequilíbrio. Já a correção são outros quinhentos. Por isso o Delfim, conselheiro putativo do presidente petista, receitar o crescimento do bolo e só depois o seu fatiamento, o que está sendo feito agora, como presente (ainda que de grego) aos excluídos do baile. Esse desequilíbrio e esse caos são, em certa medida, resultados desejados, sob controle, mas em certos casos, não. Eles geram um monstro. É a relação do Dr. Jeckyll e Mr.Hyde. Imagine-se que o criador sempre irá controlar a criatura, mas isso será possível na Amazônia? O saber fazer poderá se impor ao fazer de qualquer maneira, a qualquer preço, para corrigir depois, compensar depois? Não acredito nessa hipótese. Só se chegará a um destino mais nobre para a Amazônia fazendo o certo desde o início, procurando o mais e o melhor antes de fazer. A saída não é fechar a Amazônia para balanço, mesmo porque esse caminho é fictício: é preciso enfrentar imediatamente os desafios, de frente, com coragem, engenho e arte. O desafio é saber reverter o processo da exploração no sentido do processo do conhecimento e da libertação. Fazer aquilo que Marx fixou como uma utopia. Dizia ele que a ferrovia que os ingleses abriam para conquistar a Índia seria a mesmo pela qual os indianos os expulsariam. O segundo movimento demorou demais. Porque não foi por acaso que Marx desenvolveu essas idéias no Museu Britânico. Nós devemos nos abrir porque é impossível nos fecharmos. É preciso secionar as vias e as veias de sangria de riquezas da Amazônia. Infelizmente a nossa história vem escrita de fora, o enredo já está pré-estabelecido fora de nós. E esse enredo provoca saltos de descontinuidade, que nos deixam no vácuo da compreensão. Fica faltando terra sob os nossos pés: ou caímos, ou levitamos. Eu digo que em 1973 começou a definitiva integração amazônica (sem aproximações seguidas de distanciamento, como aconteceu sob Pombal ou durante o monopólio da borracha) porque o mundo descobriu que a Amazônia é muita energia, na forma convencional ou a revelar. Desde então, para a região tem sido destinada a produção de eletrointensivos ou mesmo a obtenção de energia bruta. O japonês Saburo Okita quis, em 1971, o aval do principal homem do sistema. Os japoneses iriam executar um projeto ousado, fechando todas as suas fábricas de alumínio, a partir do choque do petróleo. E a maior fábrica de alumínio japonesa foi construída a 20 mil quilômetros do seu território e produz para os japoneses 15% da demanda que eles têm de alumínio, a um preço inferior que os japoneses obteriam se produzissem ali mesmo, no Japão. É fantástica a capacidade desse povo, que realizou a maior transferência industrial que conheço, e é fantástica a incapacidade do povo que permitiu essa solução, que somos nós, sem tirar o mesmo benefício dessa relação, que, pelo contrário, nos tem sido altamente deficitária. Quantas histórias iguais a essas que narrei ainda teremos que ouvir contar sobre o modo como estamos escrevendo e destruindo o Gênesis final? É possível escrever uma outra historia que não essa que nos têm imposto? Eu acho que é possível, e é o que justifica estarmos aqui. Nós queremos ser contemporâneos da história. Não queremos ser apenas o coro grego, só para bater palmas, não para fazer o contracanto. Nós queremos ser os personagens, porque a história está nos dando uma oportunidade, única. Muitos povos não conseguem fazer história porque a deles já passou ou não chegou. Outros não conseguem porque a história foi aprisionada. Nós ainda temos uma possibilidade de liberdade, de livre arbítrio. Seria muito fácil no discurso dizer: não, o imperialismo, o capitalismo, seja lá qual for o demiurgo, já escreveu a história. O único que tem esse habeas-corpus é Deus. Que não está aqui. Como dizia Guimarães Rosa: se ele vier, que venha armado. É assim no Grande Sertão. Nós somos o grande sertão. Mas queremos ser o que somos: a grande floresta, a bela e maravilhosa floresta, a personagem principal da Amazônia e da ópera justa que pretendemos escrever.