12/12/2006

Senhores Presidentes: a integração a partir dos povos


Sábado de forte sol e emoção em Cochabamba. Milhares de pessoas vão se dirigindo ao Estádio Pillares, onde acontece o encontro histórico de presidentes presentes à 2ª. Cúpula Sulamericana de nações e os movimentos sociais reunidos simultaneamente nesta cidade andina.


 


As ruas começam a ser tomadas por um colorido de bandeiras e roupas vistosas. Os pobres, os indígenas, e grande número de visitantes convergem para o estádio. Músicas e danças de diversos conjuntos vão se apresentando enquanto o espaço de 25 mil pessoas vai sendo totalmente tomado. Alguns trazem guarda chuvas, panos, papéis para se defender um pouco do sol causticante. Mas a grande maioria enfrenta o calor sem nenhuma proteção, se não a expectativa de ouvir a fala dos presidentes, e em especial dos presidentes Evo Morales e Hugo Chaves. Os fogos são tímidos, diante das pirotecnias e pompas que estamos acostumados a ver em solenidades de outros países. As bandas dão um charme especial nos intervalos das falas ou apresentações. Tudo muito simples e singelo. Nada de ostentação. Apenas no fundo do palco uma grande imagem de Evo. Alguns balões vermelhos e amarelos enfeitam as laterais do palco.


 


As cadeiras mais próximas ao palco foram reservadas para representantes dos povos e países. Dentre eles estavam três representantes dos povos indígenas do Brasil: Anastácio Guarani, Marquinhos Xukuru e Edilene Truká.


 


Blanca Chancoso: a voz indígena do Fórum Social


Após a chegada dos presidentes e representantes dos países, foram apresentadas músicas feitas especialmente para o momento com apelo social para as transformações em curso nos diversos países do continente.


 


Logo após, Blanca Chancoso, Kichuwa do Equador, dirigiu a palavra aos presidentes e à multidão de mais de 25 mil pessoas presentes.


 


Destacou as principais deliberações e discussões feitas no âmbito do Fórum Social pela integração a partir dos povos.  “Hoje sopram novos ventos para os povos que por 514 anos fomos silenciados e espoliados. Estivemos aqui em mais de 4.400 delegados dos doze países sulamericanos e outras partes do mundo. Nos unimos na aliança pelos direitos de todos os povos. Por isso pedimos e confiamos em vocês presidentes para que respeitem os direitos dos povos indígenas e seus territórios. Reconheçam que nossos estados são plurinacionais, e, como tal, busquem desenvolver políticas a partir dessa realidade, da cosmovisão dos povos”.


 


Depois destacou as principais decisões do Fórum Social:


“Dizemos não aos tratados de morte, os Tratados de Livre Comércio: TLC e ALCA. Não queremos a militarização de nossos países e nem a presença de bases militares nos territórios indígenas. Não aceitamos a privatização das águas e o desenvolvimento que privilegia apenas a acumulação e privilégios de uns poucos. Que a comunicação esteja cada vez mais na mão dos povos e não apenas de grupos econômicos. Vamos construir o poder do povo, apoiando as políticas de Evo Morales contra a conspiração das oligarquias. Estivemos reunidos e nos unindo pela libertação, soberania e dignidade dos nossos povos”.


 


A voz dos presidentes


Apesar de vários presidentes não virem ao estádio, justificando-se em função de agendas e problemas a resolver em seus países, inclusive Lula, do Brasil, os mais esperados lá estiveram: Hugo Chaves, Evo Morales, Daniel Ortega…


 


Após breves palavras do vice-presidente da Argentina, que reafirmou que “esta é a hora dos povos, dos movimentos sociais, dos povos originários, de grandes mudanças no continente, com as quais se solidariza e o governo de seu país, foi a vez do presidente eleito da Nicarágua, Daniel Ortega falar. “Desde a pátria de Sandino, lhes trago o abraço revolucionário, de um povo que não se rendeu, que não se vendeu, e continua sua luta”.


 


Hugo Chaves, presidente reeleito da Venezuela, era um dos pronunciamentos mais esperados. Iniciou dizendo que procuraria ser breve como Daniel Ortega que o antecedeu e falou por apenas uns cinco minutos. Porém Chaves, com sua eloqüência poética e cativante, falou por mais de quarenta minutos. “Bolívia é o coração da América e Cochabamba é o coração do coração do continente”.  Em função de sua localização central, Cochabamba, por sugestão de Lula, acabou sendo aprovada por unanimidade como sede do Parlamento Sulamericano. Fez referência à Bolívia profunda dos Aymaras, dos Quéchuas e de tantos povos. Fez um apelo, enquanto soldado desse continente, aos soldados verdadeiros, que devem estar ao lado do povo e não se deixarem iludir pelas elites dominantes para massacrar seu povo.


Dirigiu sua palavra aos revolucionários desta hora, conclamando a todos para a construção da “Pátria Grande”. Conclamou a todos para a união e luta contra a “extrema direita que não tem pátria”. E ao se referir às ameaças contra Evo Morales, foi enfático. “Digam e pensem o que queiram a respeito do que vou dizer, pois já o declarei outras vezes. Se o império norte americano e seus lacaios aliados arremeterem contra o governo de Evo Morales, não ficaremos de braços cruzados. Aqui estaremos ao lado do bravo povo boliviano, combatendo a todos os que querem derrubar o governo legitimamente eleito pelo povo, e suas lutas em favor de seu povo oprimido e explorado por séculos por oligarquias.”. 


 


Terminou sua fala relembrando momentos com Fidel, a quem classificou como “imprescindível”, conforme disse Brecht. Com vivas a Fidel e Cuba revolucionária, lembrou um bilhete que Fidel lhe mandou numa das Cúpulas do Continente “Chaves, creio que agora já não sou mais o único diabo”.


 


Lembrou ainda que “não haverá integração desta América se não se integrarem os povos, que são a alma de qualquer esforço sério de integração. Apenas está começando uma nova era, uma nova história da América, porque os povos estão abrindo as portas. Este é o território da utopia. Que vivam os povos da América”.


 


Evo Morales, em sua esperada fala, começou ressaltando a necessidade de “avançar juntos para a libertação da América latina. A maior parte de seu pronunciamento foi explicar à multidão presente a conjuntura de seu país “onde um pequeno grupo que sempre se beneficiou com a exploração dos indígenas e dos recursos naturais, agora quer voltar a qualquer preço ao poder, para continuar sua obra de saque e opressão do povo boliviano. E falou que a intenção principal desse grupo foi impedir e fazer fracassar a realização da Cúpula Social e das Nações. “A multidão aqui reunida fez fracassar a intenção dos que tentaram impedir a realização da Cúpula e desta forma desgastar o nosso governo. Estão conspirando contra as transformações. Os “vende-pátria” tratam de confundir a população”. E terminou dizendo que, com a força do povo, rapidamente transformaremos a Bolívia”.


 


Presidente do Equador no eixo anti-império


O único presidente que esteve no Fórum Social pela Integração dos Povos foi Rafael Correa, presidente eleito do Equador. Já era final do dia 8, quando estavam sendo apresentados os documento e decisões tomados nos diversos espaços e grupos do Fórum.


 


Foi um dos momentos de maior vibração e entusiasmo. O Coliseo repleto, com mais de três mil pessoas, Rafael fez um discurso veemente comprometendo-se com as políticas contra o neoliberalismo colonialista e de transformações profundas nos modelos implantados até hoje nos paises do continente. Precedido em suas falas pelas lideranças indígenas Blanca Chancoso e Humberto Cholango, Rafael Correa, emocionado, e adornado com símbolos indígenas, disse estar totalmente comprometido que a construção de políticas que favoreçam o povo e não o modelo criminoso que simplesmente quer transformar a todos em consumidores e tudo em mercadoria.


Disse estar consciente da importância do momento histórico de mudanças e transformações profundas no continente e terminou citando o grande herói e ídolo revolucionário Che Guevara “Se avanço, sigam-me, se paro, me empurrem, e se os trair, me matem”. Fez várias referências a Evo Morales, com o qual disse se sintonizar nessa histórica tarefa de construir uma nova América do Sul, a partir e com os povos.


 


Aplausos, consignas, vibração e emoção. Momentos históricos que empurram a esperança para profundas transformações com os povos e os movimentos sociais organizados e mobilizados. Humberto Cholango entregou ao presidente do Equador cópia do documento dos Povos Indígenas e a “Resolução dos Povos Indígenas, nações originárias e camponeses participantes no Fórum Sócia de Integração dos Povos”, no qual dizem: “Nos levantamos desde a resistência para construir o nosso, nos levantamos para juntos impulsionar uma nova forma de vida, um grande arco íris de esperança e construção de uma nova América, ou outro Continente, de Abya  Yala, de outro mundo. Conclui a resolução com uma conclamação para uma mobilização permanente para garantir os processos de transformação, manifestando solidariedade como os irmãos e irmãs da Bolívia e o irmão presidente Evo Morales Ayma.”


 


A Presidente da Constituinte – discurso emocionado e radical


“Podem estar tranqüilos. Se for necessário iremos dar nossa vida para que seja feita e aprovada a nova Constituição em nosso país”, disse a indígena Izabel, presidente da Assembléia Constituinte. Lembrou que tem um ano para elaborar a nova Constituição e que já decorreram quatro meses, mas que no prazo estabelecido, queiram o que queiram as elites oligárquicas que sempre exploraram esse país, vamos concluir a Constituição e entregá-la ao companheiro presidente Evo para sancioná-la e poder governar.


O tom de desabafo de Izabel se deve ao momento atual em que os setores da direita, exploradores e saqueadores seculares dessas terras e seus povos, estão paralisando os trabalhos da constituinte, buscando criar um clima de enfrentamento e instabilidade social.


 


Autonomia e autodeterminação – o calcanhar de Aquiles


Numa das inúmeras oficinas realizadas durante esse Fórum Social pela integração dos Povos, discutiu-se a questão das “Autonomias Indígenas na Bolívia”. A questão de “autonomia” é uma das questões centrais no debate da nova constituição. Enquanto os povos indígenas têm reivindicado a autonomia a partir de seus territórios, os setores de direita, especialmente a partir de Santa Cruz, estão pleiteando a “autonomia departamental”, que daria possibilidades de decidirem sobre questões fundamentais como os recursos naturais, a terra, a migração, dentre outros. Ou seja, para as oligarquias a descentralização e a autonomia regional não era desejada enquanto estavam no poder durante décadas. Agora que um projeto de transformações está em curso a partir do governo, eles vêem seus lucros e poder ameaçados e então propõem “aprofundar a democracia através da descentralização”, da reivindicação de autonomia departamental. Ironicamente lideranças indígenas perguntavam: não eram esses mesmos senhores os que sempre se opuseram qualquer discussão de autonomia dos povos indígenas?


Além do grito geral contra o neoliberalismo, estiveram presentes a questão da água, de gênero, da cultura, das raízes profundas dos povos – visão de mundo e espiritualidade…. Enfim a necessidade de descolonizar e desconstruir para reconstruir os estados nacionais em bases históricas e não de interesses econômicos. O militarização e estratégias do império e da globalização capitalista.


 


Socialismo do século XXI e Poder Originário


Volta ao cenário das discussões políticas os modelos político ideológicos que vão sendo forjados no continente com diferentes matizes. O socialismo proposto por Hugo Chaves, com uma base econômica mista, certamente tem uma visão de desenvolvimento com inclusão social baseado na realidade daquele país. Os caminhos para implementa-lo também são muito peculiares. Um militar, contando com o apoio popular e das forças armadas implementa e garante as mudanças. O desafio está no controle popular sobre processo para evitar as imposições e ditadura militar.


 


Já no caso Boliviano a proposta é reestruturar a base produtiva e política do país, seja através da redistribuição das terras e uma base industrial que responda às necessidades básicas da população, até a consolidação de formas autonômicas e de governos.


 


Já alguns líderes indígenas questionaram todas as “ideologias forâneas” afirmando que estas, até hoje, só tem destruído as bases e os valores dos projetos indígenas de vida e sociedade. Por isso propõem construir autonomias indígenas com base nos valores, formas de poder e organização dos povos. Esses são projetos em andamento no continente que com avanços e recuos procuram caminhos alternativos aos dos atuais estados nacionais.”Se o socialismo aceitar essa base de refundação de nossos países então bem vindo o socialismo”, afirmaram algumas lideranças indígenas.


 


Na verdade a principal discussão posta é como consolidar novas formas de poder que superem os desgastados e as insuficientes respostas nos marcos dos atuais estados nacionais. Em diversos momentos foi reafirmada a necessidade de reconstrução do Tawantinsuyo, a partir da realidade atual.


 


Documentos, manifestos e mobilizações


 


“Nós Indígenas não somos o folclore da democracia”


No “Manifesto de Chochabamba, os movimentos sociais, mais uma vez deixam claro de que estão falando quando se referem a integração: “Consideramos que se referem a outro tipo de integração na qual tenha primazia a cooperação à competição, os direitos dos habitantes sobre os interesses comerciais a soberania alimentar sobre a agro exportação, a ação decidida do Estado  na procura do bem estar sobre as privatizações, e o sentido de equidade sobre o afã do lucro, o respeito ao meio ambiente sobre o saque desenfreado dos recursos naturais e a equidade de gênero sobre a injusta divisão sexual do trabalho. Também deve primar o reconhecimento, respeito e promoção da contribuição das comunidades originárias sobre a marginalização, exploração, e folclorização de seus valores e tradições econômicas e culturais”


 


O documento pos Povos e Nações Indígenas debatido, construído e aprovado por unanimidade afirma:


“Nós, desde as raízes profundas de Abya Yala (hoje chamada slamérica), nos dirigimos aos presidentes de Estados Nação, que são posteriores a nossas orgulhosas civilizações, eficazes e autônomas, que deram e seguem dando forma a estas terras desde o inícios dos tempos, para reiterar-lhes nossas propostas concretas para que seja possível outra forma de integração sul americana distinta à do neoliberalismo em todas as suas variantes., mediante outros enfoques  do chamado ‘desenvolvimento’ e outras formas de participação na tomada de decisões, de todos os explorados, oprimidos e excluídos de sempre, do campo e da cidade, e entre eles com nossas comunidades Ayllus, Malocas, Cabildos, Palenques e demais células sociais dos povos Indígenas e Nações Originárias da chamada América do Sul”. O documento traz dez propostas na qual são pedidos a não subordinação a aos “Tratados de Livre ‘Colonização’, até o empenho para a aprovação da Declaração dos Direitos dos Povos Indidgenas, pela ONU, a não militarização, a paz nas fronteiras, a reestruturação do IIRSA.Na imprensa local  de hoje está publicada na íntegra a proposta do Presidente Evo Marales “Construamos com nossos povos uma verdadeira comunidade sulamericana de nações para ‘viver bem’. Igualmente estão sendo vinculadas matérias pagas pela “independência nacional dos Cambas e não ao tribalismo”.  Posturas e expressões semelhantes às utilizadas na década de setenta no Brasil, pelo grupo de ultra direita “Tradição, Família e Propriedade” No documento dizem “reconhecer à região andina o direito de se constituir numa sociedade TRIBAL”. É uma clara confrontação com o governo democraticamente eleito.


 


Importante destacar a grande e ativa participação das mulheres, jovens e indígenas. Seus depoimentos e energia perpassaram os inúmeros espaços de debate e manifestações. As sagradas folhas da coca foram o símbolo que perpassou todos os momentos do encontro, tanto em rituais, como em manifestações e debates.


 


Egon Heck


Cimi MS

Cochabamba , 9 de dezembro de 2006

Fonte: Cimi
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