A CAMINHO DA JUSTIÇA
“O Irmão Vicente era um homem fora do comum.
Homem de fronteiras que tem que tomar decisões arriscadas e firmes,
Vicente nunca deixou de ser um homem livre e autêntico. Radical, porém não radicalizado, mantinha suas opções fundamentais frente a qualquer autoridade humana.”(B. Meliá, 1987)
Segundo dia do julgamento dos assassinos de Vicente Kiwxi. O dia foi iniciado com uma expressiva celebração da memória do nosso companheiro, no pátio de entrada do Fórum da Justiça Federal de Cuiabá.
Nas paredes frases de solidariedade e reconhecimento
“Vicente Cañas, mártir das causas Ameríndias” (Dom Pedro Casaldáliga)
“Ir. Vicente tua profecia e testemunho nos incentivam”(CRB, MT)
“A vida matada do companheiro calou fundo, ganhou as matas, rios e as estradas, o mundo, semente” (Egon Heck)
“A utopia é possível se nos optarmos pelo ela, vencendo o passado escravo, forjando o duro presente, forjando o novo amanhã” (Dom Pedro Casaldáliga)
Na celebração, foram dados testemunhos dos amigos e conhecedores, dentre os quais Tomás de Aquino, Felício, Ir. Beth Amarante. Entre cantos e rezas foi feita a memória e clamando aos céus por justiça, para que se acabe com uma impunidade de 19 anos!
Tomás Lisboa fez um relato o testemunho de Vicente e concluiu dizendo: “é uma grande alegria que depois de dezenove anos esteja saindo esse júri popular, do qual espero possa sair daqui justiça feita!”
Um pouco depois do horário previsto, com a presença dos participantes do julgamento, o juiz Jéferson Schneider reiniciou o trabalho fazendo uma síntese do processo. Seguiu-se a leitura das partes do processo por solicitação da acusação e da defesa. Foram várias horas de leitura de parte dos treze volumes do processo.
O representante da presidência da República, que veio acompanhar o julgamento pela Secretaria Especial de Direitos Humanos, Ivair dos Santos, sentiu-se muito tocado ao ler o livro da vida e testemunho de Vicente e conhecer um pouco mais a figura extraordinária, desse mártir. “Sinto-me um privilegiado, por poder participar um pouco da trajetória desse exemplo de um compromisso missionário novo, diferente…”
Um frio silencioso
Por vezes, tem-se a sensação de não estar no calor de um julgamento numa das cidades mais quentes do país. O forte ar condicionado até exige a apelação para agasalhos. Os trabalhos prosseguiram entrecortados pelo silêncio frio e o cansaço com as extensas, mas elucidativas, leituras de parte dos autos. A monotonia das leituras foi quebrada com o pedido da acusação da audição de entrevistas gravadas com os indígenas Adalberto e Paulo Rikbatsa. Nela, eles relatam com detalhes como foi o assassinato do Vicente, pessoas envolvidas, instrumentos utilizados, mandantes e quem teria agenciado a contratação dos pistoleiros. O réu Ronaldo Osmar, delegado de Juína na época, é acusado de ser quem recebeu o dinheiro da fazenda Londrina para pagar pelo serviço feito.
Seguiu-se o início do interrogatório das nove testemunhas, sendo quatro da defesa e cinco da acusação. O antropólogo e professor da PUC-SP, Rinaldo Arruda, foi interrogado por mais de quatro horas. Foi ele quem, em 1988, foi procurado pelos índios Adalberto e Paulo Rikbatsa, para lhe narrar o assassinato de Vicente conforme lhes haviam relatado participantes do fato.
Rápida visita Enauenê
Os Enawenê- Nauê, cujo nome alguns dos protagonistas do processo começam a pronunciar corretamente, enquanto alguns ainda preferem o nome pelo qual começaram a ser conhecidos por ocasião do contato , “Salumâ”, também se fizeram presentes por um curto período no auditório do julgamento. Em rápida conversa com os mesmos, que não falam português, voltaram a mostrar sua insatisfação com os limites atuais da área que deixa fora do reconhecimento de seu território uma área importante do igarapé Preto.
Certamente, eles devem ter tido uma estranha sensação do que aí se passava, pois ficaram apenas ouvindo leituras que não entenderam, e vendo uma série que personagens estranhos sentados à sua frente. O esforço do tradutor talvez tenha ajudado ao entendimento mínimo do que se passava, especialmente ao explicar que se tratava de saber e chegar à punição dos que mataram seu grande amigo Vicente Kiwxi.
O lento e difícil caminho da justiça
Não é à toa que a impunidade fez emperrar o processo por 19 anos, apostando na prescrição do mesmo, cujo prazo expiraria em um pouco mais de meio ano. O assassinato acontece no estado que teve o maior número de missionários assassinatos nos últimos anos. Acontece na terra das grandes chacinas de grupos indígenas que foram sendo atingidos pelas frentes de expansão econômica, como o massacre do Paralelo 11, dos índios Cinta larga, em 1963. O assassinato acontece na terra em que o latifúndio e agora o agronegócio se expandem celeremente no bojo da destruição da natureza e limpeza das terras dos grupos humanos que ali viviam, índios, seringueiros, posseiros…Os fatos se passaram na região em que as terras foram sendo griladas e tituladas com a violência e conivência das elites políticas e econômicas locais. O julgamento acontece no Estado em que foi pedida a moratória de qualquer demarcação de terra indígena…
Na celebração do início do dia Tomas Lisboa, um dos que encontrou Vicente assassinado, manifestou sua esperança de que justiça finalmente fosse feita. Sabemos que o caminho da justiça é lento e difícil, porém esperamos que não falhe.
Egon Heck