28/09/2006

Justiça contraria índios e libera hidrelétrica nas cabeceiras do Xingu

No último dia 20 de setembro, o Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF) decidiu liberar a construção da Pequena Central Hidrelétrica Paranatinga II. A obra, em execução no rio Culuene, no Mato Grosso, estava embargada desde abril deste ano, quando a Justiça Federal do Mato Grosso decidira em primeira instância interromper a obra e transferir seu licenciamento ambiental para o Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (Ibama). Agora, a Paranatinga Energia S/A, dona do empreendimento, conseguiu uma liminar no TRF da 1ª Região que confere efeito suspensivo à sua apelação. Com isso, as obras podem continuar até que aquele tribunal decida definitivamente sobre o caso, o que pode levar anos. O Ministério Público Federal afirma que vai recorrer.


 


O advogado Raul Silva Telles do Vale, do Instituto Socioambiental (ISA), aponta para o risco de se criar uma situação irreversível do ponto de vista prático e, consequentemente, judicial. “O problema dessa liminar é que se antes do julgamento final a hidrelétrica ficar pronta e começar a funcionar, será muito difícil o Judiciário decidir pelo seu fechamento mesmo que reconheça que houve ilegalidades durante o licenciamento ambiental”, afirma, indicando que esse pode se tornar um novo caso Barra Grande.


 


A PCH está sendo erguida no leito do rio Culuene entre os municípios mato-grossenses de Campinópolis e Paranatinga. O Culuene é um dos principais formadores do rio Xingu. O projeto, iniciado em 2004, prevê o alagamento de uma área de 1.290 hectares, dos quais 920 de vegetação nativa. O lago será formado pela edificação de duas barragens e o projeto está orçado em R$  46,4 milhões para a geração de pouco mais de 29 megawatts de energia.


 


A hidrelétrica vem sendo objeto de protestos por parte das comunidades indígenas alto-xinguanas, alarmadas com seus efeitos na reprodução dos peixes que constituem a base de sua dieta alimentar (leia abaixo). Os índios também afirmam que o trecho do Culuene que está sendo desfigurado pelas dinamites e máquinas é um dos locais sagrados na mitologia do Alto Xingu, onde teria ocorrido o primeiro Quarup, hoje uma das principais cerimônias dos povos indígenas da região, cuja realização anual homenageia suas lideranças mortas.


 


A execução da obra em locais importantes para a mitologia dos povos nativos, por sinal, foi objeto de um polêmico trabalho de campo encomendado pela Paranatinga Energia. O relatório da empresa conclui que o local sagrado do primeiro Quarup, chamado Sagihenhu, não seria no ponto do rio onde a barragem está sendo erguida. A consistência do estudo, entretanto, foi criticada por um dos maiores especialistas nos povos do Alto Xingu, o antropólogo Carlos Fausto, do Museu Nacional.


 


No final de maio, cerca de 200 índios de diversas etnias, de dentro e fora do Parque Indígena do Xingu, se reuniram no local da obra para protestar contra sua execução e pedir pela preservação da região das cabeceiras do Xingu.  “Nossa preocupação é que a decisão judicial da semana passda provoque novos conflitos na região”, afirma Márcio Santilli, do ISA.


 


O empreendimento, que foi licenciado pelo governo do Mato Grosso em 2004 e já tem boa parte das obras executada, deveria passar por um novo processo de licenciamento ambiental, conduzido pelo Ibama, entre outros motivos pela identificação, por parte da Fundação Nacional do Índio (Funai), da existência de território xavante no local da obra.


 


Impacto na segurança alimentar dos índios


 


Um recente estudo sobre os principais impactos ambientais que seriam causados pela PCH, apresentado pela Paranatinga Energia aos órgãos federais, confirma a preocupação dos povos alto-xinguanos em relação à alteração ou mesmo extinção de espécies de peixes, utilizadas na alimentação das comunidades indígenas.


 


O estudo da empresa afirma que a ictiofauna será impactada pelo empreendimento. Mesmo as espécies de peixes que não realizam a piracema (subida do rio para desova) sofrerão impactos indiretos, “uma vez que servem de alimento ou se alimentam das espécies reofílicas (que realizam a piracema), provocando possíveis alterações na estrutura trófica do sistema”. A barragem será um obstáculo para as principais espécies de peixes consumidas pelos índios, de acordo com o seguinte trecho do estudo: “Já as espécies reofílicas que empreendem o processo migratório para completar seu ciclo reprodutivo, a exemplo de piaus, matrinxãs, pintados, pirararas, dentre outras, terão no barramento projetado, sem dúvida, um obstáculo.”


 


As conclusões do estudo deixaram as lideranças indígenas ainda mais alarmadas. “A gente vive basicamente de peixe. E temos locais onde tem maior número de peixes, no Culuene é um deles, e está sendo destruído”, diz Pablo Kamaiurá, uma liderança emergente do Parque Indígena do Xingu. Ele aponta uma série de questões não respondidas pelo estudo da empresa. “Não se define que tipo de peixe vai diminuir, quanto tempo vai levar para voltar ao normal. Todo ano os peixes sobem para se reproduzir, mas agora o caminho vai estar fechado. Falam que tem a escadinha, mas o peixe não vai saber que tem a escadinha para descer o rio também…”.


 


Pablo Kamaiurá explica que os peixes são a base de vários rituais e festas alto-xinguanos. “O dono da festa pesca para a aldeia. Se não tiver peixe, qual vai ser a importância do ritual? Não poderemos fazer como nossos ancestrais. Ou vamos pegar arroz e macarrão para fazer o ritual?”, questiona Pablo.


 


O impacto de uma barragem sobre a produção pesqueira depende de uma série de fatores, como a topografia da bacia, sua formação geológica e hidrologia, do clima e do tipo de empreendimento e suas características projetadas. O estudo da empresa, porém, diz que se a produção pesqueira se baseia em espécies migradoras, a pesca é severamente prejudicada. É o caso das comunidades alto-xinguanas. “De maneira geral, o mais comum são resultados negativos sobre a atividade pesqueira, inclusive sobre a pesca tradicional”. O estudo da empresa conclui que, “no que se refere à PCH Paranatinga II, e considerando as dimensões de reservatório que deverá apresentar, as espécies reofílicas migradoras deverão continuar ocorrendo no rio Culuene, embora certamente devam haver reduções significativas em sua produtividade pesqueira”.


 


Os autores do estudo afirmam também que não existem estudos sistemáticos disponíveis para assegurar que o barramento do Culuene pela PCH não afetaria o ciclo migratório das espécies reofílicas. “De fato, embora a importância do recurso pesqueiro pelas populações indígenas do Parque Indígena do Xingu seja largamente conhecido e divulgado, o tema não mereceu ainda a atenção por parte da comunidade científica, de forma que dispuséssemos de referências e monitoramentos sobre a diversidade, quantidade e qualidade (níveis de contaminação) da ictiofauna do rio Culuene (e do Alto Xingu). No entanto, o presente estudo identificou que várias espécies reofílicas são importantes na alimentação dos grupos indígenas xinguanos, concluindo-se que a obra afetará direta e negativamente sua atividade pesqueira (embora ainda não seja possível precisar sua magnitude).”


 


Para Pablo Kamaiurá nenhuma barragem deve ser construída nas cabeceiras do Xingu. “Mas infelizmente o que está em jogo também é a produção de soja e o funcionamento das fábricas. Tudo isso está por trás desses empreendimentos. Vai diminuir a água e os peixes. Quem vai sofrer com isso são as futuras gerações”.


 


ISA, Bruno Weis. –


 


 


 

Fonte: ISA
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