28/06/2006

Carta da Assembléia Regional de Pastoral sobre recentes conflitos de terra no Maranhão

Aos Exmos.


Governador e Vice-governador do Estado do Maranhão


Ministro da Justiça


Ministro do Desenvolvimento Agrário


Ministro da Secretária Especial de Direitos Humanos


Ministro da Casa Civil da Presidência da República


Senadores da República e Deputados Federais e Estaduais do Estado do Maranhão


Presidente do Conselho Nacional de Justiça


Presidente do Tribunal de Justiça do Estado


Procurador Geral de Justiça


Presidente do Superior Tribunal de Justiça


Presidente do Supremo Tribunal Federal


Juízes de Direito e Promotores de Justiça do Estado do Maranhão


Prefeitos e Vereadores dos Municípios maranhenses


Às comunidades cristãs


À população do Estado do Maranhão


 


Reunidos em Assembléia Regional de Pastoral na cidade de São Luís do Maranhão, de 22 a 25 de junho de 2006, fiéis leigas e leigos, pessoas consagradas, diáconos, padres e bispos de todas as Dioceses do Maranhão, ouvimos, mais uma vez, o grito de dor e o clamor por justiça das famílias camponesas do nosso Estado.


 


É um gemido que, muitas vezes, ecoa em meio à indiferença e à insensibilidade da sociedade e das autoridades constituídas que têm a responsabilidade de servir ao bem comum.


 


Queremos dar voz e visibilidade a esta dor para que cristãos e pessoas de boa vontade possam se mobilizar para o socorro e a busca de caminhos de conversão e de mudança.


 


É o gemido da própria vida ameaçada de extinção: é o gemido das matas e do cerrado devastados pelo avanço acelerado e violento das monoculturas da cana e da soja, do eucalipto e do bambu; é o gemido das matas que são transformadas em carvão para o abastecimento das usinas de ferro-gusa; é o gemido de milhares de famílias do Baixo Parnaíba, que, neste ultimo ano, assistiram impotentes à grilagem e à devastação anunciada de quase dois milhões de hectares de cerrado.


 


É o gemido dos Povos Indígenas que choram pelo assassinato e criminalização de suas lideranças. À violência explícita junta-se o descaso com a saúde dos indígenas: entre 2005 e 2006, vinte e duas crianças guajajara das aldeias Bananal e Ipu morreram por desnutrição e falta de atendimento médico. Acrescente-se o descaso para com a reserva indígena awá-guajá, onde o governo federal ainda não cumpriu a decisão judicial de retirar os não índios que ali se encontram ilegalmente e nem a Justiça Federal julgou definitivamente o processo de demarcação do território destes grupos étnicos ameaçados de extinção.


 


É o gemido dos ribeirinhos da Baixada Ocidental que assistem à devastação dos campos e às ameaças mortais a sua economia pelos criadores de búfalos. Enquanto isso, o Estado os criminaliza por intermédio do aparelho policial e se omite quanto à garantia de direitos por parte das autoridades judiciais locais. Observamos que nenhum juiz das comarcas da Baixada deu andamento às ações civis públicas ajuizadas pelos promotores de justiça, visando a retirada dos búfalos dos campos naturais, assim como determinam a Constituição Estadual do Maranhão e a legislação ambiental brasileira.


 


É o gemido de trinta famílias de quilombolas da comunidade secular de Malaquias, Município de Vargem Grande, despejadas, no dia 19 de maio de 2006, em cumprimento de uma liminar de reintegração de posse expedida pela Juíza da Comarca, Dra. Janaina de Araújo Carvalho. São dignos representantes de outro grupo étnico expressivo no Estado que ainda aguardam a titulação definitiva de seus territórios, em que pese a morosidade dos órgãos fundiários estadual e federal.


 


É o gemido de Maria e Expedito Alves Costa, posseiros, desde 1943, da Fazenda Caraíba, Município de Loreto, que, no dia 22 de maio de 2006, foram despejados em cumprimento de uma liminar de reintegração de posse expedida pelo Juiz da Comarca de Balsas, Dr. Sebastião Joaquim Lima Bonfim.


 


É o gemido dos posseiros do município de Arari, no povoado Estirão Grande, na  Data Santa Inês, que correm o risco de perder as suas terras embora vivam em área pública há mais de cem anos.  Atualmente encontram-se criminalizados e ameaçados de morte.


 


O despejo é um evento terrível pela desumanidade com a qual jagunços e até policiais destroem e queimam dezenas de casas, quintais, roças, criações de famílias de posseiros, que moram e trabalham em suas terras há muitas gerações.


 


Queremos nos solidarizar com este sofrimento que interrompe o caminho da vida e coloca camponesas e camponeses – idosos, adultos e crianças – na incerteza e no desespero.


 


 “A criação inteira geme e sofre as dores do parto até o presente“ e “o próprio Espírito intercede por nós com gemidos inefáveis” (Rm 8, 22; 26b). Estes são os gemidos do parto; são os gemidos da Páscoa, que pode brilhar também no Maranhão, quando a lógica perversa do agronegócio for substituída pela partilha e pela solidariedade.


 


Queremos, também, fazer algumas considerações sobre a prática de Juizes de Direito que, ao expedirem liminares em ações possessórias, costumeiramente a favor dos “proprietários”, desconsideram a realidade e os direitos de posseiros antigos e recentes. Parece estar ausente a preocupação de levantar a cadeia dominial dos imóveis em questão e, sobretudo, a suspeita sobre a legalidade dos títulos, num Estado em que muitas propriedades se constituíram, após 1969, a partir da grilagem.


 


Deploramos que as liminares funcionem como sentenças definitivas, dispensando, nestes casos, o esgotamento da via processual e contando com o reforço do aparelho policial para que se tornem irreversíveis pelos danos físicos e morais que causam.


 


Tomamos a liberdade de apontar o uso indevido das liminares num Estado onde a maior parte da população pobre vive no campo, habitando, via de regra, povoados tradicionais, cujos moradores, pelo tempo de posse, já teriam o direito de usucapião garantido.


 


Convidamos, enfim, os Juizes de Direito a não se limitar à leitura e interpretação dos autos, mas a atentar por uma leitura e interpretação dos fatos, visitando pessoalmente as terras e as comunidades em conflito. Critério, este, que, a partir da vida dos pequenos, não só garantiria mais atenção aos direitos humanos fundamentais, mas, também, a busca de caminhos jurídicos alternativos para solucionar, com legitimidade e legalidade, os conflitos.


 


Pedimos aos legisladores elaborarem instrumentos legais que estabeleçam procedimentos justos para o julgamento das ações discriminatórias e possessórias, a fim de acelerar a recuperação das terras devolutas da União, dos Estados e dos Municípios e sua destinação à reforma agrária (Cf. Os pobres possuirão a terra, n 128 – p.64-65), e garantir a efetivação dos direitos humanos no campo.


 


Conclamamos as autoridades do executivo federal e estadual que destinem recursos orçamentários privilegiando a promoção da dignidade das pessoas que habitam o campo acima dos interesses econômicos dos grandes projetos.


 


“Os pobres são juizes da vida democrática de uma nação” (Exigências Éticas da ordem democrática, n. 72. Documentos da CNBB n. 42) e por isso a expressão histórica do julgamento de Deus sobre qualquer sociedade humana. O direito das pessoas, sobretudo dos mais pobres a uma vida digna, é o verdadeiro bem supremo ao qual todos os outros direitos devem ser orientados e submetidos, inclusive o direito da propriedade privada da terra que ‘não se constitui para ninguém um direito incondicional e absoluto’ (Populorum Progressio, n. 23)” (Os pobres possuirão a terra, n. 96 – p. 49-50).


 


Aguardamos que as devidas providências sejam tomadas de acordo com a Justiça e o Direito. Atenciosamente,


 


Dom Xavier Gilles, Bispo de Viana e Presidente do Regional NE V da CNBB.


 


Assinam, em conjunto todos os Bispos do Maranhão e os delegados diocesanos participantes da XIII ARP.


 


São Luís-Maranhão, 24 de junho de 2006 – Natividade de São João Batista.


 

Fonte: CNBB - REGIONAL NE 5
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