08/03/2006

Retrato real da atual Política Indigenista

Quem ainda pensa em querer tapar o sol com a peneira e negar a realidade, a corrupção, a omissão, a negligência, os conchavos políticos do governo Lula com a elite econômica neoliberal, que sempre definiu os rumos políticos do país, e quem defende a reeleição de Lula por falta de outra opção, estará compactuando com todos os desmandos destes três primeiros anos de mandato. Bem como, estará aceitando passivamente uma realidade de sofrimento, dor e morte do povo brasileiro, povo que se encheu de entusiasmo e alegria depois da eleição de Lula presidente.


 


No que se refere à política indigenista praticada pelo governo Lula nos três primeiros anos de mandato, se constatam as conseqüências concretas das opções mais amplas (com as elites nacionais e internacionais), tendo como resultado o acirramento da violência, o descaso e o desrespeito aos direitos assegurados na Constituição Federal de 1988.


 


Para se ter uma idéia do nível de violência a que os povos indígenas estão submetidos, o ano de 2005 terminou com 38 assassinatos de lideranças indígenas, maior número dos últimos 11 anos. Nos três anos de mandato do governo Lula, ocorreram 108 assassinatos de lideranças indígenas, uma média de 36 por ano.


 


A lentidão do Estado nos processos de reconhecimento e proteção das terras indígenas é uma das principais causas dos assassinatos. O terceiro ano do governo Luiz Inácio Lula da Silva teve números desfavoráveis no que se refere à quantidade de terras declaradas, isto é, que tiveram sua portaria declaratória publicada pelo Ministério da Justiça no Diário Oficial. Foram apenas cinco terras declaradas, o que leva a uma média de seis terras por ano no governo Lula, abaixo da média anual dos governos Fernando Collor/Itamar Franco (média de 16 terras), Fernando Henrique Cardoso (média de 11 terras) e João Baptista Figueiredo (média de 7 terras).


 


Dada essa paralisação nos processos demarcatórios, a violência contra os povos indígenas ganhou fôlego, não apenas no número de assassinatos, mas também nas invasões às suas terras, depredação de seus recursos naturais, além do aumento expressivo no número de conflitos entre indígenas e latifundiários.


 


A mortalidade infantil tomou proporções alarmantes, com índices de 75 mortes por mil nascidos, enquanto a média nacional na população não indígena é de 25 por mil. Esses dados da mortalidade infantil indígena no Brasil configuram crime de etnocídio. Centenas de crianças morreram de fome no Mato Grosso do Sul, no Amazonas, Pará, Maranhão, Tocantins, Rio Grande do Sul e outras dezenas de mortes ocorreram por doenças controláveis como a diarréia, a malária, a dengue, agravadas pela falta de saneamento, água potável, de condições de produção em determinadas áreas. Quadro resultante da falta de aplicação dos recursos previstos no Orçamento da União, pela omissão das autoridades sanitárias, enfim, por falta de uma política de assistência digna, diferenciada e com a plena participação dos povos indígenas.


 


Em outubro de 2005, o Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc) divulgou informações sobre o orçamento aprovado para a Política Indigenista do Governo e a sua execução orçamentária, com os valores liquidados até o início do mês de outubro. De acordo com estes dados, do orçamento indigenista total, apenas 52,79% dos recursos haviam sido aplicados, sendo que as rubricas mais prejudicadas foram exatamente as mais reivindicadas pelos povos indígenas: demarcação de terras, saúde e educação.


 


Para o item Demarcação e Regularização Fundiária de Terras Indígenas, o Orçamento previa mais de R$ 19 milhões, mas foram gastos até o início de outubro apenas 20,61% deste valor, pouco mais de R$ 4 milhões. Enquanto se acumulam processos, esgotam-se prazos demarcatórios, intensifica-se a violência contra os povos indígenas e as agressões contra seus territórios, a Funai responde, invariavelmente, que não há recursos.


 


Mesmo com a gravíssima situação de saúde nas áreas indígenas, com assustadores índices de desnutrição, de mortalidade infantil e de endemias que superam de longe a média nacional, o governo aplicou apenas 19,77% do orçamento disponível para a estruturação de Unidades de Saúde para atendimento à população indígena; 20,12% em educação em saúde; e 0% dos 1.054.119 reais previstos para pesquisa em saúde indígena.


 


No que tange à educação indígena, os números do descaso e da omissão não são menos severos. De acordo com os dados do Inesc, não há registros de aplicação, até outubro, dos recursos destinados ao ensino fundamental indígena, à produção e distribuição de material didático e nem à capacitação dos professores indígenas. Vale ressaltar que o orçamento previsto para estas rubricas, no Ministério da Educação, era de 3.318.210 reais, “economizados” pelo governo para assegurar o curso de suas opções políticas.


 


Na lógica do atual governo, a “economia” de gastos em políticas públicas é uma condição para a manutenção de uma opção econômica que prioriza a remuneração do capital com juros exorbitantes. Economia que permite que o Brasil pague adiantados 34 bilhões ao Fundo Monetário Internacional, contingenciando o orçamento e economizando gastos com aqueles que são, para este governo, mero detalhe: o povo que o elegeu e os povos indígenas, que nem contam muito nos dados eleitorais, mas que têm suas terras devastadas pelos grupos econômicos.


 


A questão da terra, que é uma das determinantes para que os povos indígenas sejam perseguidos, é o que explicita as orientações antiindígenas no atual governo em âmbito federal, através das intervenções dos gabinetes de ministros, secretários, assessores diretos e indiretos de autoridades políticas, do presidente da Funai, da Funasa, do próprio presidente da República. Destes seguem sempre as ordens para aliviar na implementação e execução do que estabelece a Constituição Federal, qual seja: demarcação de todas as terras indígenas, assistência específica e diferenciada, respeito à diversidade étnica e cultural dos Povos Indígenas, proteção e fiscalização das áreas já demarcadas e as não demarcadas, combate à exploração de recursos naturais, minerais e hídricos nas terras indígenas.


 


Ou seja, o arcabouço constitucional e a legislação dele decorrente asseguram direitos que se contrapõem à especulação, depredação e grilagem, reconhecendo aos povos indígenas o usufruto exclusivo das terras que ocupam e garantindo também a estes povos suas formas próprias de organização, seus usos, costumes, crenças, tradições. Essas garantias legais inviabilizariam acordos políticos entre o governo federal , os coronéis das políticas regionais, os empresários da madeira, minério, garimpo, os fazendeiros, os que recebem concessões para construir barragens, para impor o agronegócio e a transgenia. Mas o governo não parece ser abalado pelos impedimentos contidos na legislação indigenista, desrespeitando-a cotidianamente.


 


Hoje no Brasil, de acordo com os dados do Conselho Indigenista Missionário, são 850 as terras indígenas. Destas, apenas 323 (38%) encontram-se totalmente regularizadas. As demais, 527 (62%), encontram-se pendentes de regularização. Mesmo depois de quase 13 anos do prazo dado pela Constituição Federal de 1988 para a regularização de todas as terras indígenas, ainda temos 229 terras sem providência alguma. Há presença de invasores na quase totalidade das terras. Naquelas em que estes não mantêm presença é porque as terras são muito reduzidas ou porque nem constam nas estatísticas oficiais, como ocorrem com as terras Guarani, no Rio Grande do Sul, consideradas espaços de acampamentos pelo poder público e sequer passíveis de demarcação.


 


Observando o Projeto de Lei Orçamentária para 2006, que prevê a demarcação e regularização de apenas 13 terras indígenas, e nenhuma referência é feita ao número de terras a serem identificadas, é possível afirmar que a situação de omissão do governo na garantia das terras indígenas só tende a piorar.


 


Enquanto os Povos Indígenas lutam incansavelmente para assegurar o direito às suas terras, o presidente da Funai, Mércio Pereira Gomes, fiel escudeiro do ministro da Justiça e da cúpula do poder federal, viaja sistematicamente para o exterior para divulgar os “feitos” do governo no que refere ao indigenismo. Impossível não mencionar as manifestações antiindígenas do presidente do órgão indigenista, em uma entrevista à agência Reuters, se referindo às terras indígenas: “É muita terra. Até agora, não há limites para suas reivindicações fundiárias, mas estamos chegando a um ponto em que o Supremo Tribunal Federal terá de definir um limite”. O presidente do órgão indigenista oficial, criado para defender os direitos indígenas, parece saber falar melhor a linguagem dos madeireiros, dos fazendeiros, dos invasores das terras indígenas e sequer sabia da existência dos Guarani no Sul do Brasil, ao menos foi o que afirmou à Comissão de Terra Guarani em 2004, quando questionado porque que estas terras não eram demarcadas. Um dirigente público com essas posições e com o pouco conhecimento da realidade indígena serve exclusivamente como pára-raios de uma política estruturada para negar a existência dos direitos fundamentais dos Povos Indígenas. O direito à vida, à terra e ao futuro.


 


Em sintonia com a política indigenista do governo, o presidente da Funai posiciona-se constantemente contra os direitos dos Povos Indígenas e também se recusa a reconhecer indígenas do Nordeste e do Centro-Oeste, bem como aqueles que habitam nos centros urbanos, povos que tiveram suas terras saqueadas, devastadas e suas culturas desrespeitadas e marginalizadas. Um governo que estruturou um órgão indigenista e colocou em seu posto primeiro um servidor apenas para o serviço de pára-raios das mentiras, das omissões e dos conchavos da política em curso não merece credibilidade e deve ser denunciado.


 


Como todos os demais governos de nosso Brasil, este será mais um que passará deixando a marca da opção pelas políticas subservientes aos interesses político-eleitoreiros, econômicos e do sistema financeiro internacional. Dando ênfase política à estabilidade fiscal, o governo drena recursos que poderiam ser aplicados para combater as desigualdades e garantir direitos. Este governo deixará como herança a omissão no que se refere aos pobres, e os povos indígenas terão como lembrança que este foi mais um governo genocida. Esta será a lembrança, este é o retrato real da política indigenista.


 


Porto Alegre (RS), 06 de março de 2006.


 


Roberto Antonio Liebgott


Coordenador Conselheiro do Cimi-Sul


 

Fonte: Roberto Antonio Liebgott (Cimi Regional Sul)
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