20/02/2006

O Documento de Participação da V Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano e Caribenho

Apresentação e comentário analítico


 


Agenor Brighenti


 


Abstract


 


Neste estudo, num primeiro momento, o autor apresenta o conteúdo do Documento de Participação da Va. Conferência dos Bispos da América Latina e do Caribe e, num segundo, faz um comentário analítico do texto. Quanto à apresentação, segue­se a estrutura do Documento, elencando sob os títulos do próprio texto os seus conteúdos, de forma telegráfica e indicando o número correspondente. Quanto à análise, o autor faz três tipos de comentário: um sobre a ordem dos conteúdos e o enfoque metodológico; outro, sobre os conteúdos dos cinco capítulos do texto; e, um terceiro, sobre a relação do Documento com a tradição latino­americana, a qual, historicamente se reivindica de uma ‘recepção criativa’ do Concílio Vaticano II. O objetivo destas reflexões, segundo o autor, é contribuir com a participação das comunidades eclesiais na preparação da Va. Conferência, cujo tema central é o discipulado e a missionariedade.


A Va. Conferência do Episcopado da América Latina e do Caribe, convocada para abril­maio de 2007 em Aparecida (Brasil), se insere no elenco das quatro anteriores: Rio de Janeiro (1955), Medellín (1968), Puebla (1979) e Santo Domingo (1992). Ela tem como tema: Discípulos e Missionários de Jesus Cristo, para que nele nossos povos tenham vida. “Eu sou Caminho, a Verdade e a Vida” (Jo 14,6). A exemplo das demais, ela não pretende ser apenas uma reunião de bispos, mas uma assembléia da Igreja na América Latina e no Caribe, à qual conflua a participação e a colaboração de todas as Igrejas Locais, através de suas respectivas Conferências Nacionais. O presente e intitulado Documento de Participação tem como finalidade animar e orientar a participação das comunidades eclesiais na preparação desta Va. Conferência, cujo tema central é o discipulado e a missionariedade.


A contribuição das comunidades deverá ser dada a partir do preenchimento de algumas fichas, até novembro de 2006.  Na seqüência, a partir da compilação das contribuições, a ser elaborada pelas Conferências Episcopais Nacionais, se redigirá um Documento Síntese, que será ponto de partida para o trabalho dos Bispos na Va. Conferência.


As reflexões deste estudo se inserem neste tempo privilegiado e importante de preparação. Buscam contribuir com dois objetivos concretos: primeiro, oferecer uma apresentação sintética do conteúdo do Documento de Participação, visão de conjunto dos temas tratados; segundo, fazer um comentário analítico do Documento, chamando atenção sobretudo para os seus limites e vazios, uma vez que se trata de procurar enriquecê­lo.


 


Os dois objetivos serão objeto dos dois pontos que seguem.


 


I ­ Apresentação sintética do Documento de Participação


 


Para a apresentação do Documento, seguimos sua estrutura, elencando sob os títulos do próprio texto os seus conteúdos, de forma telegráfica e indicando o número correspondente. Vamos ao texto.


Introdução


­ O Documento de participação busca suscitar a participação mais ampla possível nesta etapa de preparação, nesta hora da graça e de orientação pastoral.


 


I. O anseio de felicidade, verdade, fraternidade e paz (1­20)


 


A. Um anseio universal


(1) Somos todos buscadores e peregrinos da felicidade: no mais profundo de nosso ser há fome de amor e de justiça, de liberdade e verdade, sede de contemplação, de beleza  e de paz, ambição de plenitude humana, ânsia pelo lar e pela fraternidade.


(2) O que buscamos supera totalmente as dimensões e as possibilidades de vida neste mundo, abrindo caminho para nossa sede de Deus e vocação para o céu.


(3) Contudo, já neste mundo somos cada vez mais felizes à medida em que formos imagem e semelhança de Deus ­ o Pai, o Filho e o Espírito Santo, a comunidade das três pessoas felizes.


(4) Na história da humanidade, todavia, pessoas e povos se extraviam, perseguindo sua realização por caminhos errados.


 


B. À luz da revelação


(5) A revelação ilumina os anseios mais profundos de nosso ser.


(6) No AT, Deus se manifesta como Senhor da História, Legislador e Juiz.


(7) Com Abraão e os patriarcas, conclama ao amor e ao respeito fraterno, sem ídolos, sem misérias nem escravidões.


(8) Em Moisés, deu­nos o dez mandamentos, ainda hoje caminho para a felicidade.


(10) Pela encarnação-morte-ressurreição, Jesus se fez nosso Caminho.


(13) As Bem­aventuranças são o código da felicidade e sustentam nossa esperança nas tribulações.


(14) Para viver as Bem­aventuranças, nos fez apóstolos, testemunhas e colaboradores dele e para isso nos enviou o Espírito Santo.


(15) O seguimento implica abraçar a cruz de Cristo, em que o sofrimento é oferta filial.


(16) O cristianismo nasceu e se espalhou como Boa Nova para a humanidade.


(17) Como Boa Nova surgiram as primeiras comunidades, depois de Pentecostes.


(18) Apesar das perseguições, o cristianismo se expandiu na antiguidade como verdadeira explosão de alegria, corrente de fé, sabedoria e esperança.


(19) Na delegação de Jesus aos apóstolos ­ “Ide e fazei que todos os povos se tornem discípulos”, a Igreja foi muito mais além das fronteiras do Império Romano.


(20) O cumprimento da delegação de Cristo foi acompanhado pelo martírio, na alegre esperança de acompanhá­lo no céu.


 


II. Desde a chegada do evangelho à América Latina e ao Caribe vivemos nossa fé com gratidão


 


A . Nossos povos receberam a bênção do encontro com Jesus Cristo (21-30)


(21) Por sábio e bondoso desígnio da Providência divina, chegou até as terras deste Continente esta corrente de amizade com Deus, de vida nova e de promoção humana, iniciada por Jesus Cristo e que o Espírito Santo impulsiona ao longo dos séculos.


(22) Encontro precedido pela presença de Deus, em ‘sementes do Verbo’, em muitos valores, que predispunham à recepção mais pronta do Evangelho.


(23) A Virgem de Guadalupe ajudou a abrir as portas do coração dos povos autóctones para Jesus Cristo.


(24) Nosso radical substrato católico foi estabelecido e dinamizado por uma legião missionária de bispos, religiosos e leigos.


(25) Contudo a evangelização teve luzes e sombras, como atestam Bartolomeu de las Casas, Juan de Zumárraga, Vasco de Quiroga, Juan Del Valle, Julián Garcés, José de Anchieta, Manoel da Nóbrega e tantos outros.


(26) A própria evangelização constitui uma espécie de tribunal de acusação para os responsáveis por aqueles abusos.


(27) Solidarizamo­nos com a dor dos conquistados, submetidos à escravidão, conforme já pediu perdão o Papa João Paulo II (holocausto desconhecido).


(28) Tempos dolorosos também foram as crises do séc. XIX e princípios do XX (Igreja perseguida). O Vaticano II iria renovar o dinamismo evangelizador.


(30) Principalmente a partir de Medellín há uma nova etapa  de nossa história, em que a Igreja busca contribuir com a construção de uma nova sociedade.


 


B. Uma Igreja viva, fermentada pela experiência da graça de Deus (31-35)


(32) A herança recebida, no Continente da Esperança, compromete a Igreja a dar uma resposta alegre e missionária aos que buscam sentido.


(33) As peregrinações do Papa João Paulo II constituíram um marco indelével.


(34) Sinais de esperança, que mostram que a semeadura de Deus cresce: 90% da população crêem em Deus; as alegres celebrações litúrgicas e a vida das paróquias, de suas comunidades de base e dos movimentos eclesiais; a piedade e religiosidade populares; as paróquias missionárias; esforços da Igreja, nos quais participam religiosos e religiosas, na Nova Evangelização, com dedicação aos pobres; as grandes instruções dadas por João Paulo II, convocando­nos ao encontro do Cristo vivo e a globalizar a solidariedade; a participação dos leigos (ministros da Palavra, catequistas); as escolas de formação inicial e contínua de diáconos permanentes; a pastoral da juventude; a pastoral vocacional, inserida em pastoral orgânica diocesana, em estreita vinculação com a pastoral familiar e da juventude; a pastoral da família, santuário da vida; a pastoral dos presbíteros, com encontros em pequenas comunidades; a pastoral social: opção pelos pobres, libertação, conteúdo evangélico e teológico da libertação; o espírito de comunhão, participação e co-responsabilidade, manifestado nas Cebs, ministérios leigos e conselhos pastorais; o autofinanciamento das Dioceses; o diálogo ecumênico e inter­religioso, em especial com as comunidades judaicas.


 


III. Discípulos e missionários de Jesus Cristo (36-93)


 


(36) Em Puebla, João Paulo II chamou a atenção sobre a verdade de Jesus Cristo, da Igreja e do homem.


(37) Essa verdade remete à identidade da vocação e missão cristãs, na realidade do Continente, que ultimamente o CELAM através do estudo sobre as ‘megatendências’ de nosso tempo e sobre a globalização buscou dar maior clareza.


(38) O tema da Va. Conferência coloca­se nesta perspectiva.


 


A. Pelo encontro com Jesus Cristo vivo (39-43)


(39) O encontro com Jesus Cristo é raiz, fonte, ápice da vida da Igreja e fundamento do   discipulado e da missão.


(40) Jesus Cristo é e será sempre a verdadeira novidade, que supera todas as expectativas da humanidade.


(42) O encontro vital com o Senhor nos introduz nas dimensões mais profundas da vida.


(43) Va. Conferência: oportunidade para refletir sobre a profundidade de nosso encontro com Jesus Cristo vivo e sobre a intensidade de nosso ardor missionário.


 


B. Discípulos de Jesus Cristo (44­65)


(44) Na perspectiva da Nova Evangelização, com relação às demais Conferências, é necessário dar um passo a mais: chegar ao indivíduo que responderá aos grandes desafios de nosso tempo.


(45) Discípulo de Jesus Cristo é aquele que, repleto de assombro, recebeu o Senhor.


(46) A primeira experiência do discípulo consiste no chamado pessoal que Jesus lhe faz, na vontade de segui­lo, de assemelhar­se a ele e de vincular­se a uma comunidade de fiéis, na qual discerne sua missão na Igreja e na sociedade. 


(49) A escolha e o chamado de Cristo requer ouvidos de discípulo.


(50) Uma resposta de amor a um chamado de amor


(51) Em que o discípulo entra em comunhão de vida e missão com Jesus Cristo.


(52) Comunhão plena se dá na Eucaristia.


(55) Formação do discípulo, consiste em fazer­se discípulo da Palavra (56)


(58) Na vivência sacramental, o discípulo de Jesus encontra a presença e a ação salvífica.


(59) Um itinerário de iniciação cristã comporta várias etapas: anúncio da Palavra, acolhimento da mesma e conversão, profissão de fé, efusão do Espírito Santo e acesso à comunhão eucarística.


(64) Maria de Nazaré, a primeira e mais perfeita discípula que, desde a encarnação, gravou em seu coração o Evangelho.


(65) Em Maria encontramos todas as características do discipulado: escuta amorosa e atenta, obediência sem limites à vontade do Pai e fidelidade até à cruz.


 


C. Discípulos em comunhão eclesial (66-77)


(66) O chamado cria entre os discípulos comunidade fraterna.


(69) Uma comunidade unida é condição para a formação do discípulo: casa e escola de comunhão e solidariedade.


(70) O discípulo não pode viver sem o domingo, no encontro com a Palavra e a Eucaristia.


(71) A comunhão dos discípulos mostra sua unidade por meio da diversidade e da pluralidade, recordando que é imagem do Deus Uno e Trino.


(72) A tarefa de construir a comunhão eclesial realiza­se de modo orgânico por meio dos diversos ministérios, carismas e serviços, na colaboração de todos.


(73) Papel especial têm as diferentes formas de movimentos e associações, em que a vida paroquial e a diocesana devem expressar seu caráter de ‘comunidades de comunidades e movimentos’.


(74) A identidade e missão do presbítero se fundamentam no encontro com Jesus Cristo vivo e seu seguimento desenvolve­se na vivência de comunhão presbiteral com o Bispo e se projeta na caridade pastoral.


(75) No caminho do discipulado, a vida consagrada tem uma missão insubstituível, com coração não dividido, “estar com Jesus e pôr­se, como ele, a serviço de Deus e dos homens”.


(76) Para essa tarefa, se requerem projetos de formação exigentes e diferenciados para todos: bispos, presbíteros, diáconos permanentes, consagrados e leigos.


 


D. Discípulos para a missão (78-93)


(78) “Ele me ungiu para evangelizar”. “Como o Pai me enviou, eu também vos envio”.


(79) O caráter missionário de cada discípulo: “Ide e fazei que todos os povos se tornem meus discípulos”.


(80) Pelo sentido de pertença a uma comunidade, o discípulo assume a edificação e a missão da Igreja.


(82) A experiência de conversão do discípulo, prepara­o para dar testemunho diante daqueles que foram batizados e impele­o a sair ao encontro dos que têm sede de Deus e não conhecem seu rosto.


(83) Ser missionário implica respeito aos diversos grupos culturais: indígenas, afro­descendentes e imigrantes, buscando uma inculturação maior da liturgia.


(84) Para isso, é necessário pobreza de espírito para peregrinar pelos caminhos das bem­aventuranças, na perspectiva do ‘abaixamento de Jesus’.


(85) O discípulo é chamado a permanecer no amor de Cristo, de modo especial, em seu amor misericordioso e preferencial pelos pobres, urgido que está a viver a autêntica solidariedade.


(86) Especial atenção merecem os construtores da sociedade, chamados a desprezar estruturas marcadas pelo pecado e a trabalhar por uma nova ordem social, mais justa, eqüitativa e includente.


(87) Outras urgências: a defesa da vida, desde a concepção, e da família, a participação política, a defesa do direito ao trabalho, a distribuição eqüitativa dos bens.   


(88) Os discípulos de Jesus Cristo são chamados a viver e a propor outro caminho: o da dignidade   humana e da liberdade, da participação, da solidariedade e da austeridade de vida.


(89) Diante da resistência de nossa cultura ao mistério da Cruz, voltar a tomar a cruz e seguir o Mestre.


(90) Enche nosso coração de gratidão a fidelidade de irmãs e irmãos da América Latina e do Caribe, que fizeram do século XX, um século de mártires.  


(91) Outro campo prioritário para o discípulo de Jesus é a busca de unidade entre todos os que cremos em Cristo (trabalho ecumênico)


(92) Sobre a Igreja na América Latina e no Caribe incumbe também o chamado à missão ‘ad gentes’, missionários que levem a Boa Nova de Jesus Cristo a outros povos e continentes.


 


IV. No início do Terceiro Milênio


 


A. Vivemos em meio às dores de parto de uma nova época (94-111)


(94) A América Latina e o Caribe são desafiados pelas mudanças religiosas, éticas e, em geral, culturais, que marcam as dores de parto de uma nova época.


(95) Ao nosso redor, há sinais do crepúsculo de uma era da humanidade que termina e do amanhecer de uma nova época.


(96) Há novos fenômenos que convidam a um discernimento.


(97) O primeiro dado dessa mudança, é que conseguiu­se adentrar no macrocosmo (conquista espacial) e no microcosmo (investigação genética).


(98) A relação com a natureza também mudou: temos consciência da inter-relação e interdependência dos seres entre si, uma realidade que o ser humano deve aceitar e respeitar.


(99) Na promoção de uma autêntica ‘ecologia humana’, é preciso tomar consciência que a família sofre embates muito fortes.


(100) O matrimônio é violentado por sua desvinculação da procriação e pela separação entre amor e sexualidade.


(101) Muda também o sentimento sobre a identidade e missão da mulher: da maternidade abrem­se espaços ao mundo social, sem ser mera competição com o homem.


(102) Há a mudança da revolução industrial à sociedade do conhecimento e da informação.


(103) Os avanços, entretanto, nem sempre são a serviço do ser humano, por isso, crescem as desigualdades entre os que possuem o capital (dinheiro e informação) e os mais pobres. Cresce o número dos marginalizados.


(104) Estas mudanças afetam a busca da verdade e, com ela, a busca dos comportamentos éticos. Tende­se a pensar que verdadeiro é aquilo que agrada, dá prazer e favorece o consumo, caindo­se numa ética individualista, fundada na ‘minha verdade’.


(105) Há tendência de emancipar a liberdade em relação à verdade e ao bem.


(107) Há uma consciência contrária a discriminações mas, com freqüência, alheia à verdade e ao bem.


(108) O atual processo de mudança provoca profundo desenraizamento, gerando grande insegurança, desconcerto e, por vezes, angústia.


(109) Há novas tendências no campo religioso, como o emocionalismo e novos fundamentalismos.


(110) Diante disso, a proposta cristã é a revelação de Deus em Jesus Cristo, ‘centro do cosmo e da história’.


(111) A mensagem de esperança é Jesus Cristo que vence pela cruz.


 


B. A globalização, um desafio para a Igreja (112-123)   


(112) Nesta mudança de época, a globalização é um fenômeno real e complexo.


(113) Características importantes: comunicação mundial, enriquecimento do saber, avanço tecnológico, velocidade das mudanças, geração de novos paradigmas.


(114) A globalização tem aspectos negativos, mas será aquilo que dela fizermos. 


(115) A globalização, além de produzir efeitos de integração, é acompanhada de assimetrias.


(117) Simultaneamente ao processo em curso, podemos constatar outro processo a partir da base, de defesa de  identidade cultural, da natureza, das organizações e grupos humanos que se sentem ameaçados, criando­se extensas redes de defesa dos direitos, de consumo, de produção, de intercâmbio, de financiamento etc.


(118) A globalização econômica gera riqueza, mas também pobrezas e marginalizações diversas.


(119) A ameaçadora degradação ambiental, faz do continente uma das regiões menos eqüitativas do mundo; a brecha entre ricos e pobres se amplia e mantém a grave injustiça social, que freia o possível desenvolvimento humano de milhões de habitantes.


(120) A globalização dos meios de comunicação social modela as mentalidades e as culturas, operando mudança de valores.


(121) Há uma alteração da identidade cultural de quase todos os povos: promove­se o culto ao eu, ao dinheiro e ao prazer.


(123) É crescente a mobilidade humana, tanto interna como internacional.


 


C. As esperanças e tristezas de nossos povos nos interpelam (124-139)


(125) O fenômeno da globalização e o avanço das comunicações permitiu uma abertura maior ao mundo, produzindo no seio dos povos uma ruptura crescente em relação ao seu patrimônio cultural, seus valores tradicionais e seu estilo de vida.


(126) Em nossos países,  continua sendo escandalosa a persistência da pobreza, da miséria e do desemprego, em um subcontinente formado majoritariamente por cristãos, ainda que persistam entre os pobres grandes virtudes, como a solidariedade.


(127) Tornou­se presente em muitos países o protesto por uma justa incorporação dos povos originários aos benefícios e à condução da sociedade, o que implica respeito por sua cultura e por formas ancestrais de organização.


(128) As novas reformas educacionais denotam um claro reducionismo antropológico, uma vez que concebem a educação em função da produção, da competitividade e do mercado.


(129) O Estado encontra dificuldades para promover o bem comum, pressionado pelos sistemas financeiros e pelas corporações transnacionais.


(130) Há um majoritário apreço pela democracia formal, com deficiente penetração da democracia como cultura da participação, da solidariedade e da subsidiariedade.


(131) O cansaço frente à fraqueza dos governantes, há tendência a aplaudir o surgimento de líderes messiânicos ou caudilhos de estilo populista.


(132) No desenho das políticas de Estado, não prima a concepção cristã de autoridade, acompanhada de vida sóbria e zelo pelo bem comum.


(133) É palpável a crise das instituições políticas de representação e o surgimento de uma sociedade civil organizada de outras formas, assim como a decadência e atomização dos partidos políticos, sem identidades programáticas.


(134) Este fenômeno vem associado à perda da credibilidade dos servidores públicos, gerando ingovernabilidade e os escândalos de corrupção.


(135) A corrupção pública e privada aumentam de modo alarmante, favorecidas pela impunidade e o enriquecimento ilícito, freando o crédito e o investimento honesto.


(136) Há uma educação deficiente para o trabalho honesto e para o exercício da co-responsabilidade e das responsabilidades cívicas básicas.


(137) Grave deteriorização em alguns países é produzida pela produção de drogas e o narcotráfico, alimentados pela demanda em países desenvolvidos, fruto da tolerância e até da legalização do consumo.


 (138) Diversos grupos guerrilheiros se alimentam do narcotráfico, do seqüestro e de negócios encobertos, cuja contra­partida é o terrorismo de Estado.


(139) Há escassa consolidação e desenvolvimento dos processos democráticos, retardando a integração da América Latina e do Caribe.


 


D. Os católicos e a Igreja, também diante de outros desafios (140-158)


(141) Permanece o substrato católico de nossa cultura, mas encontra­se ameaçado pela sociedade globalizada.


(142) Esta seiva católica se expressou em uma rica religiosidade e piedade populares, com profunda confiança na Providência, no Espírito Santo, no Cristo Crucificado, em Maria, nos santos e no papa.


(143) Presente igualmente no sentido de família, de hospitalidade, de solidariedade nas desgraças, no sentido de justiça e no respeito pela vida.   


(144) Há uma nova valorização da religião como um bem social importante.   


(145) Entretanto, nas últimas décadas se observam uma diminuição da fé, um enfraquecimento do compromisso com a Igreja; uma mentalidade que, na prática, prescinde de Deus na vida, marcada pelo relativismo, pelo pragmatismo e pelo hedonismo.


(146) Emerge com renovada força um laicismo militante, que nega aos crentes manifestarem publicamente suas convicções e agirem de acordo com elas.


(147) Constata­se uma agressividade nova, aberta ou latente, contra a Igreja, sobretudo na liberalização dos costumes e das leis.


(148) O fracasso da cultura moderna e de uma pastoral que sustente e alimente a identidade católica, deram lugar a um agitado mercado de alternativas religiosas e um proselitismo contra a Igreja católica.


(150) Quanto à presença da Igreja, custa-nos ser profetas e apresentar Jesus e o Evangelho de modo propositivo e contradizer as ameaças.


(151) A Igreja se torna presente na sociedade por meio de suas formas habituais de evangelização: paróquias, CEBs, movimentos eclesiais (desintegrados), institutos de vida consagrada, escolas­universidades.


(152) No social, destacam­se a promoção e a defesa dos direitos humanos, individuais e sociais ou políticos, acompanhamento aos povos indígenas, formação dos cidadãos para a construção da democracia, a ação social em áreas como educação, saúde, moradia, pastoral carcerária etc.


(153) A Igreja vê com preocupação a violação dos direitos dos imigrantes, refugiados e deslocados.


(154) Descuidamos da formação dos leigos para o ordenamento das realidades temporais, pois apresentam fracas convicções éticas que os incapacita de cumprir no mundo sua responsabilidade com coerência cristã; não se pautam pela Doutrina Social da Igreja.


(155) Nos últimos dez anos houve uma diminuição no número de católicos, em alguns países em até 10%.


(156) Entre os leigos, debilita­se a recepção dos sacramentos, especialmente do matrimônio e assiste­se a uma dessacralização do domingo, o que urge uma formação catequética mais ampla e profunda.


(157)  O êxodo de católicos para comunidades pentecostais denota a busca de uma experiência comunitária mais estreita, para evitar a solidão e o isolamento, bem como de uma expressão religiosa mais emotiva e a oportunidade de maior protagonismo em comunidades menores.


(158) Para essas pessoas que abandonaram a Igreja, é necessário encontrar novas formas e expressões de presença e participação na comunidade.


 


V – Para que nele nossos povos tenham vida (159-174)


(160) Em meio às promessas de Deus, ficamos surpreendidos com a escolha que Deus faz de nós e o envio que, com força crescente, tornamos nosso para sermos luz do mundo e sal da terra, instrumentos de sua justiça, misericórdia e paz. Somos convocados a tomar resolutamente em nossas mãos a missão que ele nos entrega, para que “nele nossos povos tenham vida”.


(162) A Igreja sabe que sua missão prolonga na historia a missão de Cristo, incorporando a vida, a paixão e a ressurreição de Cristo.


(163) A vida nova em Cristo nos incorpora à comunidade dos discípulos e dos missionários de Cristo, à Igreja.


(164) Nossos povos têm sede de vida e de felicidade em Cristo.


(167) Queremos superar misérias e carências dos habitantes de nosso continente, com uma dedicação preferencial aos mais atormentados e contribuir para a formação de pessoas capazes de governar e de motivar para o compromisso com o bem comum.


(168) Urge promover uma cultura da vida pelo respeito à vida, pela gestação de famílias que sejam santuários da vida.


(169) O documento está aberto para receber muitas propostas de todos os países, contribuições que devem ser enviadas pelas Conferências episcopais.


(173)  A Va. Conferência quer impulsionar uma Grande Missão continental.


(174) Os Atos dos Apóstolos nos oferece a experiência de diferentes ‘estilos de missão’, que são modelos que nos servem também no terceiro milênio.


 


II ­ Comentário analítico do Documento de Participação


 


Uma vez visto o Documento, através de uma apresentação de forma sintética e telegráfica, o que evidentemente não dispensa sua leitura, vamos tecer agora alguns comentários analíticos, com a finalidade de ajudar no seu estudo. A partir da visão de conjunto dos conteúdos, vejamos qual é a proposta de fundo do Documento e o seu enfoque, ou seja, qual é sua visão de mundo, de ser humano, de Igreja, em resumo, qual é a sua teologia subjacente. O que se pretende com isso, não é influenciar nas decisões das comunidades eclesiais em seu processo de participação na preparação da Va. Conferência, mas simplesmente ajudá­las a refletir sobre os conteúdos e, assim, capacitá­las a enriquecer o Documento. O próprio CELAM chama atenção na introdução do texto, que o Documento de Participação ‘não é o esboço do documento final’, mas apenas ‘um convite incompleto’, à espera da contribuição de todos.


 


Nesta abordagem analítica do Documento, também sintética, teceremos três tipos de comentários: um, sobre a ordem dos conteúdos e o enfoque metodológico; outro, sobre os conteúdos dos cinco capítulos do texto; e, um terceiro, sobre a relação do Documento com a tradição latino­americana, a qual, como sabemos, historicamente se reivindica de uma ‘recepção criativa’ do Concílio Vaticano II.


 


Fonte: Agenor Brighenti

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