20/02/2006

Desmantelamento da política indigenista: articulações antiindígenas e genocídio dos Povos Indígenas

O Fórum em Defesa dos Direitos Indígenas (FDDI) vem a público manifestar seu repúdio aos recentes atos do Governo Federal que evidenciam intencional desmantelamento da política indigenista com flagrantes violações dos direitos consagrados dos povos indígenas, a exemplo da invasão e agressão da Polícia Federal aos Tupiniquim em Aracruz – ES, a expulsão dos Guarani de suas terras em Nhanderu Marangatu – MS, as pressões contra o povo Pataxó-Hã-hã-hãe no sul da Bahia e contra o povo Macuxi em Roraima, a determinação de prosseguir com a transposição e a construção de mais hidrelétricas no Rio São Francisco, em detrimento dos povos indígenas e outras comunidades da região, a tentativa de anular o Decreto de homologação da Terra Indígena Jacaré de São Domingos, do povo Potiguara, na Paraíba, e o descaso generalizado com a saúde dos povos indígenas em distintas regiões do país (Vale do Javari, sul do Pará, Maranhão, Roraima, Tocantins, Amapá, entre outros). Somam-se a estes fatos lamentáveis as recentes declarações do presidente da FUNAI, Mércio Pereira Gomes, que defendeu publicamente a intervenção do Supremo Tribunal Federal para limitar as reivindicações territoriais dos povos indígenas e para quem “até agora, não há limites para as suas reivindicações fundiárias”.


 


O FDDI considera inadmissível que o Governo brasileiro assuma e corrobore, por intermédio de alguns de seus representantes, políticas antiindígenas levadas por fazendeiros, governadores e políticos ligados ao agronegócio, com apoio de segmentos do Judiciário e do Legislativo (a exemplo das recentes declarações do presidente da Câmara dos Deputados, Aldo Rebelo que conclama o Congresso a alterar o artigo 231 da Constituição).


 


Em seus recentes atos o Governo Federal, por meio dos titulares atuais da execução da política indigenista, tem deixado cada vez mais patente seu alinhamento com os setores antiindígenas da sociedade, privilegiando claramente os supostos efeitos de “caixa” do agronegócios contra as demandas indígenas.


 


Afora a desastrosa execução das ações de saúde, com um número assustador de mortes já amplamente divulgado pela mídia nacional e internacional, e a falta de reconhecimento e implementação de uma educação escolar indígena verdadeiramente diferenciada, a paralisia dos processos de reconhecimento de terras indígenas é exemplo iminente deste alinhamento.


 


A mobilização do Abril Indígena, ocorrida em abril de 2005 solicitou às autoridades do governo federal, em especial ao Ministro de Estado da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, providências para a conclusão dos processos administrativos para a demarcação de 14 terras indígenas que se encontrava em análise no Ministério da Justiça, aguardando terem seus limites declarados para efeito de sua demarcação administrativa. Passados 10 meses dessa solicitação, não houve nenhuma resposta por parte do Ministério e apenas uma terra indígena, Yvy Katu do povo Guarani-Nhãndeva, no Mato Grosso do Sul, teve seus limites declarados.


 


Ao contrário do que havia prometido, em audiência realizada com lideranças da mobilização indígena de abril, o Ministro da Justiça tem retardado as providências administrativas para a demarcação das terras indígenas, tornando prática comum a devolução dos procedimentos à presidência da Fundação Nacional do Índio (Funai). Foram tratados dessa forma, entre outras, as seguintes Terras: Manoki (MT), Morro dos Cavalos (SC), Toldo Imbu (SC), Balaio (AM), Pitaguary (CE), Cachoeirinha (MS) e Kariri-Xokó (AL). Ao todo são 29 terras indígenas  com procedimentos paralisados, num verdadeiro limbo administrativo entre o Ministério da Justiça e a Funai. E em todos os casos o prazo fixado no Decreto n° 1.775/96 para o Ministro da Justiça decidir sobre a demarcação não foi cumprido. A cada ano os números de Portarias Declaratórias baixadas pelo Ministro vêm sendo reduzidos.


 


Seguindo idêntica orientação, a Funai tem reduzido o número de Grupos Técnicos (GT) destinados à identificação e delimitação das terras indígenas. No primeiro semestre de 2005 nenhum novo GT de identificação e delimitação de terra indígena foi criado. Apenas uma pequena terra foi delimitada, Sapotal, do povo indígena Kokama (AM). A Funai não deu seqüência aos 28 estudos de identificação realizados nos dois últimos anos. Ficaram sem seqüência também os Grupos de Trabalho criados para rever limites de 18 terras indígenas. Longas prorrogações de prazo para entrega de relatórios de identificação estão sendo concedidas, a exemplo das terras Tapeba (CE) prorrogada por 638 dias, Tumbalalá (BA) por 308 dias e Karintiana (RO) por 306 dias.


 


No contexto desta premeditada paralisia, ainda existem cerca de 240 Terras Indígenas reivindicadas pelos povos indígenas junto à Funai aguardando que este órgão tome as iniciativas para a sua regularização e das quais apenas 64 tiveram seus processos administrativos para demarcação iniciados.


 


Esses entraves verificados nos procedimentos administrativos para a demarcação das terras indígenas revelam claramente a determinação política de impedir que tais procedimentos sejam concluídos e coincidem, na maioria esmagadora dos casos, com a pressão da base parlamentar e política de sustentação do Poder Executivo Federal no Congresso Nacional. Percebem-se graves indícios de que o Governo Federal tem cedido às pressões de articulação de forças políticas e econômicas antiindígenas, notadamente nos Estados de Santa Catarina, Mato Grosso do Sul, Mato Grosso, Rondônia e Roraima, com intensa atuação principalmente no Congresso Nacional.


 


Evidências dessa determinação política foram: a inconstitucional consulta ao Conselho de Defesa Nacional, para que as homologações das demarcações de terras tradicionalmente ocupadas por índios sejam assinadas pelo Presidente da República; a igualmente inconstitucional criação de Comissão constituída por representantes da União e do Estado de Santa Catarina para analisar as áreas a serem demarcadas; e a paralisia dos procedimentos de demarcação de terras indígenas no Estado de Mato Grosso, como resultado do pedido do Governador de uma “moratória” na demarcação das Terras Indígenas naquele Estado.


 


Dessa forma, as diligências destinadas a esclarecimentos técnicos dos procedimentos administrativos de demarcação, suscitadas pelo Ministro da Justiça e pelo Presidente da Funai assumem caráter protelatório. A resistência em não rever os limites das terras indígenas demarcadas com vícios no passado e em não implementar a demarcação das terras dos povos que reassumiram ou que estão reassumindo sua identidade étnica, caracterizam aspectos da mesma resistência político-administrativa, em atenção a interesses políticos e econômicos contrariados.


 


Como conseqüências das mais graves desta paralisia, constatam-se o  crescimento do número de conflitos pela posse da terra indígena, expondo membros de comunidades e lideranças indígenas à violência e ao extermínio, que conta com apoio decorrente do avanço acelerado da devastação ambiental promovida pelo agronegócio e por mineradoras sobre as Terras Indígenas. Desrespeita-se a vida humana, como nos assassinatos das lideranças Guajajara, do Maranhão, Nhãndeva, do Mato Grosso do Sul e Truká, em Pernambuco, e promovem-se gigantescos saques aos recursos naturais nas Terras Indígenas, já evidentes nas terras Manoki, do povo Irantxe e Batelão, do povo Kayabi, e dos povos isolados do Rio Pardo, todas no Estado do Mato Grosso.


 


Durante o Abril Indígena de 2005, os mais de 800 líderes indígenas reivindicaram ainda a criação de um Conselho Nacional de Política Indigenista (CNPI), composto por representantes dos povos indígenas, das entidades de apoio à causa indígena e do Governo Federal, com competência deliberativa para coordenar as políticas e ações governamentais dos vários Ministérios voltadas aos povos indígenas. Esse conselho deveria ser criado por lei.


 


Após meses de negociações com o Governo Federal para criação desse Conselho, as lideranças indígenas concordaram na constituição, por decreto, de uma Comissão Nacional de Política Indigenista, no âmbito do Ministério da Justiça. Essa comissão teria, entre outras atribuições, o papel de coordenar as ações do governo dispersas nos diferentes ministérios, acompanhar as ações legislativas e elaborar um ante-projeto de lei de criação do Conselho  e que integraria, de forma permanente, a estrutura básica da administração pública federal. Essa comissão deveria ser criada no início desse ano, mas estranhamente o governo rompeu o dialogo e não dá sinais de que pretende continuar com as discussões ou até mesmo editar o decreto já acordado com os representantes dos povos indígenas.


 


Portanto, pode-se afirmar que até agora o saldo da política indigenista do atual governo é negativo. O governo brasileiro não mais demarca as terras indígenas, faz uma política de abandono no atendimento à saúde indígena, não garante uma educação escolar indígena verdadeiramente diferenciada, e não cumpre a sua obrigação legal (Convenção 169 da OIT – Decreto nº 5.051, de 19 de abril de 2004) de garantir aos povos indígenas a participação na elaboração e execução das políticas públicas que tratem dos seus interesses.


 


Diante deste contexto, o Fórum em Defesa dos Direitos Indígenas vem a público repudiar a paralisia e descaso que caracteriza a política indigenista do Governo brasileiro. Reitera todas as reivindicações, apresentadas na mobilização do Abril Indígena de 2005, especialmente para que sejam retomados e concluídos os processos administrativos para a demarcação das terras tradicionalmente ocupadas pelos Povos Indígenas. O Fórum requer isso não apenas para fazer cumprir a Constituição Federal e evitar perdas humanas e materiais para os povos indígenas, como também para não gerar uma falsa expectativa de que as demarcações das Terras Indígenas estão chegando ao fim.


 


É fundamental que os cidadãos e as cidadãs brasileiros e as entidades da sociedade civil brasileira se unam aos povos indígenas, com o apoio da comunidade internacional, para que este cenário genocida seja imediatamente revertido, na perspectiva do respeito aos direitos constitucionais e legais dos povos indígenas.


 


Brasília, 17 de fevereiro de 2006.


 


FÓRUM EM DEFESA DOS DIREITOS INDÍGENAS – FDDI


 


[1] São elas: Aldeia Condá/SC, Sarauá/PA, Cacique Fontoura/MT, Piaçaguera/SP, Ribeirão Silveira/SP, Baia dos Guató/MT, São Domingos do Jacapari e Estação/AM, Batelão/MT, Lãs Casas/PA, Xapecó/SC, Toldo Pinhal/SC, Matintin/AM, Potiguara de Monte Mor/PB, Tenharim Marmelos gleba B/AM, Boa Vista/PR, Taunay Ipegue/MS, Guyraroká/MS, Lagoa Encantada/CE, Arroio Corá/MS, Trombetas Mapuera/RR/AM/PA, Anaro/RR, Yvyporâ Laranjinha/PR, Xipaia/PA, Manoki/MT, Morro dos Cavalos/SC, Toldo Imbú/SC, Balaio/AM, Pitaguary/CE e Kariri Xokó/AL.


Fonte: FDDI
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