01/02/2006

Impulsos para vida e mística missionárias

10 lembretes para a Vida Religiosa após 40 anos do Vaticano II[1]


 


Paulo Suess


 


„Gente, vamos ad gentes!“


 


Estes 10 lembretes podem funcionar como lembretes, impulsos e imperativos para nossa missão cotidiana. Nos 40 anos pós-Vaticano II, o desdobramento do magistério universal da Igreja foi processado e fertilizado através do magistério latino-americano que está presente não só nos documentos de Medellín (1968), Puebla (1979), Santo Domingo (1992), da CLAR, da CNBB e da CRB, mas também nas práticas pastorais e no chão martirial do povo pobre e de seus agentes pastorais que deram a vida pela causa do Reino.


 


1. Da origem


Deus é amor que se revelou como Deus-Trindade. Esse amor trinitário transborda, como uma fonte, nas relações entre o Pai, o Filho e o Espírito Santo, e nas missões do Filho (encarnação) e do Espírito Santo (doação). Jesus, o Enviado do Pai, coloca os discípulos na linhagem da “Missão de Deus”: “Como tu me enviaste ao mundo, também eu os enviei ao mundo” (Jo 17,18). Por causa desta origem a Igreja peregrina é por sua natureza missionária (Ad gentes, 2).


 


2. Da meta


A Igreja – Povo de Deus (Lumen gentium, 9-17) – povo messiânico e profético – nasceu da “Missão de Deus” que se dirige, em Jesus Cristo, historicamente, a toda a humanidade. Jesus enviou seus discípulos para anunciar a boa notícia da assunção, da recapitulação e da reintegração da humanidade e do mundo no projeto de Deus (Nova Aliança). Na festa de Pentecostes, o conjunto dos discípulos se torna explicitamente Igreja – Povo de Deus. Este povo vive o envio trinitário no seguimento de Jesus, anunciando o Reino como meta historicamente relevante e escatologicamente significativa, como a vida religiosa. O novo Povo de Deus convoca toda a humanidade para o encontro definitivo com Deus. É um povo que tem como horizonte um mundo sem fronteiras. Procura, como seu Mestre de Nazaré, empurrar fronteiras religiosas e étnicas, geográficas e culturais. Não terceiriza essa tarefa para o mercado. A Missão vem de Deus e volta para Deus.


 


3. Dos protagonistas


Em seus discursos axiais da Sinagoga de Nazaré (Lc 4), das Bem-aventuranças (Mt 5) e do Último Juízo (Mt 25), Jesus de Nazaré é muito claro. Os protagonistas e o núcleo central de seu projeto, que é o Reino, são as vítimas (os pobres, contritos, cativos, cegos, famintos, sedentos, oprimidos, odiados, peregrinos estranhos, maltrapilhos, enfermos). Mas estes não são apenas os protagonistas ou os destinatários do projeto missionário, são também os representantes de Deus no mundo. Como tais apontam para um outro mundo que é necessário, possível e real. Um dos novos imperativos é a tradução da opção pelos pobres para uma opção e articulação missionária com os pobres. Para os pobres reserve-se sempre o melhor: o melhor tempo, o melhor vestido, o melhor espaço. O Povo de Deus que participa não só do sacerdócio comum de todos os fieis (cf. LG 10), mas também da infalibilidade “no ato de fé” (LG 12), se constitui a partir dos pequenos, pobres e excluídos. Na lógica do Reino, os outros, os pobres e os que vivem na esfera sombria do mundo, são caminhos da verdade e porta para a Vida. Isso é um indicativo para a importante tarefa da escolha e formação de lideranças.


 


4. Dos conflitos


A Igreja – Povo de Deus que caminha até os confins do mundo e do tempo, vive a sua missão no meio de conflitos. Por conseguinte, essa missão é sempre uma missão profética, disposta a perder tudo. Na vida religiosa, os votos apontam para essa disponibilidade da perda total. Ao colaborar na construção do projeto de Deus denuncia o antiprojeto. O antiprojeto é o reino do pão não partilhado, do poder que não se configura como serviço, do privilégio que favorece a acumulação e do prestígio que organiza eventos de ostentação em vez de articular processos de transformação. No início da vida pública de Jesus, este antiprojeto está presente nas tentações (Lc 4,1). Reconhecemos, hoje, o antiprojeto no mundo formatado pelo sistema neoliberal, com a sua lógica de custo-benefício, de concentração de renda (os latifúndios) e de exclusão.


 


5. Da missão


A partir dos conflitos que envolvem os pobres e os outros, os excluídos e os que sofrem, compreende-se a missão como anúncio de uma boa nova, militância por um mundo melhor e por transformações históricas e pessoais concretas. A missão é integral (abrange a pessoa em sua totalidade: corpo, alma, espírito, intelecto, corporal, emocional, racional espiritual), específica (junto a um determinado grupo social: campo, cidade, afro-americanos, indígenas, pescadores, sem-teto, excluídos, África ou Ásia) e universal (articulação dos diferentes segmentos sociais na causa comum do Reino). A missão vai dos contextos concretos das Igrejas locais até os confins do mundo. A missão convoca para fundar comunidades, e essas comunidades se realizam pelo envio (exogamia). O Povo de Deus vive universalmente contextualizado. A missão faz parte do nosso ser eclesial. Não temos mais Missões, somos missionárias e missionários.


 


6. Do anúncio


O anúncio missionário tem uma estrutura pascal e pentecostal. Isso significa, em sua dimensão psicológica, ter coragem, ou melhor, não ter medo diante da finitude da vida. A luta não foi, nem será em vão! Em sua dimensão teológica significa, anunciar a justiça da ressurreição nos diferentes contextos sociais e culturais. Através da ressurreição de Jesus, Deus rasgou a sentença da morte do Justo. O anúncio missionário é um anúncio em defesa da vida em todas as suas dimensões (desde a não-manipulação de embriões até as questões ecológicas). A operacionalização deste anúncio acontece através de múltiplos sinais de justiça e imagens de esperança.


 


7. Da visão do mundo


Cultivamos o trigo, não o joio (cf. Mt 13,24-30). Sabemos, porém, que o joio faz parte da realidade histórica. O mundo dos “puros“ seria um mundo do terror e da intolerância. A ambivalência da realidade histórica, das pessoas e do mundo e as estruturas de pecado que atravessam o mundo, não anulam a graça. Somos otimistas. O mundo é essencialmente bom porque foi criado e redimido por Deus. Acreditamos na presença de Deus no outro e em nós, mas temos consciência da fragilidade de nossas obras. Sabemos que carregamos a graça de Deus em vasos de barro. Acreditamos na dimensão escatológica do Reino, mas não adiamos nossos sonhos para o além. Não abrimos mão do fim almejado no aqui, agora e hoje. O fim pode estar presente nos passos do cotidiano. A ternura do amor que é pra já, e o olhar místico nos fazem ver em redor de nós e, ao mesmo tempo, ver longe. Ação articulada com luta e contemplação pode transformar a mera agitação e o trabalho cotidiano ´sem graça` em ação salvífica.


 


8. Dos meios


Trabalhamos com o culturalmente disponível. Assumimos contextos e culturas onde experimentamos a “preparação evangélica” do Verbo, desde a criação do mundo. A solidariedade missionária se realiza através da inculturação concreta nos contextos (cf. Gaudium et spes, 32). Meios sofisticados são um contra-testemunho para a missão. A eficácia missionária não está nos instrumentos utilizados, mas na coerência entre a mensagem do Reino e sua contextualização, também através do nosso estilo de vida. Entre todos os meios, porém, a partilha, simbolicamente celebrada na Eucaristia, é o “instrumento“ mais eficaz da missão porque permite ver e seguir Jesus. Ao repartir o pão, os discípulos de Emaús reconheceram Jesus ressuscitado. Só o pão repartido vai saciar a fome do povo.


 


9. Da identidade


A identidade missionária é a identidade do caminho. Peregrinamos no mundo sem ser do mundo. A peregrinação nos faz irmãos e irmãs dos migrantes, dos sem-teto e sem-terra. Abrimos caminhos, não casas. Somos esperança de água no tempo de seca, esperança do pão no tempo de fome, esperança de sentido, num mundo absurdo. Somos esperança pela nossa presença, pelo testemunho, pelo serviço e pelo anúncio do Reino. Somos cidadãos do Reino, não funcionários de instituições ou sistemas. Somos areia, não óleo nas máquinas do antiprojeto. O caminhar na utopia do Reino constitui a forma mais radical da partilha.


 


10. Da gratuidade


O Evangelho da Graça se faz presente em todas as formas de doação da vida: no diálogo paciente, na presença silenciosa, no testemunho, na contemplação e na ação, na caridade, na misericórdia e na justiça. Tudo que sustenta a esperança num mundo em desespero é um desdobramento da Boa Nova. A fundação da Igreja na festa de Pentecostes e a gratuidade da salvação ligam ação e anúncio missionário de um modo especial ao Espírito Santo. A Igreja da Nova Aliança fala todas as línguas e supera a dispersão de Babel (cf. Ad gentes, 4). O Espírito Santo é o pai dos pobres e o protagonista da missão, mas ele também é dom divino. As três formas do agir de Deus são, segundo Sto. Agostinho, criar (a pessoa humana), gerar (Filho de Deus) e doar (Espírito Santo). O Espírito Santo é Deus no gesto do Dom. Na gratuidade se concretiza a resistência contra a lógica hegemônica de custo-benefício (cf. Ef 2,8s). A gratuidade é a condição da não-violência e da paz. A gratuidade aponta para a possibilidade de um mundo para todos.


 


Paulo Suess


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[1] Apresentado no Primeiro Congresso Missionário Interinstitucional, São Paulo, 21 a 23 de abril de 2005, organizado pelo Conselho Missionário Nacional/Comina.

Fonte: Paulo Suess (Assessor Teológico do Cimi)
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