01/02/2006

Pedras e horizontes

Apontamentos de um retiro no Cimi


 


Paulo Suess


 


De tudo ficaram três certezas:


estamos sempre começando,


no luto e na vitória


a luta continua


sem saber até onde chegamos;


podemos ser interrompidos


antes do tempo.


 


Façamos das pedras – caminho,


das perdas – memória,


da dor – oportunidades,


do medo – arado,


do sonho – ponte e horizonte.


 


No retrovisor da „mística missionária militante“, o caminho percorrido pelo Cimi e por outras pastorais populares está cheio de pedras e flores. As flores oferecemos aos povos indígenas, as pedras precisam dos nossos cuidados. Ao escutar os companheiros e as companheiras, vejo três pedras no caminho: a pedra da orfandade, do desencantamento e do aburguesamento. A meditação das pedras desperta nossa consciência crítica e auto-críticapode e nos remete às inspirações primeiras da caminhada, à missão, à militância e à mística que são os pilares que sustentam o teto da memória, do projeto e da esperança.


 


1. As pedras


As pedras no meio do caminho são alertas que têm muitos nomes. Podemos chamá-las de crise, estresse, questionamento, erros, acomodação. Falarei das pedras da orfandade, do desencantamento e do aburguesamento. Cada uma delas se cristalizou a partir de um longo processo em cujo origem está uma perda. A pedra da orfandade aponta para a perda do ninho político. A pedra do desencantamento aponta para o desgaste unilateral entre os pólos que constituem a vida em sua dimensão holística (corporal, espiritual, emocional, intelectual; social, individual, coletivo; trabalho, lazer); aponta também para a perda de equilíbrio na micropolítica do afeto. A pedra do aburguesamento representa o desejo difuso de participar das apropriações privilegiadas da elite. Os objetos do desejo, com sua insatisfação permanente, são como cachorros que latem contra a utopia de um mundo para todos.


 


1.1. A orfandade


Os que lutam em movimentos sociais sofreram uma decepção profunda ao perceber que „seu“ partido que se dizia ser um partido para todos, abandonou a militância e se debruçou com carinho sobre o projeto da elite até então combatida. O que seria a primeira mesada – um round tático – tornou-se mesa única. Para os peões ficou a promessa de „fome zero“.


A militância nos uniu ontem ainda com os governantes de hoje. Estávamos juntos nos protestos da rua, na marcha para Brasília, nas manifestações de Porto Seguro, nas ocupações do latifúndio, nas campanhas contra o ALCA. Parte significativa dos movimentos, hoje, está no governo e, na hora H, desliga o celular. Muitos ex-companheiros e ex-companheiras perderam, com a „sabedoria“ de governar, a coragem de agir. Olham para nós com um olhar que expressa o saber superior forjado pela ânsia do poder e reflete a pena com os abandonados no campo de batalha.


Apesar de suas brigas, às vezes nada fraternas, até ontem defendemos o partido a torto e direito, como se defendêssemos pai e mãe, irmãs e irmãos, fundadores de uma família que considerávamos nossa. E agora José? Perdemos companheiros e companheiras de luta, não só no campo de batalha, mas, sobretudo, na administração e na burocracia das repartições do novo governo. Não são traidores vis; apenas confirmam a experiência de que todo mundo pensa com a cadeira onde está sentado. Cuidado com as cadeiras!


E nós do Cimi, como tantos outros movimentos populares, ficamos com a sensação de abandono; com a dor da orfandade que se junta a uma dúvida que não se cala: Será que não aprendemos bem a lição da história?


Mas, a orfandade também tem seu lado positivo. Aponta para a necessidade de crescer, de criar relações adultas com os governantes e romper laços de parentesco com eles. Não são, nem devem ser tios, nem comadres. Podemos repensar a diferença entre favor e direito, rearticular outros espaços e novas alianças; priorizar a formação de lideranças indígenas e líderes populares.


 


1.2. O desencantamento


O grande peso que a „luta“ e o „projeto“ têm na vida de agentes pastorais e líderes populares, causa, muitas vezes, um desgaste unilateral entre os pólos que constituem uma vida em sua inteireza. A vida dos militantes é semelhante a um pneu de carro mal calibrado ou não alinhado. Enquanto o carro roda, adia-se a revisão na oficina. É fácil prever o desandamento do carro na próxima curva.


Os pólos que constituem a vida inteira – razão e emoção, epiritual e material, trabalho e lazer, luta e contemplação, privado e público, individual e coletivo – criam tensão, mas geram também luz. O preço da luz é a tensão entre os pólos. Se cair a tensão pelo desgaste unilateral de um dos pólos, cai também o tesão. Sem luz e tesão se instala o descontrole da agenda e a perda da noção de tempo, a hipersensibilidade e o narcisismo. Tédio, desencantamento e estresse tomam conta da vida.


O desencantamento pode se instalar nas relações de casa e no campo profissional. A luta tem seu preço. Antes de cuidar dos outros, às vezes, é preciso aprender cuidar de si mesmo. Cuidar de nós pode significar recontextualizar-nos. Quando falamos dos nossos ideais e citamos antigas palavras de ordem, como “Para nós nada, para o povo tudo” (Chê), a turma dos mais novos nos chama de “idealistas” que é uma forma gentil de dizer que nos consideram “dinossauros políticos”; intervêm na conversa, aparentemente, brincando: “Menos, por favor, menos!”


O desencantamento que uns entendem como novo realismo e outros como traição política, se insere num desencantamento da própria civilização ocidental que, a partir do século 17, fez do conceito de racionalidade o pivô do pensamento ocidental, subordinando os meios aos fins. A equação custo-benefício que paira no ar como uma inspiração divina, inaugurou o mundo pós-utópico. Nesta equação, a vida „inútil“ e „não produtivo“ dos velhos e dos que sofrem doenças sem cura, perdeu seu valor. O ser humano em relação, como imagen do Deus trinitário que garante a igualdade que permite que todos estejam em relação, uns com os outros, tornou-se metáfora obsoleta.


O processo de racionalização produziu o desencantamento do mundo. Expulsou o mistério pela razão, a gratuidade pelo cálculo, a alma pelo espírito, a providência divina pela causalidade natural e o mito pela história. O mundo desencantado é o mundo ocidental. Faz parte do mundo moderno. Não é o mundo moderno.


O cristianismo, com sua ética de trabalho e de ascese, sobretudo em sua vertente protestante, descrita por Max Weber, contribuiu para a racionalização do mundo ocidental. Desta fonte todos os movimentos sociais beberam. A ética de trabalho e de ascese está na origem da acumulação. Para ser ético, a pessoa acumula, necessariamente, porque ela é obrigada a controlar, asceticamente, a comida e a bebida, o tempo e o espaço, a fala e a sexualidade, o ócio e o negócio. „Reze e trabalhe“ ensinava a regra de São Bento e no campo de concentração de Auschwitz estava escrito: „Trabalho liberta“.


Essa ética de trabalho e de austeridade era consensual entre os companheiros e companheiras de luta. Sempre souberam que, na defesa da „causa“, o coletivo está acima do privado e o trabalho acima do prazer, afinal, tempo vale ouro.


Pressionados pela urgência da luta, muitas vezes, os movimentos imitaram os atalhos do autoritarismo dos adversários, a burocracia dos aparatos e a racionalidade do progresso que combateram. Na exaustão do trabalho, perdeu-se a noção de tempo. Era impossível cumprir a agenda e a macro-agenda obedecia a outras ordens e a outra coreografia.


Com a percepção de que o projeto já não é mais para hoje, e que sua realização já não depende de nós, instalou-se a dúvida se valeu a pena subordinar a micropolítica do afeto, do lazer e do prazer à macropolítica da „causa“ e do „projeto“. “Desencantados” vulneráveis, às vezes, até cegos, somos capazes de confundir o reencantamento da vida com o abandono do caminho; somos capazes de confundir a caminhada com um círculo vicioso: the show must go on. Às vezes, nós nos sentimos “livres” para trocar “parceiros”, em vez de mudar atitudes, e “pressionados” para trocar projetos, em vez de clarear horizontes.


 


1.3. O aburguesamento


O aburguesamento da antiga „classe operária“ e de movimentos que se transformaram em ONGs, é uma vitória do pensamento hegemônico e do mercado total. O mundo dominado pelo capitalismo de cunho neoliberal investe a maior parte de sua criatividade em propaganda, design e marketing. Tudo vale para transformar o próximo em cliente e as relações humanas em relações de mercado. O mercado disfarça o preço, destaca o prazer imediato e apela à libido. O latifúndio dos meios de comunicação produziu uma nova colonização. E nós, junto com lideranças indígenas e populares, não somos isentos e autônomos frente aos aliciamentos do capitalismo. Somos atravessados pelos desejos de poder, lucro e prazer que combatemos. Não só estamos no mundo, somos também filhas e filhos deste mundo.


O prazer que ontem expulsamos com um radicalismo unilateral e o afeto que subordinamos à agenda da luta, se vingam como „demônios expulsos“ que voltam com mais força. Algo dentro de nós está gritando por uma fatia de realização dos desejos e da utopia, já. Somos contemporâneos não só do socialismo, mas também do neoliberalismo. Assistimos a acomodação de antigos e novos campanheiros e companheiras ao espírito do tempo. E este tempo é diferente daquela época quando fomos iniciados na militância por um mundo radicalmente novo. Experimentamos entre nós que não somos imunes contra o vírus das parcerias na esquina do mal menor. Parece que venceu a data da nossa vacina contra a utopia consumista e seu desdobramento num aburguesamento light que alguns chamam de pós-moderno. Não somos traidores frios, mas, tendencialmente, adaptadores mornos. Frente ao horizonte utópico e regulativo, algo dentro de nós revindica participação da utopia consumista.


A „utopia consumista“ abre mão de um mundo para todos. Imagine, todo mundo tendo seu carro e computador, seu trabalho e plano de saúde, seus filhos estudando em Cambridge ou Oxford; todo mundo escolhendo a sua broa de milho na boutique de pão entre 60 pães diferentes, tendo seu apartamento na cidade e seu sítio na praia. Os bens da classe média-alta socializados com todos, quebrariam o ecossistema planetário. Quem pensa um mundo para todos precisa lutar contra os privilégios das elites. „Utopia já“ não pode significar aburguesamento light da militância. Significa sair do maniqueísmo e viver a vida em sua integridade, na luta e na contemplação; viver a afetividade irmanada com a racionalidade da luta, a presença do espírito na beleza do corpo, e a eficácia na locura da gratuidade.


 


2. O horizonte


Dedicamos nossa vida ao „projeto“ e à „causa“ dos povos indígenas e dos movimentos populares. A partir da nossa opção de fé, „causa“ e „projeto“ fazem parte do projeto maior do Reino de Deus, anunciado por Jesus de Nazaré. Este projeto tem um horizonte histórico e um horizonte escatológico, isso significa, o Reino se realiza na história, onde está no meio de nós. Mas, todas as realizações de projetos históricos ficam sempre aquém do Reino que, em sua plenitude, se realizará no fim dos tempos. O projeto maior do Reino está presente na vida cotidiana através da nossa metodologia, das pequenas vitórias nas lutas diárias e da esperança que dá sentido a nossa vida. Podemos fazer passos em falso, mas não concordamos, em nenhum momento, com o absurdo de um mundo para poucos.


A „mística missionária militante“ é o pano de fundo da nossa vida que aponta para três atitudes que são sinais do Reino:


– viver a cada dia e em cada lugar o horizonte „além-fronteiras“ institucional, cultural e geográfico da missão,


– viver os conflitos da causa numa militância profética que assume os conflitos como oportunidades de transformação,


– viver o pano de fundo da nossa mística pascal em relações de presença, partilha e gratuidade.


 


2.1. A missão


De empresas e instituições, minimamente organizadas, se espera hoje que tenham a sua missão, seus objetivos e suas prioridades, bem definidos. Nossa missão é uma missão de justiça e esperança que visa à transformação das macro-estruturas e à transformação do coração de cada um. A fé inspira sempre novas razões de esperança e novas possibilidades de libertação. Contra as mensagens insistentes dos meios de comunicação e seus sinais sedutores a serviço do mercado, a missão produz sinais de justiça e cria imagens de esperança. No mundo, onde os privilegiados perderam o sentido da vida e os pobres a força de resistência, o anúncio missionário elementar é a esperança.


Missão significa memória de um passado colonial ainda próximo e projeto de libertação em curso. Memória e projeto são constitutivos para a caminhada missionária. A memória rompe com a repetição obsessiva e traumática do passado. O projeto é a visão de uma outra sociedade que se inspira na concepção real e utópica das sociedades indígenas. Nelas prevalece a construção da pessoa sobre a produção de bens, o ócio sobre o negócio, a participação sobre a competição, a partilha sobre a acumulação, a liberdade sobre o „vigiar e punir“. Nesta outra sociedade em construção onde todos serão livres e neste outro mundo possível onde todos serão iguais, produzir para acumular individualmente não faz sentido.


No passado, missionários e missionárias foram acusados de que a universalidade da missão seria expressão de sua vontade de dominar o mundo. O discurso missionário era hegemônico e excludente. Mas, a universalidade da missão pode ser compreendida como alternativa à globalização. Os meios de comunicação forjaram uma humanidade conectada pela palavra, pela imagem e pelos negócios e, ao mesmo tempo, separada por um fosso social entre ganhadores e perdedores. Nossa missão tem uma dimensão universal, porque não exclui ninguém. Se a missão fosse geográfica, cultural, étnica ou socialmente limitada, se ela se dirigisse apenas a uma pequena clientela de “eleitos”, seria excludente como a globalização neoliberal.


Por causa da nossa fé, a nossa missão junto ao próximo e ao outro é universal e contextual. Não nos contentamos com uma libertação provincial ou uma salvação privilegiada para alguns. Os cristãos não têm o estatuto de uma “classe redentora” ou de um “povo eleito” para si. A salvação, como ensinou Jesus, se realiza através do Outro que caiu nas mãos do ladrão. A mediação da libertação/salvação acontece através das vítimas do sistema, não através dos puros nas Igrejas. Sem articulação com o outro-vítima tampouco há salvação. O ladrão da parábola do Bom Samaritano age, hoje, mundialmente. Ele está globalizado e articulado pelas parcerias até os confins do mundo. As vítimas são encontradas não só no centro, mas sobretudo na periferia do mundo. Por causa da vítimas, a nossa missão é “sem fronteiras” e “exogâmica”. Ela vai sempre além das fronteiras familiares, institucionais e geográficas. Nossa missão rompe com o corporativismo institucional que visa poder, privilégios e prestígio. Ela é universalmente contextualizada. Não defendemos, como na época colonial, a liberdade e a libertação dos povos indígenas às custas de escravos negros.


A missão, em sua contextualidade universal, pode ser pensada, assim, como alternativa à colonização cultural e à exclusão social. A alternativa se baseia, primeiro, no princípio fundamental do Evangelho: a prática do amor maior e o anúncio do Reino como “libertação do cativeiro da corrupção” (cf. Lumen gentium, 9); segundo, na compreensão da unidade global como articulação de múltiplos projetos de vida com horizontes diferentes, porém, não eliminatórios, uns frente aos outros; terceiro, na articulação da vida local e do projeto específico com a responsabilidade universal pelo conjunto da humanidade e do planeta terra.


Missão é organização e articulação contra a violência da fome, contra a fatalidade da exclusão e contra a banalidade do sonho consumista. Mas, ao propor a organização da esperança não entraríamos de novo num beco sem saída, no beco sistêmico, na força partidária, na domesticação eclesial, na contramão do Reino? Para a organização da esperança não vale a normatividade de uma suposta “qualidade total”, que é concorrencial e eliminatória, mas a excelência do pobre, a lógica do Evangelho e as regras da fraternidade. Nas estruturas piramidais, o pobre é mero receptor de mensagens e o Outro é destinatário de comunicados.


A missão configura nosso “estar em movimento”, organizadamente; a urgência dos nossos passos e a universalidade da nossa caminhada. Por causa desta universalidade, não somos partido, somos movimento, construtores da vida inteira. Caminhar é a forma mais radical da partilha. A caminhada é como um filtro que nos protege contra as infiltrações sutis do aburguesamento e da burocratização. O Êxodo – a saída emancipatória sem retorno à terra escravizada – e o Exílio nos obrigam, através da experiência do estranho e do contraditório na terra estranha, a redefinir o próprio, a desconstruir e reconstruir, permanentemente, nossa identidade. Ao sair do nosso lugar, mudamos o olhar ao mundo e a perspectiva de vida. A missão nos transforma diariamente. Somos eternos „mutantes“, herdeiros de bandeirantes e indígenas. Afinal, quem somos?


 


2.2. Militância


Nossa mística é militante porque a causa indígena nos coloca no centro de uma cadeia de grandes conflitos: a redistribuição dos bens acumulados e o reconhecimento dos outros e das outras em sua alteridade. Mística é vivência e contemplação da resistência da vida contra a morte. Nessa resistência se forja o horizonte do sentido. A vida tem sentido, apesar das contingências, das mortes e do desespero de muitos.


No mundo globalizado todos os conflitos têm uma dimensão que ultrapassa a região e o país. Os conflitos em torno da terra/território dos povos indígenas nos colocam em conflitos com o latífúndio como sinônimo de privilégio e desigualdade. Os beneficiados pelas desigualdades – os latifúndios da terra, do capital, dos meios de comunicação – estão mundialmente articulados em parcerias lucrativas.


A indignação contra este quadro de acumulação e exclusão pode tornar-se o ponto de partida para a missão profética de justiça e esperança. A indignação preserva a missão da submissão. Não somos remendos novos em odres velhos, mas areia na máquina do opressor. A esperança dos pobres e dos povos indígenas está na ruptura com o sistema de exploração e alienação que é expressão de pecado, morte e mentira.


A experiência pascal que simboliza essa ruptura, ilumina a caminhada dos peregrinos que chegam dos vales de resistência. Experiência pascal significa contestação da morte do justo, porque Deus rasgou a sentença do injustiçado. Justiça é sempre justiça da ressurreição; ressurreição das vítimas do sistema de acumulação e exclusão. Ao anunciar o Reino, a presença missionária produz sinais de justiça e imagens de esperança. Neste anúncio está seu núcleo antisistêmico. Sinais de justiça e imagens de esperança produzem rupturas significativas para que o mundo seja habitável para todos. Através da missão militante, replantamos os sonhos dos povos indígenas e dos pobres nas rachaduras do sistema. A experiência pascal não suspende o sofrimento dos crucificados. As eternas perguntas de Jó sobre o sofrimento do inocente permanecem sem resposta. Mas, a Palavra de Deus desestabiliza as estruturas institucionais e mentais. A iluminação pascal da caminhada muda a visão dos peregrinos, desmonta a leitura ideológica e heróica da história. Mudando a visão, desestrutura lógicas convencionais e transforma a realidade. Afinal, quem é Deus?


A indignação profética contra o sofrimento dos pobres e as “estruturas de pecado”, não é algo frustrante. Está marcada pela alegria de poder participar da construção do mundo novo. A colaboração na organização da esperança dos povos indígenas, arrancando do latifúndio pedaço por pedaço dos seus territórios indevidamente apropriados, dá sentido à nossa vida e razão à nossa esperança. Participar da luta significa participar da festa que é a socialização da “divina abundância” e uma das condições de igualdade social. A festa dos povos indígenas não significa “inserção no mercado”, como muitas festas religiosas cristãs, onde o lucro se sobrepõe à gratuidade. As lutas e as festas dos povos indígenas são instâncias críticas frente à sociedade de consumo privilegiado e de acumulação.


A partilha da experiência, do pão e do caminho, da história e do horizonte entre peregrinos que chegam dos vales da morte, aponta para novas possibilidades e alternativas de viver. Enfim, a vida venceu, mas se foram a inocência ingênua e o ufanismo; se foram a leitura ideológica, heróica ou até depressiva da caminhada. Deixemos o pessimismo para tempos melhores!


 


2.3. Mística


A palavra “mística” tem múltiplas conotações. Pode significar espiritualidade, reza, esoterismo, experiência de Deus e prática religiosa. Os companheiros do MST, por exemplo, no contexto de uma ocupação de terra, fazem uma “mística”, um culto ecumênico cujos símbolos e palavras antecipam o êxito desejado do evento. Também os povos indígenas, quando preparam uma luta importante, pintam seus corpos, fazem danças e invocam seus espíritos para favorecer o empreendimento. A mística dos oprimidos, geralmente, é uma vivência comunitária de coragem, o fortalecimento de uma responsabilidade em rede, uma prática religiosa que lembra uma vitória do passado e antecipa uma transformação que permite o infinito se fazer presente na concretude da vida, nos trabalhos corriqueiros e nas lutas pela causa. Nossa mística não é uma mística de olhos fechados, mas um caminho espiritual para crescer e transformar-se na vida cotidiana. As pessoas deste caminho são companheiros e companheiras nossos com os quais não só repartimos o pão, mas abrimos mão de tudo. Tudo que queremos segurar, pode se tornar veneno. Deus ama as mãos vazias. Abrir mão de conquistas e certezas de ontem, pode ser um portal para a vida de hoje. Transformar significa sempre abrir mão de algo. E a vida se dá somente na transformação e na passagem.


A mística missionária militante é a mística do Reino, vigília pascal, essência da Vida na existência histórica, atravessada por desejos humanos; presença do espírito na ação e no caminho. Nossa mística está enraizada na fé. Acreditamos no projeto de Jesus e na presença de Deus na realidade do mundo em construção. Ao revelar o incógnito de Deus no mundo, como os hóspedes na tenda de Abraão (Gn 18) e o forasteiro de Emaús (Lc 24,13ss), os povos indígenas e os pobres são sinais de Deus no tempo. Questionam a vida sedentária e as simulações de agitação, avisando que o conforto da “gaiola dourada” e o tratamento do tempo como se fosse dinheiro, não compensam o sofrimento que causam.


A mística nos permite viver a memória e a utopia de um mundo para todos, livres e iguais, iguais em direitos e deveres, mas com caminhadas históricas diferentes. Na caminhada se cruzam muitos caminhos. Não existe a hegemonia do caminho único ou da leitura definitiva da realidade. Ninguém tem a última palavra. Novas misturas, pontos de vista diferentes e enfoques inusitados lembram a possibilidade de outros caminhos. A verdade do caminho é uma opção histórica, não uma necessidade.


A utopia do Reino está presente em atitudes e relações, não em sistemas, instituições ou partidos. Tomamos partido, mas não somos partido. Fizemos a opção pelos povos indígenas e definimos prioridades, mas não somos um partido indigenista. Por sua própria natureza, os partidos criam divisão e produzem uma acomodação burocrática. No caminho do Reino, os partidos têm, como as próprias Igrejas, um caráter transitório. A aproximação da utopia, como nova criação, está vinculada a uma diminuição institucional.


A globalização, com sua visibilidade e rapidez, simulando baixo custo e prazer imediato no interior de estruturas concorrenciais, colocou a mística da missão em desvantagem. A mística tem pouca visibilidade, porque não cabe na mídia. As tentativas miméticas de algumas Igrejas, recorrendo ao showbusiness da fé, são espiritualmente superficiais, teologicamente sectárias e fundamentalistas, e eticamente vazias. Legitimam a violência em curso, porque escondem a cruz de Cristo e os rostos dos crucificados. Procuram reencantar a vida com deuses e diabos, infantilizando os fieis. Nisso são complementares, de uma maneira grosseira, à atual estetização da violência, da pobreza e da sexualidade nos cinemas. Certas cenas do filme „A paixão de Cristo“, de Mel Gibson, lembram pinturas de Matthias Gruenewald (1470-1528) num salão de tortura.


O mercado financeiro não pode ser vencido pelo mercado religioso, mas pela gratuidade da cruz. Entre vencedores e vencidos, seja no mercado ou no campo de futebol, existe uma relação mimética. A atitude mimética é tendencialmente violenta, porque exige um sacrifício recíproco para manter a diferença (para ser melhor que o outro) ou faz da própria eliminação da diferença o sacrifício mediante a identificação, a incorporação, a imitação ou eliminação do outro. Nós cristãos, peregrinos das Américas e do mundo, contemplamos nos crucificados da história nosso irmão e mestre, fundador crucificado e ressuscitado. Num ato de justiça definitiva, Deus rompeu com os sacrifícios humanos. Jesus de Nazaré, morto na cruz, liberta da necessidades de outros sacrifícios redentores. Redenção e libertação não estão mais sob a pressão da magia ou do rito sacrificial. Não precisamos fazer, nem pagar promessas. Precisamos converter-nos. E conversão significa, neste contexto, romper o círculo vicioso sacrificial e reassumir nosso compromisso com os povos indígenas, seguindo (não imitando!) Jesus, o Irmão-Mestre, no meio deles, na lógica e na locura da gratuidade que é a condição de um mundo sem violência.


 

Fonte: Paulo Suess (Assessor Teológico do Cimi)
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