A história dos jesuítas no Brasil
Paulo Suess
Em meados do século XVI, quando o nome Brasil começou a prevalecer sobre o de Terra de Santa Cruz, o cronista João de Barros considerou essa “mudança inspirada pelo demônio, pois a vil madeira que tinge o pano de vermelho não vale o sangue vertido para a nossa salvação”. A familiaridade, da época, com demônios e santos permitiu projetar o bem e o mal na direção certa. Para expulsar demônios e trazer santos padroeiros, os jesuítas vieram de Portugal ao Brasil.
Os inacianos não foram os primeiros missionários na Terra de Santa Cruz. “Os primeiros religiosos que vieram ao Brasil foram da ordem de São Francisco, os quais aportaram em Porto Seguro não muito depois da povoação daquela capitania, e fizeram sua habitação com zelo da conversão do gentio”, escreve Anchieta numa crônica de 1584. Os mendicantes já trouxeram a experiência missionária de 250 anos da Europa e Ásia; para os jesuítas, que chegaram ao Brasil, não só o país, também a missão com tal era terra incógnita. Mesmo assim, deixaram sinais indeléveis de sua presença no continente e no país. Com velocidade e zelo procuraram recuperar seu atraso. Em dez anos, desde o reconhecimento papal da Companhia, em 1540, se fizeram presentes no sul da Índia, em 1542; no Congo, desde 1547, no Japão, em 1549, e no Brasil, a partir de 1549.
1. Três épocas: Missão, educação, libertação
Pode-se distinguir três épocas da Companhia de Jesus, com diferentes centros de gravidade operacional que repercutiram sobre seu projeto de evangelização no Brasil. Foram marcadas pelo viés da missão (1549-1759/1760), da educação (1841/42) e da libertação (a partir de 1965).
A primeira época começa com a Bula de fundação da Companhia, Regimini Militantis Ecclesiae, de 1540, de Paulo III, e termina com o Breve de Clemente XIV, Dominus ac Redemptor Noster, de 1773, que extinguiu a Companhia de Jesus. No Brasil, essa época corresponde à chegada de Nóbrega e seus companheiros e à expulsão da Companhia com mais de 600 inacianos, por Pombal, da Amazônia e da Bahia, em 1759/1760, deixando aldeias, colégios e paróquias abandonados.
A segunda época começa com a Bula de restauração da Companhia, de Pio VII, Sollicitudo Omnium Ecclesiarum, de 1814. No Brasil, a partir de 1841/42, os jesuítas começam a voltar: alemães, e também espanhóis vindo da Argentina, no Sul; italianos no Sudeste; portugueses, a partir de 1910, no Nordeste. É um tempo, mormente, marcado pela educação nos colégios, não mais pela missão junto aos povos indígenas. Em 1867, é fundado em Itu/SP o colégio São Luís, hoje funcionando no centro de São Paulo. Em Porto Alegre, em 1890, foi fundado o colégio Anchieta. Outros seguiram nas principais capitais: Rio de Janeiro, Florianópolis, Salvador, Recife, Belo Horizonte, Curitiba, Fortaleza e Teresina. Desde 1940, os inacianos atuam no campo do ensino superior com a PUC do Rio de Janeiro, a Faculdade São Luís, em São Paulo, a UNICAP, em Recife/PE, e a UNISINOS, em São Leopoldo/RS. Em 1929, assumem, não por opção, mas por imposição, o vasto território da recém-criada Prelazia de Diamantino/MT (107.495 Km2). Começaram desde então uma tímida retomado do trabalho indigenísta que, a partir dos anos 60, sofreu profundas transformações.
O início da terceira época está marcado pela eleição, em maio de 1965, do basco Pedro Arrupe (1907-1991) para superior geral da Companhia. Arrupe, que ainda como estudante, em 1932, sofreu os efeitos do decreto de dissolução da Companhia, pelo governo republicano da Espanha e, em 1945, como missionário e médico no Japão, assiste na periferia de Hiroshima a explosão da bomba atômica, fez ressoar no centro da Companhia o grito de Francisco de Xavier, de 1544: “Muitas vezes estou pensando ir às Universidades e gritar como um louco frente aos que desfrutam os estudos para si e não os fazem frutificar para os outros”. Depois de sua eleição, Arrupe aproveitou ainda a última sessão do Concílio Vaticano II (1962-1965) para intervir no debate sobre a missão onde lançou o desafio da inculturação. Em sua carta de renúncia, de 1983, forçada por pressões internas da Igreja e por uma trombose cerebral, recomenda aos jesuítas: equilíbrio de vida, não no trabalho, mas em Deus, com uma atenção especial aos pobres, aos refugiados e aos milhões que ignoram Deus. Arrupe redefiniu a missão para os inacianos. Centrada em Deus, essa missão se aproxima à humanidade através de uma presença inculturada no cotidiano e da prática profética de justiça.
No Brasil corresponde essa época à reformulação profunda do trabalho missionário junto aos povos indígenas, que envolveu, na época, muitos jovens jesuítas, não só na definição dos rumos do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), fundado, em 1972, como organismo anexo à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), mas já antes, na reorganizaram de sua própria missão indígena de Utiariti, no interior da Prelazia de Diamantino (MT); desativaram o internato indígena ali existente, onde, por volta de 1967, havia ainda perto de 300 crianças internadas e hoje, simbolicamente, só restam ruínas; ajudaram na criação e transformação da Missão Anchieta, um organismo operacional da Prelazia de Diamantino, e na fundação da Operação Anchieta (OPAN), um organismo de leigos indigenistas, originalmente ligados aos jesuítas. Muitos dos primeiros membros do Cimi, sobretudo leigos, vieram desta efervescência indigenista de jovens inacianos no centro e no sul do país; pregaram a convivência despojada junto aos povos indígenas para valorizar suas culturas e demarcar suas terras como parte integrante de uma nova evangelização.
Um destes jovens indigenista era Vicente Cañas, Irmão jesuíta de origem espanhol. Seu primeiro contato foi com o povo indígena apelidado “Beiço-de-Pau”, moradores entre os rios Sangue e Arinos, ao norte do Estado de Mato Grosso. Por causa de um contato mal feito pela Funai, em 1969, foram dizimados de mais de 600 que eram, a 40 indivíduos. Cañas cuidou da saúde dos 40 sobreviventes. Depois conviveu por cinco anos com o povo Pareci, no noroeste de Mato Grosso. Em 1971, participou do primeiro contato com o povo Mynky, na época apenas 23 pessoas. Em 1974, participou dos primeiros contatos com os Enawene-Nawe, no rio Juruena, com uma população de 100 pessoas, aos quais dedicou os próximos anos de sua vida. Vicente era considerado pelos Enawene-Nawe como um deles. Participava dos seus trabalhos e rituais, era enfermeiro, mecânico, pescador e dentista. Os índios o adotaram como filho e parente segundo suas próprias regras de parentesco. Na prática da religião dos Enawene-Nawe procurou viver a sua fé cristã. Nos últimos 10 anos de sua vida, Vicente viveu inteiramente inserido na vida do povo Enawene-Nawe. No processo que levaria, em 1996, à demarcação da terra desse povo foi assassinado e encontrado morto só um mês depois, em 16 de maio de 1987, ao lado do seu barraco na margem esquerda do rio Juruena. Contrariando com sua presença a cobiço por terra e madeira, Vicente sabia que estava jurado de morte. Os próprios índios o haviam alertado: “Se cuida. As picadas dos jagunços já estão perto do teu barraco”. Por causa do assassinato de Vicente Cañas foram indiciados os fazendeiros Pedro Chiquette e Carlos Camilo Obici, o ex-delegado da polícia civil na cidade de Juína (MT), Ronaldo Antônio Osmar, na ação penal apontado como um dos mandantes do crime, e o Martinez Abadio e José Vicente como executores do crime. Até hoje, nenhuma condenação. Depois de ser periciado pelo IML do Estado de Mato Grosso, o crânio do missionário foi enviado para novas perícias ao IML do Estado de Minas Gerais. De lá, em 1989, o crânio do Ir. Vicente desapareceu misteriosamente. Depois foi encontrado por um engraxate de sapatos, numa caixinha que declarava seu conteúdo, perto da rodoviária de Belo Horizonte, fato até hoje não explicado. O fim da missão, às vezes, resgata sua origem.
2. Nóbrega e Anchieta
Em 1549, quando Francisco Xavier chega sem a proteção do Padroado Régio ao Japão, Manoel da Nóbrega, um jovem com 31 anos, aporta, na armada do primeiro Governador Geral do Brasil, Tomé de Sousa, com mais de 1000 homens entre soldados, funcionários, 400 degregados, na Bahia. Na Europa, Nóbrega por ser gago (“tardo na fala”), foi duas vezes preterido em concursos acadêmicos. No Brasil, tornou-se o missionário do aportuguesamento. Que a cultura dos tupí era demoníaca e, portanto, “sem graça”, Nóbrega e Anchieta já sabiam pelos seus manuais teológicos, antes de chegar ao Brasil. Somos “guerreiros contra o diabo e a carne” constata Anchieta em seu “Sermão da Conversão de São Paulo”. A “perdição” do Outro era o pressuposto da empresa missionária.
Diferentemente de Nóbrega, Anchieta tinha o dom da língua. Como poeta e catequista escreveu em espanhol, língua de sua pátria, em português para os colonos, em tupi para os índios e em latim para os eclesiásticos. Depois de três anos no Brasil, onde chegou em 1553, com 19 anos, já tinha composto uma gramática cujo manuscrito 1556 serviu meio século para o ensino do tupi nos colégios da Companhia. Com facilidade ele decodificou os eixos culturais dos seus interlocutores indígenas. De Gil Vicente Anchieta aprendeu a arte dos “Autos”, onde os diabos vestem a cultura tupi. Os anjos e os santos são representantes da cultura do colonizador.
No “Auto na Festa de São Lourenço”, por exemplo, o rei dos demônios, Guaixará, é o ex-chefe tamoio, na época, aliado dos franceses e adversário do governador geral, Mem de Sá. As expressões significativas da cultura tupinambá para o olhar missionário — guerrear, beber cauim, dançar, vingar — são ridicularizadas na fala do ex-chefe vestido de diabo. Cultura indígena é cultura do diabo. São Lourenço e São Sebastião, ajudantes do Anjo da Guarda da aldeia, prendem os diabos. A escolha dos santos mártires já é uma crítica aberta à cultura tupí: São Sebastião, mártir da fidelidade, vive no imaginário religioso cravado de flechas. São Lourenço, martirizado na perseguição do imperador Valeriano, foi colocado numa grelha sobre brasas. Os santos do colonizador apontam para os “pecados” da cultura indígena, a inconstância, as flechadas que simbolizam a guerra, e a antropofagia.
Nóbrega e Anchieta participaram da conquista espiritual com as armas que lhes eram peculiares: Anchieta com o conhecimento da língua e com a arte do poeta e escritor; Nóbrega contribui com sua capacidade organizacional e seu conhecimento jurídico. Neles a racionalidade do político e canonista, que visa ordem, progresso e aportuguesamento, como pressupostos da governabilidade das terras conquistadas, se junta à arte do escritor e à intuição do poeta, que fez da língua tupí a “Língua Brasílica”.
Para Nóbrega, a libertação dos indígenas precisa de planificação em todos os níveis. Com a experiência de nove anos de catequese no Brasil, Nóbrega elaborou junto a Mem de Sá um “Plano Colonizador” [8.5.1558]. O “Plano Colonizador” representa a síntese programática que norteou o trabalho missionário daquele momento histórico junto “ao mais vil e triste gentio do mundo”. Com a colonização disciplinadora, segundo Nóbrega, se ganha “muitas almas” (n.5) e “muito ouro e prata” (n.5). “Ordem” produz “progresso”. Por falta de sujeição, pouco se pode fazer na conversão do gentio. Sujeitar os índios significa “fazendo-lhes guardar a lei natural” (n. 1), proibir a poligamia, a nudez e o nomadismo (n. 11). Os feiticeiros devem ser retirados das aldeias. Para o abastecimento do Colégio da Bahia, Nóbrega pede “duas dúzias de escravos de Guiné” (n. 24) e para a Igreja encomenda “sino”, “relógio” e “campas” (n. 27). A civilização transforma o tempo do diabo, que é o tempo desordenado de ócio, em tempo de graça, cronometrado para oração e trabalho.
Ao atravessar o Equador, quase 150 anos mais tarde que Nóbrega, no dia 22 de fevereiro de 1691, o jesuíta Antônio Sepp anota em sua carta-diário: “Costuma-se mudar tudo sobre o equador. A agulha magnética da bússola, porém, não se desloca. Ela continua apontando “fiel e exatamente para a Estrela Polar. A diferença está toda em nós mesmos, que precisamos modificar nosso conceito. Quando é meio-dia na Europa, é meia-noite aqui entre nós. (…)Em dezembro e janeiro, quando na Europa tudo gela, comemos figos e colhemos lírios. Numa palavra, tudo aqui é diferente, e está a cunhar a expressão, chamando a América de ‘mundo às avessas’. (…) No dia 28 de fevereiro entramos para o jejum quaresmal, aliás de acordo com o calendário, e não com a realidade.”
Como organizar calendários supostamente universais de acordo com a realidade, ao mesmo tempo cosmológica e local? Como aprender que o “mundo às avessas” é um mundo culturalmente diferente que participa de um universalismo moral com toda a humanidade? Como transformar o imaginário do visitante para que caiba nele o “bárbaro” como outro e o outro como irmão? Essas pergunta surgirão, provavelmente, só mais tarde, na cabeça de um Vicente Cañas, cujo crânio foi encontrado por um engraxate de Belo Horizonte, numa caixa de sapatos.
3. O mito do jesuíta “língua”
Em sua “Breve informação do Brasil”, de 1584, Anchieta caracteriza a situação lingüística que os missionários enfrentam, como unidade atravessada por uma grande diversidade: “Todo este gentio desta costa, que também se derrama mais de 200 léguas pelo sertão, e os mesmos Carijós que pelo sertão chegam até às serras do Peru, têm uma mesma língua que é grandíssimo bem para a sua conversão”. Essa língua era usada na primeira catequese oral de Piratininga, na Capitania de São Vicente, nos catecismos escritos e na comunicação diária entre indígenas, colonos e missionários. Anchieta que reduziu a língua tupi à Arte de Gramática, elaborou também para a primeira comunicação, um vocabulários em tupi, uma Doutrina Cristã e um Catecismo.
Ao lado da unidade lingüística havia entre os Carijó “diversas nações de outros bárbaros de diversíssimas línguas a que estes índios chamam Tapuias, que quer dizer escravos, porque todos os que não são de sua nação têm por tais e com todos têm guerra”. Anchieta não falava nenhuma língua destes “outros bárbaros”. Ele e a Companhia concentraram seu trabalho missionário em torno dos grupos tupi. Os Tapuia que pertenceram ao grupo lingüístico Gê e a outros grupos, viveram, segundo Anchieta, principalmente, da caça e “por isso têm uma natureza tão inquieta que nunca podem estar muito tempo num lugar, que é o principal impedimento para sua conversão”.
A virtuosidade lingüística de Anchieta não deve encobrir a precariedade das línguas realmente faladas pelos jesuítas quinhentistas no Brasil. Em 1552, Nóbrega admite essa precariedade pelo conjunto dos inacianos e justifica: “sabermos-lhe mal falar em sua língua”, porque eles são muitos e nós poucos. Uma solução veio de alguns civis que passaram um bom tempo no meio dos índios e ofereceram seus conhecimentos dos costumes e da língua aos missionários. Neste grupo teve particular importância o náufrago Diogo Álvares Correia, o Caramuru, que, por volta de 1510, chegou às costas da Bahia. Viveu no mundo indígenas e se tornou o tradutor das primeiras orações.
Outra solução veio de pessoas com experiência entre os índios e se integraram à Companhia, como vocações adultas. Logo depois da chegada ao Brasil, em 1549, Nóbrega mandou o padre Leonardo Nunes e o irmão Diogo Jácome à Capitania de São Vicente. Anchieta destaca a vida exemplar do padre Leonardo Nunes que “convertia mais com obras que com palavras”. As “obras” mais importantes do padre Nunes foram seus recrutamentos de vocações adultas para a Companhia. Depois de pouco tempo, Leonardo Nunes aceitou Pero Correia na Companhia, colono aventureiro, desde 1534 no Brasil, “envolvido em luta com os índios donde resultaram mortes”, antes de se tornar Irmão. Em carta ao provincial de Portugal, Correia pede livros para poder estudar as coisas elementares da fé, “porque meu estudo neste mundo nunca foi para servir a Deus, mas para ofendê-lo”. Ambos morreram cedo, em 1554. Nunes naufragou em junho. Correia, alguns meses mais tarde, foi morto pelos Carijó.
Outra vocação adulta conquistada por Nunes foi Manuel de Chaves, com uma longa experiência no país, antes da chegada dos jesuítas. Ambos, Correia e Chaves, foram aceitos na Companhia ainda em 1550. No mesmo ano entrou, em São Vicente, João Rodrigues, e, três anos mais tarde, António Rodrigues que sabia cantar e tocar flauta. Todos eram excelentes “línguas”, mas tinham pouco ou nenhum preparo teológico para seu trabalho catequético. Também Mateus Nogueira, um ferreiro e ex-combatente da África, se juntou nesta época aos jesuítas de São Vicente. Este já não falava a língua “destes brasis”, mas, como “metalúrgico” foi muito importante para missionários e índios.
Uma outra “solução” para a questão da língua foi a evangelização através de crianças, e, sobretudo, através de órfãos vindos de Portugal. Com o segundo grupo de jesuítas que chegou em Salvador, em 1550, vieram com quatro padres também sete meninos do orfanato da Companhia de Lisboa. Foram destinados para se confraternizarem com as crianças indígenas e mestiças. Cumpriram seu papel missionário com entusiasmo. Impressionaram com seus cânticos catequéticos, aprenderam tupi e ensinaram noções de português aos coleguinhas nativos. Um pouco mais tarde, os órfãos foram encarregados de servir como intérpretes nas confissões. Em carta a Simão Rodrigues, provincial de Lisboa, Nóbrega relata de Bahia, em julho de 1552, que, enquanto não chegam padres para administrar as confissões dos índios, alguns meninos continuam ajudar como intérpretes nas confissões: “Nesta casa estão meninos da terra feitos à nossa mão, com os quais confessávamos alguma gente da terra que não entende a nossa fala, nem nós a sua”. Nóbrega defende a prática dos meninos tradutores para as confissões, porque “não há muitos Padres que saibam bem a língua”. Esses tradutores produzem bons resultados sem causar “nenhum prejuízo ao sigilo da confissão”. O provincial do Brasil raciocina como pastor, não como canonista que era, quando escreve: “privá-los da graça do sacramento por não saberem a língua e da glória por não terem contrição bastante, e outros respeitos (…), devia-se bem de olhar”. Na Bahia, quando o padre João de Azpilcueta Navarro estava no sertão, nenhum padre na cidade falava tupi. E Navarro faleceu cedo, em 30 de abril de 1557.
Ainda em 1560, não havia mais do que dois ou três sacerdotes jesuítas que conseguiram fluentemente conversar com os índios no Brasil. A este respeito, o padre António Pires escreve aos seus ex-colegas do Colégio de Coimbra que em “esta Bahia estavam as coisas algum tanto feias” e o novo provincial, o padre Luis da Grã, que chegou em agosto de 1560 no Brasil, “deu ordem a que todos os Irmãos se dessem a aprender a língua, coisa que até ali ninguém havia feito, tirando alguns que andavam fora; e assim deu ordem que viesse a escravaria a aprender a doutrina na nossa igreja, coisa que havia muito tempo que se não fazia”. O provincial não deixou ninguém ensinar aos índios, sem falar a sua língua: “Creio que o faz para nos envergonhar e para nos fazer inveja, como na verdade a mim me envergonha, que há 12 anos que cá ando e não sei nada. Agora começo pelos nominativos (…)”. Luis da Grã ordenou, concretamente, “que houvesse cada dia uma hora de lição da língua brasílica, que cá chamamos grego”.
Ainda em 1585, Manuel Viegas que falava tupi e maromomi, lamenta a situação precária do aprendizado da língua dos colegas. Viegas agradece ao padre Geral Aquaviva, porque ordenou, através do seu visitador, o padre Cristóvão de Gouveia, que todos aprendam a língua da terra, e a “nenhum consente que se ordene de ordens sacras, ainda que sejam muito para isso, sem que primeiro saibam e aprendam a língua da terra (…) porque muito poucos a queriam aprender e saber e dar-se a ela: tudo era darem-se às letras e serem pregadores dos portugueses, e subir ao púlpito a pregar aos brancos e não se lembravam desta pobre gente de lhe pregar em sua língua”. E a língua, escreve o padre Viegas, é mais importante que a teologia. O conhecimento da língua dos índios é a primeira teologia. Ao comparar a situação missionária do Brasil com a o Japão, onde há “gente de melhor saber e subtil engenho”, afirma que “para esta gente do Brasil, poucas letras bastam. E quem nesta terra sabe a língua dela é aqui teólogo. E muitos Padres, que vêm de lá teólogos, nos dizem que, se pudesse ser, dariam metade da sua teologia pela língua. E eu digo a V. P. que não darei a minha língua por toda a sua teologia.” O secretário do visitador Manuel de Lima, o padre Jácome Monteiro observa em sua Relação da Província do Brasil, de 1610, que em sua visita aos Maromomi não havia ninguém entre os missionários que entendeu a língua deles: “Valem-se os Nossos de intérpretes”.
Quase um século mais tarde, Antônio Vieira (1608-1687), em seu Sermão da Epifania, aponta entre as dificuldades para a catequese dos índios a questão lingüística. “Na antiga Babel houve setenta e duas línguas; na Babel do rio das Amazonas já se conhecem mais de cento e cinqüenta, tão diversas entre si como a nossa e a grega; e assim, quando lá chegamos, todos nós somos mudos e todos eles surdos”.
4. Catequese em Piratininga
As experiências iniciais da catequese mostraram que a região de beira-mar, com a presença de aventureiros, traficantes e donos de escravos, e com a lei a serviço do mais forte, não era propícia para a conversão dos índios. Manuel da Nóbrega, primeiro provincial dos jesuítas recém-chegados ao Brasil, escolheu a Capitania de São Vicente, e nela fundou Piratininga. Ao inaugurar a “Casa de Piratininga”, no dia de conversão do apóstolo dos gentios, fizeram da data, do local e do evento o lema de sua empreita missionária: educar e converter.
Próximo ao rio Tietê, na confluência dos rios Tamanduateí e Anhangabaú, instalou-se a missão no meio de 12 aldeias indígenas que regularmente foram visitadas. Com o tempo, as 12 aldeias se transformaram em dois aldeamentos. As aldeias, precursores das Reduções, eram núcleos que procuravam fixar os índios a um determinado território mais restrito e mais ao alcance dos missionários. Piratininga, no início ainda sem os vícios da colonização, era um lugar privilegiado para estabilizar e converter os índios e para instruir os estudantes e noviços da Companhia.
As atividades missionárias, na “Casa de Piratininga”, eram diversificadas. O catecismo e as primeiras letras foram ensinados para as crianças indígenas, que moravam nas casas de seus pais ou parentes. Aprenderam também como cantar e servir na missa. Os inacianos perceberam cedo a fascinação dos índios pela música e festividade litúrgica. Por isso, as entradas dos missionários nas aldeias foram precedidas por uma procissão, com canções e danças das crianças. A alegria do cenário facilitou a aceitação da mensagem. As crianças-catequistas imitavam a maneira de os índios cantarem. Com algumas orações elementares, com canções e os maracá das crianças, os missionários correram de aldeia para aldeia. Em seus sermões, traduzidos pelos “língua”, falavam dos mistérios principais, da devoção da cruz, da ameaça do juízo final e de alguns episódios da vida de Jesus.
Na escola de Piratininga, os meninos índios são “bem instruídos em leitura, escrita e em bons costumes”, de maneira que já “aborrecem muito os costumes de seus pais”, relata o mestre Anchieta da altura dos seus 21 anos. O ensino dos meninos indígenas “nos consola”, enquanto nos entristece “a dureza obstinada dos pais que (…) parece quererem voltar ao vômito dos antigos costumes”, celebrando “aquelas miseráveis cerimônias da morte dos contrários”.
A desilusão do jovem Anchieta está presente em seu relatório a Inácio de Loyola, onde ele pede o envio de “muitos cristãos” para que “sujeitem os índios ao jugo da escravidão e os obriguem a acolher-se à bandeira de Cristo”. No caso das festas antropofágicas profundamente enraizadas na cultura tupi, Anchieta considera a demonstração de força indispensável para a evangelização. Cinco anos mais tarde, Anchieta escreve ao Geral da Companhia que os irmãos de Piratininga batizaram dois cativos, antes de serem sacrificados pelos índios. Descreve o evento como o martírio dos primeiros cristãos nas arenas romanas. No terreiro “chega-se o que o havia de matar, usando primeiro de suas cerimônias e ritos. Diz-lhe a palavra solene: Morrerás!” Gritaram-lhe os irmãos que se pusesses de joelhos, o que ele logo cumpriu, levantando os olhos e mãos para o céu e invocando o santíssimo nome de Jesus. Quebrou-lhe a cabeça com um pau, e voou sua ditosa alma para gozar de gloria imortal nos céus”.
Causa perdida ou meio caminho andado? Os Irmãos intérpretes, Manuel de Chaves e Gonçalo d´Oliveira, que acompanham o padre Afonso Braz, participam do ritual. Lembram os participantes de seu batismo, batizam a vítima e o amparam. Contracenam com o matador e seu “morrerás”, gritando, através do língua: “viverás!”, e carregam o mártir para a Igreja de Piratininga, porque os já “não comam carne humana”. O martírio é sempre algo transitório. A “vitória” é uma questão de tempo. A catequese de Piratininga exige dos índios abandonar sua tradição cultural. O convertido é um ex-índio, relata Anchieta satisfeito: “Está conosco um principal dos índios chamados Carijós (…). Digo-vos, caríssimos Irmãos, que é um mui bom cristão, homem mui discreto e nem parece ter cousa alguma de índio”.
Voltando um século mais tarde para Bahia, quase na hora da expulsão dos jesuítas, encontramos a capital do Brasil numa certa prosperidade que dependia da mão-de-obra dos escravos que trabalhavam nos engenhos de açúcar. A Bahia é um retrato daquele Brasil, onde o escravo negro era considerado uma necessidade e o índio um estorvo. A Companhia não se opôs à escravidão negra. Participou dela, como também outras ordens religiosas, e prosperou. Viajantes descrevem a Igreja dos jesuítas pomposa, revestida de mármore da Europa.
4. Os jesuítas na Amazônia
Em 1759, os 115 jesuítas do então Estado do Grão-Pará e Maranhão, foram expulsos, roubados dos seus bens, vaiados pelos colonos e aprisionados num pequeno navio, que os desembarcou na costa do Estado da Igreja, na Itália. Sua presença na Amazônia se dá quase um século mais tarde que na Bahia e em Piratininga.
Os primeiros inacianos chegaram na Amazônia provenientes de Quito, emissários do Vice-Reinado de Peru e do El-Rei da Espanha. Pelo Tratado de Tordesilhas (1494) pertencia todo o curso do Amazonas à Espanha. Somente no século XVII, a linha divisória avançou em favor dos portugueses para além da confluência do Rio Negro. No vai e vem desta época se situa a expedição de Pedro Texeira de Belém a Quito (1637/38) e a descida do jesuíta Samuel Fritz de Quito a Belém (1689/90).
A presença jesuítica a serviço de Portugal começa em 1639, quando chegou do Ceará o padre Luis Figueira, visitando os rios Tocantins, Pacajá e Xingu. De volta à Europa, expôs as prioridades missionárias perante o Conselho Ultramarino: organizar e moralizar os colonos, amparar e converter os índios e criar um bispado no Maranhão/Pará, até então subordinado ao arcebispado de Lisboa.
Em 1652, no meio de um tumulto dos colonos, que se revoltaram contra uma nova lei que proibia a escravidão dos índios, chegam os padres João de Souto Maior e Gaspar Fragoso em Belém. Lá construíram uma modesta palhoça e fundaram, mais tarde, o Colégio de Sto. Alexandre. Imediatamente, o padre Souto foi obrigado assinar um termo na Câmara de não intervir na questão dos escravos e nem pretender administrar os “índios livres”. A incompatibilidade da presença jesuítica com os interesses imediatos dos colonos, que reclamavam escravos indígenas para suas fazendas, foi camuflada pelas aulas de latim e doutrina.
Em janeiro de 1653, chegou Antônio Vieira em São Luis, onde encontra o mesmo clima de hostilidade como seus companheiros em Belém. Como superior das missões do Maranhão faz concessões; reconhece causas legítimas de escravidão, como os índios cativados em “guerra justa”, e admite os “escravos do Estado”. Mesmo assim é hostilizado pelos que se aproveitaram da mão indígena. Foi obrigado a embarcar para Lisboa, de onde volta com poderes extraordinários sobre os índios. Com sua tropa de 20 companheiros organizados em redor de 11 aldeias no Maranhão, 6 no Pará, 7 no Tocantins e 28 no Amazonas, luta contra aqueles que não queriam aceitar as novas leis. Os habitantes de Gurupá, que fizeram do tráfico indígena sua principal fonte de sustento, prenderam dois jesuítas e os mandaram voltar ao Pará. “Temos contra nós o povo, as religiões, os donatários das capitanias-mores e, igualmente, todos que nesse reino e neste Estado são interessados no sangue e suor dos indígenas”, escreve Vieira, em 1655.
Mesmo com essas dificuldades, conseguiram avançar no seu objetivo. Em 1655, mais de mil Tupinambá são descidos à Missão do Tocantins. Houve também missões/expedições “bem-sucedidas” ao rio Negro, em 1657, onde se fez 600 escravos. Os missionários sobem os rios Xingu e Tapajós. Vieira reduz finalmente os Nheengaibas. À Câmara de Belém, Vieira expõe o balanço positivo dos últimos anos: mais de 3000 índios livres e 1800 cativos; pelo resto, somente escravos de Angola podiam solucionar o problema. “Pela atividade pacífica dos missionários havia o rei ganho grande número de novos súditos, a igreja novas almas; os índios de Marajá, diante dos quais Belém tantas vezes havia tremido, estavam pacificados; a Oeste, todo curso do Amazonas, a Leste, as solidões do Piaui e Ceará, estavam abertos ao domínio português, à colonização e ao comércio”, escrevia Vieira em 1661. Os colonos pensaram diferentemente. Afastados os jesuítas, teriam mão-de-obra abundante para suas fazendas. Em 1661 estourou em São Luis e Belem uma nova revolta contra os jesuítas, cujos colégios foram assaltados; juízes do povo mandaram prender os missionários e, junto com Vieira, deportar ao Reino. Já no ano seguinte, voltaram continuando a luta pela liberdade dos índios.
Em 1680, Vieira conseguiu em Lisboa novas reformas legais, favoráveis aos índios e à Companhia. Mas, os novos decretos produziram insatisfação geral. O fazendeiro Manuel Beckmann, do Maranhão, soube articular um levante contra os jesuítas. A esperança de conseguir bastante índios escravos mobilizou os colonos: prenderam autoridades civis e militares, expulsaram os jesuítas novamente, destituíram o governador e selaram a vitória com um Te-Deum na Matriz (1684).
Punidos os responsáveis do levante, os jesuítas foram reconduzidos aos colégios e às missões. Através do Regimento das Missões, de 1686, consolidaram sua atuação, juntando ao governo espiritual também o temporal e político das aldeias. A partir de 1693, Cartas Régias redistribuíram o território missionário. À Companhia de Jesus foi confiado todo o distrito do sul do Amazonas com os rios Tocantins, Xingu, Tapajós e Madeira.
Os jesuítas da Amazônia se opuseram cada vez menos à escravidão indígena. Sugeriram melhoramentos legislativos, acompanharam as tropas nas entradas e, como árbitros, procuraram o maior número de índios cativos passar para as suas aldeias. O fácil acesso à mão-de-obra enriqueceu a Companhia. No Pará, a Companhia possuía 9, em Maranhão 6 fazendas de gado além de muitos outros projetos de agricultura. Os religiosos não pagavam dízimos ao Estado e gozavam isenção de impostos da alfândeg