31/01/2006

A história dos Outros escrita por nós

Apontamentos para uma autocrítica da historiografia do cristianismo na América Latina[1]


 


Paulo Suess


 


“Fueron tan atropellados y destruídos


ellos y todas sus cosas, que ninguna apariencia


 les quedó de lo que eran antes.”[2]


Bernardino de Sahagún, 1569


 


Por ocasião da comemoração dos 500 anos de conquista e cristianismo da América, vozes e interesses diferentes competiram por sua audiência. A voz apologética do colonizador se confraternizou com as palavras de ordem do liberalismo nacionalista ou transnacional. A melodia monótona do evolucionismo positivista se sobrepôs à canção desprotegida dos colonizados. Acompanhada com desconfiança pelos demais emergiu — desde a História de las Índias, de Las Casas, até a História General de la Iglesia en América Latina, da Cehila[3] — o discurso advocatório do intelectual orgânico, porta-voz militante da história mutilada dos Outros.


 


I. Ambivalência dos discursos historiográficos


 


Os discursos historiográficos do colonizador, do porta-voz e do Outro concorrem , na praça pública e nos livros escolares. Os três textos que seguem abaixo caracterizam as diferenças destes discursos que são, ao mesmo tempo, históricos e contemporâneos, complementares e excludentes.


 


“Saber lo que los mismos indios suelen contar de sus principios y origen, no es cosa que importa mucho; pues más parecen sueños los que refieren, que historias. Hay entre ellos comunmente gran noticia y mucha plática del Diluvio; pero no se puede bien determinar si el diluvio que éstos refieren, es el universal que cuenta la Divina Escritura, o si fué alguno otro diluvio o inundación particular de las regiones (…). Como quiera que sea, dicen los indios que con aquel su diluvio, se ahogaron todos los hombres, y cuentan que de la gran laguna Titicaca salió un Viracocha, el cual hizo asiento en Tiaguanaco, donde se ven hoy ruinas y pedazos de edificios antiguos y muy extraños, y que de allí vinieron al Cuzco, y así tornó a multiplicarse el género humano. (…) Mas ¿de qué sirve añadir más, pues todo va lleno de mentira y ajeno de razón? Lo que hombres doctos afirman y escriben es que todo cuanto hay de memoria y relación de estos indios, llega a cuatrocientos años, y que todo lo de antes es pura confusión y tinieblas, sin poderse hallar cosa cierta. Y no es de maravillar faltándoles libros y escritura (…). (…) Tenían por muy llano que ellos habían sido creados desde su primer origen en el mismo Nuevo Orbe, donde habitan, a los cuales desengañamos con nuestra fe, que nos enseña que todos los hombres proceden de un primer hombre.”[4]


José de Acosta, 1589


 


“Articular historicamente o passado não significa conhecê-lo ‘como de fato foi’. Significa apropriar-se de uma memória, tal como ela relampeja no momento de um perigo. (…) Em cada época é preciso arrancar a tradição ao conformismo, que quer apoderar-se dela. (…) O dom de despertar no passado a faísca da esperança é privilégio exclusivo do historiador convencido de que também os mortos não estarão em segurança se o inimigo vencer. E esse inimigo não parou de vencer. (…) Nunca houve um monumento da civilização que não fosse também um monumento da barbárie. E, assim como a civilização não é isenta de barbarie, não o é, tampouco, o processo de transmissão da civilização. Por isso, na medida do possível, o materialista histórico se desvia dela. Considera sua tarefa escovar a história a contrapelo.”[5]


Walter Benjamin


 


“Aqui nessa casa ninguém quer a sua boa educação


Nos dias que tem comida, comemos comida com a mão.


E quando a polícia, a doença, a distância ou alguma discussão nos separe de um irmão,


Sentimos que nunca acaba de caber mais dor no coração


Mas não choramos à toa, não choramos à toa.


            Aqui nessa tribo ninguém quer a sua catequização


Falamos a sua língua, mas não entendemos o seu sermão.


Nós rimos alto, bebemos e falamos palavrão.


Mas não sorrimos à toa, não sorrimos à toa.


            Aqui nesse barco ninguém quer a sua orientação


Não temos perspectiva, mas o vento nos dá a direção.


A vida que vai à deriva é a nossa condução.


Mas não seguimos à toa, não seguimos à toa.


            Volte para o seu lar, volte para lá.”


                                                                                                            Arnaldo Antunes


 


A exclusão dos discursos — historiografia versus mitografia — estava bem presente na IV Conferência do Episcopado Latino-Americano, em Santo Domingo, quando o arcebispo de San Juan (Argentina), Monseñor Italo di Stefano, no dia 19 de outubro de 1992, rejeitou o pedido de perdão em face da conivência do cristianismo no etnocídio dos índios e na escravidão dos afro-americanos, apresentado pela delegação brasileira. Investigadores qualificados questionariam, segundo Italo di Stefano, três mitos defendidos como fatos históricos: o genocídio, a inocência e a resistência dos índios. As sombras que realmente havia não devem fazer “cair em complexos de culpas que poderiam eliminar o ardor à nova evangelização”.[6]


 


Ao justificar ou “desculpar” o passado, a historiografia apologética — com seu modelo eclesiológico “Igreja, sociedade perfeita” — traumatiza o passado, defende privilégios no presente e hipoteca sua credibilidade. Há outras maneiras de fazer história, que tampouco favorecem os Outros, colonizados porém não vencidos. Para o historiador evolucionista os diferentes projetos históricos dos povos desaparecem progressivamente no interior de um projeto único da humanidade. Já o historicista não se pronuncia sobre projeto ou futuro dos Outros. Ele é um grande colecionador. Junta dados e documentos de todos os cantos, mas não sabe priorizá-los. É vítima do mito de uma suposta objetividade e neutralidade científica.


 


O historiador enquanto porta-voz solidário, também é “missionário” de uma história de salvação/libertação. Tendencialmente procura acelerar o tempo e projetar seus sonhos ao passado. Chamar os “500 anos de história da Igreja na América Latina” de “Historia Liberationis“, evidentemente, é uma destas projeções.[7] O “compelle eos intrare” (Lc 14,23) valeu tanto para a prática missionária de José de Anchieta, como também para a prática política da Revolução Sandinista, em sua primeira fase, frente aos Misquitos da Costa Atlântica.[8] Historicamente, tanto o medo de “perder almas” como a ameaça do “inimigo de classe” justificaram atitudes autoritárias que escureceram propostas “luminosas”. Não há discursos historiográficos desinteressados, nem práticas “puras”. Os interesses nos vinculam a determinadas causas e justificam nossas escolhas. Ao falar do que já foi, a causa do Outro exige que falemos do que está sendo e daquilo que pode vir a ser. Portanto, entramos num campo de sonhos e sentido, mas também de ideologias e poderes. O futuro pode ser pensado sem esperança para os Outros/pobres, como extensão das aporias sistêmicas do presente ou como incorporação em utopias previamente estabelecidas. Mas o futuro pode ser também pensado numa perspectiva de esperança, como “inédito-viável” (Paulo Freire) que emerge do “caos dinâmico” atravessado pela flecha do tempo.[9]


 


A história dos conquistados é ditada pelo conquistador; a história dos colonizados, pelos colonizadores; a história dos escravos pelos senhores e a história religiosa dos povos indígenas pelos missionários. Colombo e Cortés, Caminha e Carvajal, Las Casas e Acosta, Landa e Sahagún, Staden e Léry, Nóbrega e Anchieta, Evreux e Abbeville, Fernão Cardim e Vicente do Salvador, Sandoval e Benci – eis os primórdios da historiografia do continente latino-americano e seus referenciais para a história dos povos indígenas e dos afro-americanos, dos pobres e dos excluídos.


 


Alguns textos — Popol Vuh e Chilam Balam — testemunham o outro lado da história. História? Povos sem escrita não têm história, diz a historiografia oficial. A situação em que os índios se encontravam que habitavam o solo brasileiro, segundo Varnhagen, “não podemos dizer de civilização, mas de barbárie e de atraso. De tais povos na infância não há história: há só etnografia. A infância física, é sempre acompanhada de pequenez e de miséria”.[10] Fala, através de Varnhagen, a Europa ilustrada. Escutemos o que um espírito tão esclarecido, como Friedrich Schiller, em 1789, em sua aula inaugural como professor de história em Jena, sobre o tema “História universal com intenção de cidadão mundial” declarou:


 


“Os descobrimentos (…) nos mostram populações deitados em torno de nós nos mais diversos degraus de cultura, como crianças de diferentes idades em torno de um adulto (…). Como é vergonhosa e triste a imagem que estes povos nos transmitem de nossa infância! (…) Mesmo assim, os períodos mais diferentes da humanidade dirigem-se à nossa cultura, como as partes mais distantes do mundo se dirigem ao nosso luxo”.[11]


 


A memória antiga do continente — o que significam os 500 anos frente aos milênios de presença humana nas Américas? — ficou guardada na cultura oral dos seus habitantes. Alguns antropólogos escreveram a história de povos autóctones antes, fora e depois da conquista, codificada em seus mitos e reinterpretada por cada narrador. Esta etnohistória que não se deve confundir com a etnografia de Varnhagen, despertou pouco interesse entre os historiadores, preocupados com a chamada história universal. Povos sem história só se tornam povos com história pela incorporação nos mitos e na história (de salvação) universal. Frente ao dilúvio da Bíblia, o dilúvio da mitologia indígena se torna uma “inundação particular”. O mito de Édipo é um explicador universal, o de Macunaima uma curiosidade regional de uma tribo indígena no norte do Brasil. Mas esta “história universal” oferecida para a recuperação histórica dos Outros não é a soma de múltiplas histórias. É apenas a extensão da história de uma região dominante para as demais. Heródoto se torna o pai da historiografia universal. Mas esta história universal é extensão da história européia sobre o mundo e a incorporação da história dos Outros numa história particular dominante. Esta incorporação tem conseqüências sérias para o projeto específico de cada povo, porque transforma o presente de uma região dominante em modelo do futuro das demais. Frente aos Outros/pobres da América Latina, a “história universal” é a expressão historiográfica macroestrutural de sua colonização.


 


Ao escolher o “pobre como o critério interpretativo”[12], a Cehila indicou o lugar hermenêutico determinante para a periodização da história do cristianismo, a escolha das fontes e o enfoque da perspectiva. A periodização “A Cristandade americana”, “A Igreja e os novos Estados” e “Para uma Igreja latino-americana” estrutura praticamente todos os volumes da “Historia General de la Iglesia en America Latina”, da Cehila. Na recente “Historia Liberationis” Dussel apresenta uma periodização ligeiramente modificada: “Cristandade colonial” (desde 1492), “Dependência neocolonial da Igreja” (desde 1802) e “Crise do capitalismo periférico” (desde 1959), palidamente captando o papel da Igreja neste último período.


 


Ao caracterizar a sucessão linear do tempo, uma história da Igreja latino-americana tem que mostrar dialeticamente que novas formações sociais e constelações políticas não implicam necessariamente um progresso acumulativo do saber e comportamento histórico. Se assim for, as ditaduras e o racismo não teriam mais futuro. O passado, como mentalidade histórica, pode não só voltar, como está concomitantemente presente. Assim, a “Cristandade colonial” não é algo historicamente superado, mas está presente nas estruturas políticas do Estado Nacional e nas estruturas transnacionais do neoliberalismo. O Estado Nacional e os mercados internacionais continuam sendo os grandes colonizadores não só dos povos indígenas, mas dos pobres em geral.


 


A continuidade da “Cristandade colonial” frente à esfera política acontece também no interior das Igrejas onde permanecem estruturas do Ancién Regime com seus efeitos colonizadores frente às Igrejas locais e aos povos autóctones. Este fato não é suficientemente contemplado ao enquadrar a história da Igreja numa “Igreja latino-americana” ou na “crise do capitalismo periférico”. Por quê podemos hoje ser “Igreja latino-americana”, sendo colonizados por todos os lados, e não o podíamos ser no século XVI? Por acaso cresceu a autonomia frente aos sistemas e aos centros administrativos? A periodização “Cristandade americana (Colonialismo)”, “Igreja e Estados Nacionais (Dependência neocolonial)” e “Igreja latino-americana (Crise do capitalismo periférico)”, ainda está viciada pela linearidade de uma historiografia teleológica. Evolucionismo, desenvolvimentismo e teleologia, porém, são trigêmeos com as mesmas doenças hereditárias. Quais são as razões para dizer que a Igreja latino-americana começa conosco? Que os Outros/pobres contem aos historiadores da Igeja quanto são ainda vítimas de um colonialismo prático e conceitual no interior das Igrejas e dos Estados! Com espírito de autocrítica os bispos brasileiros afirmaram em suas Diretrizes a Santo Domingo, que “os povos indígenas e os negros da América Latina continuam ameaçados e continuam vivendo à margem da Igreja institucional e da sociedade”.[13]


 


Antes de ajustes da periodização que descem como uma teia sobre todas as histórias particulares, precisa-se neste momento desencadear uma discussão sobre os fundamentos de uma historiografia solidária, sobretudo sobre os conceitos “história universal”, “povos e culturas sem história”, “os Outros enquanto pobres” “relevância salvífica das religiões dos Outros”, “linearidade e dialética da história” e a possibilidade e necessidade de “projetos histórico-políticos específicos” num mundo único. Esta discussão prévia pode forjar uma nova conceitualização básica para a história da Igreja na América Latina, sobretudo quando consegue assumir a herança da cristandade colonial não redimida no interior do próprio discurso militante. Como os “defeitos estruturais” da Cristandade colonial não podem ser contrabalanceados com “a generosidade de milhares de missionários, de leigos espanhóis, portugueses, mestiços, indígenas, africanos”[14], assim também os defeitos estruturais da historiografia apologética não podem ser contrabalanceados com os vícios e as armas do adversário ideológico, com o desejo solto, com uma perspectiva única e sem participação do Outro.


 


II. A história dos Outros contada por eles


 


A alternativa que o tema “A história dos Outros escrita por nós” sutilmente sugere é “A história dos Outros contada por eles“; a história dos povos indígenas contada — não necessariamente escrita — pelos povos indígenas, a história dos afro-americanos contada por eles. Trata-se, portanto, de uma questão de proximidade entre sujeito historiador e objeto historiográfico. Quem é o Outro?


 


A categoria da alteridade (“o Outro”), isoladamente, não é suficiente para caracterizar nossa questão. Para os povos indígenas, o colonizador também era um Outro. Neste contexto não nos interessa o Outro em si, independentemente de sua condição social, mas o Outro enquanto pobre. Nos interessa a questão social no interior da questão cultural. A categoria da alteridade acrescenta ao pobre genérico algo essencial, sua condição cultural que lhe confere identidade e o situa no espaço geográfico e no tempo histórico. Na história da humanidade, a alteridade é anterior à pobreza, embora na história do indivíduo e de grupos sociais ambos possam coincidir. Pobreza e sua forma extrema, a miséria, são uma conseqüência da destruição cultural.


 


A questão do pobre — “o pobre como o critério interpretativo” para a história da Igreja — só podemos corretamente entender no interior da questão cultural que é mais ampla e, ao mesmo tempo, mais diferenciada e específica. Através da questão cultural é possível articular a diversidade universal do gênero humano, sem cair nas armadilhas do reducionismo e/ou integracionismo de uma monocultura dominante ou da coexistência indiferente em face do diferente. Pobreza e miséria da América Latina têm sua raiz na Europa. Chegaram com a conquista. A alteridade latino-americana, porém, tem sua raiz histórica neste continente, milênios antes da conquista. Uma história latino-americana que não quer descarrilar em 1500, necessariamente precisa repensar a origem, as raízes e a identidade do continente.


 


A alteridade — diferença e diversidade constitutivas de identidade — é a arma de resistência mais eficaz do pobre. A alteridade é o muro que separa o colonizador do santíssimo dos povos colonizados. Com a multiplicidade de suas culturas os Outros resistem contra as tentativas integracionistas e reducionistas. Conquistadores e missionários experimentaram essa resistência. Enquanto os povos indígenas são múltiplos, são invencíveis. Não cabem dentro da “grande narrativa” da história oficial, nem no interior de uma “mitologia geral” ou nas normas únicas de um cristianismo monocultural. A percepção empírica do tempo calculável é tão cultural como a aquisição de normas de conduta. A física moderna confirma este dado antropológico. A física quântica nos libertou definitivamente da perspectiva única do tempo linear da cosmovisão mecanicista de Newton. Desta resistência do múltiplo étnico ao supostamente universal colonizador escreve José de Acosta:


 


“Es un error común tomar las Indias por uma especie de campo o ciudad y creer que, por llevar un mismo nombre, son de la misma índole y condición. (…) Los pueblos indios son innumerables, tiene cada uno de ellos determinados ritos propios y costumbres y se hace necesaria una administración distinta según los casos. Por eso, no sintiéndome yo capaz de tratar uno a uno de todos ellos, por serme desconocidos en sua mayor parte y aunque llegara a conocerlos del todo sería tarea interminable (…).”[15]


 


Por isso os missionários se empenharam na redução lingüística através de línguas gerais. O colonizador é incapaz de conhecer ou entender o múltiplo. Portanto o qualifica como “babilônico”:


 


“Se dice que en tiempos pasados setenta y dos lenguas pusieron en confusión al género humano. Pero estos bárbaros se diferencian entre sí por sus setecientas y más lenguas.”[16]


 


Um dos primeiros historiadores que descreveu sistematicamente a diversidade de nações indígenas no Brasil, o jesuíta Fernão Cardim, enumera, em 1584, na costa do Brasil, 76 nações e línguas diferentes.[17] Mais tarde, o padre Antônio Vieira, no seu famoso “Sermão da Epifania”, se queixou também de uma verdadeira Babel lingüística na Amazônia:


 


“Na antiga Babel houve setenta e duas línguas; na Babel do rio das Amazonas já se conhecem mais de cento e cinqüenta, tão diversas entre si como a nossa e a grega; e assim quando lá chegamos, todos nós somos mudos e todos eles surdos.”[18]


 


O múltiplo bárbaro se opõe ao monocultural cristão e/ou ao universal civilizado. Mas Acosta diz que o múltiplo bárbaro também é “pobre” para expressar os mistérios da fé:


 


“Con frecuencia faltan los términos para declarar los misterios principales de la fe, como señalan los que hablan bien las lenguas indianas. Y declarar cosas de tanta trascendencia por medio de intérprete y confiar los misterios de la salvación a la buena fe y expresión de gente pleveya y vulgar (…) la experiencia misma viene enseñando los inconvenientes e incluso perjuicios que hay en ello: traduce unas cosas por otras, porque no entende o porque se cansa de seguir al que enseña.”[19]


 


Ao assumir o passado de um povo ou grupo social, a partir de sua perspectiva própria, a historiografia pode ser “boa notícia”, e assim colaborar na viabilidade do projeto de vida do respectivo grupo. Mas ela pode-se também tornar “má notícia”, ao reduzir o passado deste povo a uma pré-história, uma etnografia ou arqueologia. O prejuízo deste procedimento está no encolhimento da perspectiva utópica ou no bloqueio total do inédito-viável do respectivo grupo. O passado nanico se projeta sobre o futuro. O passado estrangulado enforca o futuro.


 


Alteridade e pobreza dos colonizados não garantem necessariamente o acesso correto à própria história. A história de um povo ou grupo social, de uma certa maneira, é sempre contada por Outros, não somente na seqüência das gerações, diacronicamente, mas também sincronicamente. A história dos menores assassinados na escadaria da Igreja Na. Sra. da Candelária e o genocídio dos Nambikwara e Ianomami são contados pelos sobreviventes, por Outros, vizinhos, testemunhas que se fazem “voz dos sem voz”.


 


Mas também o Outro, ao contar a história de seu próprio povo, não escapa da ambigüidade representativa, advocatória e interesseira do porta-voz. O Outro pode ser dominador interno de sua “tribo” ou instrumento de colonização de forças externas. O Outro pode ser representante apenas de si mesmo, e não de seu povo. A alteridade em si não legitima o discurso historiográfico, como tampouco o legitima a solidariedade em si. Também frente ao “Outro/pobre” é preciso perguntar em nome de quem fala e quais são os interesses que representa. O colonizador sempre soube manter seu domínio através da promoção de falsas lideranças do próprio colonizado. A história do cristianismo em Angola, contada por um cardeal angolano da Curia Romana, seguramente, seria bastante diferente da mesma história contada por Jonas Savimbi, líder da Unita. A nacionalidade angolana pode dizer pouco face à etnicidade tribal africana. Mas também frente às grandes ideologias que são planetárias, os Outros/pobres não adquiriram uma imunidade indestrutível. Sempre existe a possibilidade da recuperação de “lideranças” autóctones pelos interesses de um sistema — político, econômico, eclesiástico — que os promoveu. O referencial da alteridade étnico-cultural (negro, índio, mestiço, angolano) não garante a “história autêntica”. Tampouco o fato de que alguém escreve sobre sua própria classe social (pobre, excluído) ou a participação do próprio evento relatado garantem a “verdadeira história”.[20] Um Guarani não escreve a história do povo guarani necessariamente melhor do que um não-guarani.


 


O que um Guarani pobre precisa para ser um historiador confiável da história de seu povo, se nem sua etnicidade, nem sua pobreza, nem seu testemunho ocular fornecem uma garantia suficiente para tal empresa? Ele precisa, além das ferramentas profissionais do historiador, responder com lealdade, perspicácia e astúcia à confiança e delegação de seu povo. Lealdade quer dizer, devolução daquela história ao povo que fortalece seu projeto histórico. A verdadeira história, na perspectiva de uma hermenêutica a partir do Outro/pobre, é sempre aquela que, a partir do passado, fortalece o projeto histórico do respectivo povo e grupo social. A verdade há de ser articulada com a vida. A verdade histórica de um povo ou grupo social é inseparável do seu projeto de vida. O “projeto de vida” fornece a chave de leitura e articulação das fontes históricas. Nestas condições, o Guarani pobre tem múltiplas vantagens sobre o “intelectual orgânico”, comprometido com o lugar e a perspectiva do Outro/pobre, sem participar realmente de suas condições de etnia e classe. A partilha da vida concreta ultrapassa a inteligência solidária.


 


Mas, os projetos dos Outros/pobres, no final deste século que aparentemente entregou a taça do vencedor ao projeto neoliberal, são extremamente ameaçados. O projeto neoliberal substitui a violência colonial da integração uniformizadora pela violência da exclusão, por sua vez também homogeneizadora através da fome e da miséria. Nesta perspectiva, a solidariedade advocatória do intelectual orgânico deve-se considerar um fator estrategicamente não descartável.


 


III. A historiografia advocatória


 


A prática do historiador não é uma prática neutra ou meramente técnica. A verdade histórica, como toda verdade, tem raízes e condicionamentos sócio-culturais. Os historiadores nunca são meros digitadores ou porta-vozes daquilo que os povos contam, comparáveis a técnicos de gravação de um estúdio de televisão. O historiador é um interventor e um agente de mudança. Como um escultor, o historiador tem a possibilidade de esculpir estátuas muito diferentes da pedra bruta da história.


 


A historiografia advocatória, ao escovar a história oficial a contrapelo, é intencionalmente uma história antisistémica. Como um advogado defende um “marginal” com os instrumentais do sistema central/dominante, também a historiografia advocatória pode defender os “marginais” da história oficial no interior das estruturas e com o instrumental do sistema dominante. O sistema dominante, é claro, não permite à historiografia solidária perambular por suas alamedas sem pagar o pedágio dos constrangimentos institucionais de uma faculdade, de uma igreja ou do estado O inquilinato na casa do sistema implica o pagamento do condomínio que não deixa de ser uma forma soft de cooptação. Mas entre “concessões sistêmicas”, estrategicamente assumidas, e “profecia da corte” há uma grande diferença. O próprio Evangelho é antisistêmico. Mas por vezes é difícil, como o Evangelho diz, estar no mundo, sem ser do mundo. Para que a historiografia solidária possa permanecer fiel a seu propósito, sem dupla lealdade, ela há de aferir — e não apenas pressupor — permanentemente a simetria de sua prática e perspectiva profissional com o projeto de vida dos Outros e pobres.


 


Nesta aferição da simetria entre o projeto de trabalho do historiador e o projeto de vida dos povos encontram-se muitas cercas, limites, aporias “históricas” e dicotomias entre o “oral” e o “escrito”, entre o “universal” e o “particular”, entre o “múltiplo” e o “único”, entre o “tempo circular” e o “tempo linear”, entre o “mito pré-lógico e pré-histórico” e a “história”. A tarefa da historiografia advocatória não é a reprodução destas divisões maniqueistas, mas sua superação. Ele há de compreendê-las provisórias, prejudiciais aos Outros e aos pobres, causadoras de violência, exploração e etnocentrismo. Na raiz de toda violência está a destruição da inteireza e integridade, tanto de indivíduos como de grupos sociais; está o divide et impera entre homem e mulher (machismo), entre corpo e alma (violência religiosa, escravidão), entre ricos e pobres (exploração/exclusão), entre humanidade e natureza (o res cogitans e res extensa de Descartes), entre tempo vazio (lazer) e tempo pleno (trabalho). Estas cisões não devem ser confundidas com os elementos constitutivos da alteridade. Alteridade é a polaridade entre diferentes íntegros e inteiros que gera luz. A alteridade — onde o diferente não é contemplado com um olhar indiferente, mas com simpatia — visa a articulação dos Outros/pobres entre si e com outros setores da sociedade. Não se deve confundir a alteridade polar com a dualidade indiferente ou hostil. A separação maniqueista das partes e de grupos, onde não causa indiferença, gera traumas, exige subordinação e permite dominação.


 


Da “história contada pelo Outro” para a “história escrita por nós” há um longo caminho de violência, seleção e incorporação.


 


No dia 16 de novembro de 1532, quando Francisco Pizarro foi recebido por Atahualpa em Cachamarca, o dominicano Vicente de Valverde apresentou ao Inca a Bíblia com as seguintes palavras:


 


“‘Sou servo de Deus e ensino aos cristãos as coisas de Deus, e também venho ensinar a vós; e o que lhes ensino é o que Deus nos falou, que está neste livro.'(…) Atabaliba disse ao religioso que lhe desse o livro para vê-lo. (…) Abriu-o, e não maravilhando-se das letras nem do papel (…) o atirou a cinco ou seis passos de si.”


 


E Atauhalpa respondeu a Frei Valverde que sabia muito bem tudo o que os espanhois tinham feito por esse caminho: “que haveis (…) tomado a roupa de meus caciques e como os haveis tratado, e aqui haveis saqueado minhas cabanas. (…) O religioso disse ao governador o que tinha ocorrido com Atabaliba e muita soberba com que tinha atirado a Sagrada Escritura ao chão e que parecia que vinha com más intenções. O governador logo se armou (…), entrou no meio de todo o povo de Atabaliba com muito ânimo, (…) tomou-lhe o braço e disse: ‘Santiago!’ E neste momento foram disparados os tiros de pólvora (…).”[21]


 


Nem para todos os povos de cultura oral, o encontro com a escrita e com a Bíblia foi tão dramática como o foi para Atauhalpa. Claude Lévi-Strauss, ao relatar em seu livro Tristes Trópicos o encontro dos Nambikwara com a escrita, faz as seguintes considerações sobre a correlação entre o aparecimento da escrita e a dominação:


 


“O único fenômeno que a [escrita] tem fielmente acompanhado é a formação das cidades e dos impérios, isto é, a integração num sistema político de um número considerável de indivíduos e a sua hierarquização em castas e em classes. Essa é em todo caso a evolução típica à qual se assiste desde o Egito até a China, quando a escrita surge: ela parece favorecer a exploração dos homens, antes da sua iluminação. (…).”[22]


 


Vale ressaltar que com o ano da invasão das Américas, 1492, coincide não somente a expulsão dos Árabes e dos Judeus da Espanha, mas também a confecção da primeira “Gramática castellana” por Antonio de Nebrija. No prefácio, o próprio Nebrija sublinha que o papel da língua unificada é tão importante quanto o da fé, das armas e das leis.[23] Quem edita a gramática e determina o dicionário de um povo, domina a semântica, portanto, domina o projeto histórico de um povo.


 


A despeito desta realidade, as classes letradas — independentemente de sua orientação ideológica — consideraram a escrita sempre um progresso universal. Ainda as Conclusões de Medellín, seguindo o Vaticano II, afirmaram, por exemplo, que sem escrita não há cultura: “Existe (…) o vasto setor dos homens marginalizados da cultura, os analfabetos, e especialmente os analfabetos indígenas, privados por vezes até do benefício elementar da comunicação por meio de uma língua comum. Sua ignorância é uma escravidão desumana. Sua libertação, uma responsabilidade de todos os homens latino-americanos.”[24]


 


A alfabetização dos povos colonizados na língua do colonizador tem sido um instrumento eficaz para fazer esquecê-los seu próprio saber. sem ter acesso ao saber do colonizador.As classes letradas pensam que a cultura de um povo começa com a sua chegada, que o beneficia com a escrita. Os analfabetos, os que pernoitam de baixo dos viadutos, portanto, seriam pessoas sem cultura. Como repercute esta visão etnocêntrica no campo da historiografia?


 


Também a história oficial — a história ensinada nas universidades e transmitida nos livros — começa com a escrita. E os historiadores profissionais acham que antes de 1500 nas Américas não havia história, mas

Fonte: Paulo Suess (Assessor Teológico do Cimi)
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