31/01/2006

Apontamentos apresentados durante o Seminário “Inculturação e Liturgia”

Organização: Cimi/CNBB, Luziânia, 6.3.2004


Paulo Suess


 


Estamos assistindo, durante este seminário, um rito de iniciação eclesial. Iniciari, do latim, quer dizer: abrir portas. Procuramos saber em que direção abrir as portas (para dentro ou para fora), para que possa acontecer um encontro com os povos indígenas.


 


1) Um processo complexo


 


Pode-se considerar a inculturação da liturgia cristã na vida dos povos indígenas como um processo de iniciação para a própria Igreja. Este processo passa por rituais de dor, de morte e ressurreição. A inculturação não é opcional. È um imperativo do seguimento de Jesus, como diz o documento de Santo Domingo (n. 13). A inculturação responde à primeira colonização e à segunda colonização, hoje presente, no neocolonialismo dos meios de comunicação e do mercado.


Se a Igreja declarar que a finalidade da inculturação não é criar novos ritos, mas adaptar o Rito Romano à compreensão dos povos indígenas, então não se trata de inculturação. Por outro lado, a diversidade entre os povos indígenas é muito grande e pode chegar aoponto de impedir a comunicação.


 


2) Como comunicar-se com o diferente?


 


O diferente é um valor que está ligado ao surgimento da vida. A vida humana é resultado de uma permanente diversificação das primeiras células primitivas.


O diferente pode ser eliminado pela integração na cultura dominante. A adaptação é uma tentativa de encontrar-se no meio caminho. A inculturação que se inspira na encarnação de Jesus de Nazaré. A inculturação é um ato permanente de despojamento (kenose) que visa o protagonismo dos povos indígenas, com a sua identidade fortalecida. Não podemos defender, politicamente, o projeto histórico dos povos indígenas, e prejudicá-lo no campo simbólico. A alteridade indígena aponta para a alteridade do Reino de Deus que gira em torno de uma outra lógica.


A unidade da Igeja não é resultado da uniformização dos sinais e ritos. Mesmo ritos iguais podem sempre ter um significado diferente. A leitura do sentido vai sempre muito além de coreografias rituais padronizadas. A unidade da Igreja emerge da articulação de sua diversidade. O diferente é sempre uma possibilidade do divino entre nós. Essa possibilidade exige nossa abertura e compaixão. O diferente não nos faz indiferentes, mas particularmente sensíveis.


A comunicação ritual (litúrgica) com o diferente aponta para a possibilidade de celebrar em dois ritos: Um rito particular, específico, do respectivo povo e outro rito mais universal para a con-celebração com outros grupos. No campo das línguas fala-se do bilingüismo, o que neste contexto significa, falar a própria língua e falar uma língua geral. O bilingüismo é a condição para que ninguém seja oprimido pela cultura ou língua do outro, mas também para que haja comunicação e compreensão além da própria tribo.


 


3) Diversificar os ministérios e decentralizar as estruturas


 


Trabalhar com essa grande diferença cultural dos povos indígenas exige não só diversificar os ritos, mas também decentralizar e diversificar os ministérios. A diversidade dos ministérios na Igreja obriga distinguir entre ministérios cuja ênfase está na inculturação micro-estrutural (equipe de base) e ministérios que priorizam, por sua estrutura funcional, a articulação mais ampla (secretariado nacional das pastorais; ministério episcopal).


Nós, agentes de pastoral, que passamos pelas estruturas da Igreja e vivemos culturalmente perto da classe média, temos muitas dificuldades para conviver com os povos indígenas ou outros setores sociais. Às vezes, por não conseguirmos a inculturação na aldeia, gastamos muitas energias para legitimar a não-inculturação. Atrás de muitas “desculpas” está simplesmente a impossibilidade psicológica de a classe média abrir mão de seus privilégios e, com isso, a impossibilidade de se inculturar num determinado ambiente social.


Como fica então a evangelização? O evangelho deve ser anunciado em todos os grupos sociais. Se não conseguimos a inculturação em determinados ambientes, talvez consigamos descobrir os evangelizadores que já estão no respectivo grupo, onde não conseguimos fincar pé. Porque Aquele que depois de sua ressurreição precedeu seus discípulos na Galiléia dos pagãos, precedeu também hoje seus evangelizadores em todas as Galiléias do mundo. O primeiro evangelizador, que é o Espírito Santo, pai dos pobres e protagonista da evangelização, já está entre eles. Deus suscita em todos os grupos sociais evangelizadores. Falta descobrí-los, acolhê-los, confirmá-los e acompanhá-los. Quem impediu os povos indígenas no Brasil de terem seus próprios protagonistas da evangelização?


 


4) Trabalhar com o cultural e historicamente disponível


 


Como a cultura de nenhum povo é normativa para um outro povo, Jesus de Nazaré não padronizou sua cultura para viver e testemunhar a experiência de Deus. Jesus interveio em sua própria cultura – dentro dos limites da consciência possível de sua época – , quando se tratava de estruturas de pecado no interior do seu povo (crítica do farisaísmo). Para explicar a vontade de Deus, Jesus se serviu em todas as circunstâncias de sua vida do cultural e historicamente disponível.


Jesus não fez empréstimos ou importações culturais para explicar os mistérios de Deus. Apesar da precariedade de sua cultura, explicava os mistérios do Reino numa linguagem também semanticamente compreensível para todo mundo. Não mandou buscar bebida fermentada do Egito para celebrar a Última Ceia com seus apóstolos.


O culturalmente disponível não é “qualquer coisa”. As diferentes experiências humanas vividas e culturalmente codificadas por grupos sociais não são algo meramente arbitrário ou descartável. São resultado de uma longa experiência histórica.


 


5) O cristianismo acrescenta algo à religião e à vida dos povos indígenas?


 


No Rio Negro (AM), numa mesma diocese, existe o povo Maku e existe o povo Tukano. Os Tukano consideram os Maku os últimos na hierarquia étnica do Rio Negro. Maku dorme no chão e come formiga. O Tukano acha isso ruim. Na étnica tribal Tukana não está previsto “o amor maior”, no sentido de um Tukano dar a sua vida por um Maku. Os povos indígenas vivem, como Israel no Antigo Testamento, a ética da reciprocidade que é, frente à ética do capitalismo, um grande avanço. A gratuidade universal (raíz da fraternidade e da solidariedade) é uma contribuição do cristianismo para o patromônio da humanidade. Dar a vida pelos outros… Vicente Cañas, Irmã Cleusa, Rudolfo Lunkenbein, Romero e Girardi… A gratuidade é o núcleo da lógica do Reino e a condição da não-violência e do shalom. A gratuidade não é natural, é sobrenatural, rompe com o feitiço e sua vinculação à lei do causa-efeito, rompe com a vingança, com o pagamento das dívidas: “Para nós nada, para o povo tudo”…


Fonte: Paulo Suess (Assessor Teológico do Cimi)
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