31/01/2006

Encontro e desencontro na busca da ‘terra sem mal’

Paulo Suess


 


Na origem deste ‘IV Encontro de Teologia Índia’ está o conflito entre sociedades indígenas e a sociedade dominante. O conflito desperta o sonho da ‘terra sem mal’. O ‘princípio do mal’ – os Mapuche o denominam ‘kaikai’ e os mitos de outros povos da América Central falam da ‘serpente devoradora’ – nos pressionou para realizar o encontro. No meio da ‘vida falsa’ – da vida alienada – não morre o sonho da vida na ‘divina abundância’. Se a terra – por motivos sociais (lutas internas), ecológicos (esgotamento do solo) ou teológicos (cataclismos, dilúvio) – não garante mais o bem-estar da vida, o povo Guarani procura um outro espaço para viver com dignidade e caminha em busca da ‘terra sem mal’.


 


Viver com dignidade significa ter o suficiente para a prática da reciprocidade vivida na festa, na dança, na reza, no trabalho e na caminhada. A ‘divina abundância’ é resultado da partilha, não da acumulação. O mundo moderno conspira contra esse ‘modo de ser guarani’ (teko). O tekoha, o ‘lugar onde se dão as condições para ser guarani’, e o teko katu, o ‘ser autenticamente guarani’ estão ameaçados. O conflito confere ao mito contornos históricos e inspira a sua atualização política. O conflito, não a bonança, nos reuniu neste encontro e nos faz atualizar, historicamente, o nosso mito do “amor maior”.


 


Mito e teologia têm funções sociais e linguagens semelhantes. Ambos explicam as origens do mundo e da humanidade, legitimam as condições de vida (morte, sofrimento, classes sociais, pecado) e alimentam sonhos, desejos e utopias de um mundo melhor. As diferentes condições de vida produzem diferentes utopias e exigem diferentes explicações mitológicas e/ou teológicas. Sociedades indígenas igualitárias que não acumulam nem excluem, exigem outras legitimações – outras teologias – que sociedades concorrênciais e acumulativas no interior do capitalismo neoliberal. O valor do tempo e do espaço em ambas as sociedades é muito diferente. Na aldeia guarani, a função prioritária do tempo não é o trabalho, mas o lazer. Onde a moeda do tempo não é o ‘dinheiro’, também o ‘tempo livre’ não é confundido com ‘preguiça’. Para muitos povos indígenas, a festa garante a redistribuição dos bens. A função básica do espaço – da terra – não é ‘propriedade’ para gerar lucro, mas ‘dom’ que garante o bem-estar com a vida.


 


Se a teologia é uma instância que explica e legitima a vida concreta de cada sociedade, obviamente, as teologias de sociedades mais ou menos igualitárias, integradas e holísticas, e as teologias de sociedades marcadas por desigualdades estruturais e fragmentações profundas, são diferentes em suas metodologias, conteúdos e perspectivas. Só uma teologia que se entende como instância crítica no interior da sociedade dominante permite uma certa proximidade com a Teologia Índia. Essa teologia profética na sociedade estruturalmente desigual, propõe rupturas sistêmicas que apontam para a utopia de sociedades igualitárias. Contudo, não existem relações deterministas entre o impacto da realidade social sobre a teologia da respectiva sociedade. Mas, para iniciar um diálogo entre diferentes Teologias é importante não perder de vista os diferentes modelos de sociedade onde estas Teologias emergem. As diferenças, consideradas propriamente teológicas, muitas vezes, encontram neste chão social e histórico a sua explicação profunda.


 


O primeiro encontro entre Teologias não acontece no terreno intelectual (conceito, identidade, verdade), mas vivencial, portanto, no caminho comum da busca da ‘terra sem mal’, no caminho que aponta para a utopia do Reino. As utopias dos diferentes projetos de vida que encontram seus reflexos nos respectivos mitos e teologias, são semelhantes e diferentes. Não é a utopia – o sonho da chegada – que une diferentes projetos de vida, mas sobretudo a busca comum do e no caminho. Nisso está o sentido profundo quando Jesus se autodenomina ‘caminho’ e não ‘chegada’. A possibilidade do encontro está na busca comum de ambas as partes. A afirmação unilateral do monopólio do caminho ou da verdade impossibilita o encontro entre iguais. A ‘chegada’ de um só aponta para o desencontro do monólogo. Na chegada de todos, o diálogo será substituído pela contemplação. O diálogo no caminho vive da própria fé e da soma de múltiplas esperanças.


 


O argumento dos cristãos que o ‘Verbo encarnado’ é a última palavra, está correto. Para os seguidores de todas as religiões e denominações religiosas existe algo absoluto. Mas, a ‘última palavra’ dos cristãos não é hegemônica; não fecha o diálogo, nem dispensa a busca comum no caminho. Na hermenêutica do Verbo ninguém tem a última palavra. O acesso à última palavra é sempre um acesso através de penúltimas palavras que chamamos símbolos, metáforas, conceitos, modelos e paradigmas. Também a Teologia, o teo-logos, é apenas um holofote cuja luz ilumina seu objeto à longa distância. Embora que a verdade seja uma só, o nosso falar da verdade é fragmentado e complementar. Novamente é o conflito que forja o encontro. O ‘conflito das interpretações’ é o pressuposto para condições simétricas e históricas do diálogo no caminho. O ‘amor maior’ desmonta a assimetria social e a hegemonia da palavra. No diálogo da caminhada e na ruptura com o ‘kaikai’ sistêmico está a possibilidade do ‘bom encontro’ entre Teologia Índia e Teologia Cristã.


 


(IV Teologia Índia Introdução, 6..5.2002)


 

Fonte: Paulo Suess (Assessor Teológico do Cimi)
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