31/01/2006

A missão no canteiro de obras do Vaticano II

Contexto e texto do Decreto “Ad Gentes”


revisitado 40 anos depois de sua promulgação


 


Paulo Suess


 


Introdução


 


Na origem do Concílio Vaticano II estão perguntas sobre a possibilidade de comunicar a mensagem cristã ao o mundo de hoje e de vivê-la com relevância para a humanidade. Como traduzir os artigos de fé, os sinais de justiça, as imagens de esperança e as práticas de solidariedade para os interlocutores “mundo” e “humanidade” que os consideram, em seu significado simbólico, incompreensíveis, em seu conteúdo, ultrapassados e, em sua aparência, folclóricos? As respostas do Vaticano II foram além das perguntas da época. Hoje, depois de 40 anos de caminhada pós-conciliar, a releitura dos documentos do Vaticano II, que colocou a missão no coração da Igreja, pode iluminar a reflexão teológica e reanimar a prática pastoral.


 


1. Antecedentes históricos


 


Os tratados de teologia do século XIX e da primeira metade do século XX mostram pouca preocupação com a missão como tema eclesiológico ou pastoral. “A afirmação pura e simples da competência da Igreja em todos os domínios tinha reduzido a idéia de missão à reivindicação, por parte da sociedade eclesiástica, dos seus direitos e dos seus poderes” (LE GUILLOU, 1965, p. 68). “Missão” não designava uma visão de Igreja local ou universal, mas uma atividade de resgate salvífico, por direito e dever, em terras longínquas, dirigida por centros europeus.


 


Os documentos oficiais da Igreja Católica latino-americana do fim do século XIX e da primeira metade do século XX apontam para uma Igreja defensiva, predominantemente jurídica e voltada para si mesma. As Atas e Decretos do Concílio Plenário da América Latina, celebrado em Roma entre 28 de maio e 9 de julho de 1899, definem a “civilização” das “tribos que ainda permanecem na infidelidade” [n. 770] como meta, para a qual servem a “pregação evangélica” e o “estudo das línguas” como meio de administração dos sacramentos (cf. CONCÍLIO PLENÁRIO, Actas, 1906, itens 547s, 619, 627, 770-774). Muitas das deliberações pastorais daquele Concílio repetem os tópicos elencados 300 anos antes, na primeira fase de colonização, nos concílios de México e Lima.


 


A “Pastoral Collectiva” e as “Resoluções e Estatutos” da Província Eclesiástica Meridional do Brasil, de 1901, assinadas pelos bispos de Rio de Janeiro, São Paulo, Rio Grande do Sul, Mariana, Petrópolis, Curitiba e Pouso Alegre, mostram uma Igreja que se romaniza a si mesma, sem nenhuma preocupação com os povos indígenas (cf. Pastoral Collectiva, 1902). A mesma despreocupação refletem as Cartas Pastorais, como aquela que o episcopado brasileiro escreveu por ocasião do Centenário da Independência (cf. Carta Pastoral, 1922); a mesma lacuna encontra-se nos 489 cânones do Primeiro Concílio Plenário Brasileiro, celebrado em 1939 no Rio de Janeiro (cf. CONCILIUM PLENARIUM BRASILIENSE, 1939). Mas, em cada ano dessa época, um povo indígena foi definitivamente exterminado.


 


Com o fim das duas Guerras Mundiais, a ideologia colonial foi derrotada e a civilização ocidental começou a perder seu prestígio. O mundo pós-colonial passou a forjar também a descolonização da Igreja. Bento XV aponta na encíclica Maximum illud (1919) para aquilo que deveria ser “uma das preocupações principais” do trabalho missionário, “a formação e a organização de um clero indígena” [n. 14]. Pio XI ordena, em 1925, os primeiros seis bispos chineses. Um dos precursores da descolonização é Charles de Foucauld (1858-1916) que, com seus seguidores nos mais diversos movimentos espirituais e fundações religiosas, antecipava questões posteriormente articuladas em torno do paradigma da inculturação. Neste contexto pós-colonial da opção pelos outros emerge a opção pelos operários de um Joseph Cardijn, que em 1924 fundou na Bélgica a Juventude Operária Cristã (JOC), inspirando a Ação Católica com seu método da “revisão de vida” (ver, julgar, agir). Ele influenciou profundamente o Concílio, que conseguiu fazer uma “revisão da vida eclesial” e inspirou, posteriormente, a prática e a reflexão da pastoral latino-americana.


 


A beatificação do padre Antoine Chevrier – 7 de outubro 1986, em Lyon -, fundador dos “Padres do Prado”, chamou a atenção para seu carisma, que apontou muito tempo antes do Concílio para um novo estilo de ser sacerdote, vivendo em comunidade, caminhando despojado no meio dos operários, dos imigrantes, dos favelados e dos camponeses do Terceiro Mundo, segundo o Espírito de Deus, contemplando Jesus nos lugares pobres do presépio, da cruz e da Eucaristia, evangelizando os pobres, e se integrando plenamente no presbitério da igreja local. O sucessor do padre Chevrier, Alfred Ancel, teve presença discretamente marcante durante o Concílio em favor de uma Igreja pobre e dos pobres.


 


A criatividade e tenacidade dos movimentos litúrgico, bíblico e ecumênico abriram, muito antes do Vaticano II e, por vezes, na clandestinidade eclesial, perspectivas para a celebração da vida e para a leitura da palavra de Deus historicamente situada num horizonte escatológico de unidade eclesial.


 


Por fim, não se deve esquecer a sobriedade missionária do movimento dos padres operários e da Mission de France, o despojamento de um Abbé Pierre, fundador do movimento dos maltrapilhos-construtores de Emaús, que já apontaram para a opção pelos pobres e pelos que mais sofrem. João XXIII, na encíclica Pacem in terris (1963), invoca a descolonização como um sinal de Deus no tempo [n. 42]. Nem sempre nas práticas pastorais eclesialmente reconhecidas, mas nos documentos o século XX é um século de transição lenta e, às vezes, contraditória de uma Igreja colonial e colonizadora para a subjetividade de Igrejas locais numa era pós-colonial.


 


Nesse contexto de indecisão e transição, deve-se situar a declaração dos antropólogos que participaram, de 25 a 30 de janeiro de 1971, em Barbados, de um “Simpósio sobre a Fricção Interétnica na América do Sul”. Segundo eles, “o conteúdo etnocêntrico da atividade evangelizadora” das missões religiosas está baseado no “seu caráter essencialmente discriminatório” e na sua potência econômica, que fez as missões se converterem “em uma grande empresa de recolonização” (DECLARAÇÃO, p. 22s). Em virtude dessa análise, os antropólogos propõem “acabar com toda atividade missionária”. Como se percebe, o Vaticano II, que terminou em 1965, e o clamor pela descolonização da prática missionária não repercutiram imediatamente sobre as microestruturas das chamadas Missões, ainda presas ao seu passado colonial (cf. SUESS, 1989).


 


2. Aggiornamento


 


O anúncio do Vaticano II, na festa da conversão do apóstolo Paulo, dia 25 de janeiro de 1959, na Basílica de São Paulo Fora dos Muros, tem um profundo significado simbólico. Data, lugar e pessoa escolhidos pelo Papa João XXIII apontam para o propósito de reconstruir uma Igreja com atitude de conversão; apontam para uma Igreja apostólica, cuja atividade missionária se torna responsabilidade redentora para com toda a humanidade, e para uma Igreja cuja identidade não é assegurada por muros, mas que se encontra a si mesma, exatamente, “fora dos muros”. Como colocar a Igreja em dia com o mundo e com uma nova consciência histórica, e inseri-la na realidade de hoje? Inserção na realidade, consciência histórica, contemporaneidade, sem concessões aos modismos, e visão utópica delineiam o campo semântico do aggiornamento.


 


Com a eleição de João XXIII, em 1958, veio um papa que disse que a igreja não precisava de uma operação dogmática ou de mais severidade para com o mundo, mas de uma oxigenização pela vida cotidiana, pela realidade histórica e pelos sinais de Deus no mundo. A “substância da antiga doutrina do depositum fidei” está revestida de formulações sem chance de mediação pastoral para o mundo de hoje, dizia o Papa em seu discurso de abertura do Concílio, no dia 11 de outubro de 1962 (KLOPPENBURG, 1963, p. 310). Prefiro, dizia o Papa, o “remédio da misericórdia” ao da “severidade”. A Igreja precisa estar pronta para dar a razão de sua esperança, mas sempre com “mansidão e respeito” (1Pd 3,14). O melhor convite da Igreja à conversão do mundo é o amor aos pobres nos quais encontra a presença de Cristo (cf. GS 88a; LG 8c). O Papa João XXIII não é o criador solitário do aggiornamento, mas a sua expressão corajosa. Muitas experiências proféticas de aggiornamento passaram, antes de João XXIII, por momentos de suspeita, de proibições e desqualificações eclesiais. Ele tem o mérito de ter esperado na porta aberta da Igreja o retorno de muitos profetas silenciados. A coragem profética, que não é própria das instituições, fez João XXIII convocar um concílio com seu olhar voltado para “fora dos muros”.


 


O aggiornamento exige, como todo o seguimento de Jesus, um discernimento. O autor da Carta a Diogneto, na segunda metade do século II, com uma alusão a textos no Evangelho de São João, formulou esse discernimento assim: “Os cristãos residem no mundo, mas não são do mundo” (A Carta a Diogneto, VI.3, cf. Jo 15,19; 17,11-16.). Como as pessoas podem estar no mundo, sem ser do mundo? Trata-se de uma presença significativa sem identificação ou acomodação. Abertura ao mundo e inculturação no mundo, como se diria mais tarde, não solucionam todas as tensões entre Igreja e mundo. Assumem os limites da presença dos cristãos no mundo, limites esses marcados, ao mesmo tempo, pela inserção e a não-identificação com o mundo. Como viver a contemporaneidade secular sem ceder à secularização?


 


Poucos dias depois da abertura do Vaticano II, o debate sobre o aggiornamento se tornou bastante prático na adaptação da liturgia e na controvérsia sobre o latim como língua litúrgica e como língua franca no Concílio (cf. KLOPPENBURG, 1963, p. 94ss, 107ss). Helder Câmara já advertiu no segundo dia do Concílio que “provavelmente o latim será derrubado como língua oficial: grande número de bispos não consegue entender, sobretudo o latim falado por franceses e alemães… Virão depois as batalhas essenciais pela alteração dos esquemas” (CÂMARA, p. 4).


 


3. Gênese do Decreto Ad Gentes


 


Ao texto definitivo do “Decreto Ad Gentes sobre a Atividade Missionária da Igreja”, de 7 de dezembro de 1965, precederam sete documentos, que permitem acompanhar as lutas pelo significado do paradigma “missão” e o processo lento da construção de um consenso em torno de uma Igreja que não põe mais no centro o ter missões, mas o ser missionário.


 


1) 23 propostas


Quatro meses depois do anúncio do Concílio, o Papa João XXIII instituiu, na festa de Pentecostes, no dia 17 de maio de 1959, a Comissão Antepreparatória, presidida pelo cardeal Domenico Tardini, Secretário de Estado, para “conhecer opiniões”, pedir sugestões e “recolher conselhos” do episcopado, das Universidades Católicas, das Faculdades Pontifícias, das Congregações Religiosas e das Congregações Romanas, que depois deveriam ser sistematizados e encaminhados ao Concílio (cf. FOUILLOUX, 1996, p. 103ss). Entre a carta oficial de Tardini, do 19 de junho, e o fim da consulta, dia 30 de outubro de 1959, decorreu pouco tempo (cf. PAVENTI, p. 48ss).


Antes e durante essa consulta da Comissão Antepreparatória “às bases” da Igreja, as Congregações Romanas já formaram comissões internas de estudo, com seus consultores e colaboradores próprios. Também a Propaganda Fide, ex-officio responsável para o debate missionário, constituiu, em 10 de novembro de 1959, uma comissão desse tipo.[1] Em 16 de fevereiro de 1960, Tardini pediu aos secretários das Congregações Romanas que preparassem até meados de março, na base do retorno da consulta e do próprio trabalho, propostas que a Comissão Antepreparatória deveria avaliar, a partir do dia 8 de abril. A comissão da Propaganda Fide elaborou 23 propostas, que entregou em 28 de março de 1960 ao cardeal Tardini. A Comissão Antepreparatória terminou seu trabalho, em 1º de maio de 1960, com a coleção de mais de cinco mil páginas.


 


2) Prefácio e sete esquemas em forma de decretos


A 5 de junho de 1960 iniciou-se a fase propriamente preparatória do Concílio. João XXIII instituiu nesse dia a Comissão Central com dez Comissões Preparatórias e três Secretariados que deveriam trabalhar sobre as propostas até então colecionadas. Os presidentes das dez Comissões Preparatórias eram sempre os prefeitos das respectivas congregações romanas (cf. KLOPPENBURG, v. 1, 1962, p. 56s). Essas presidências asseguravam o papel preponderante da Cúria Romana sobre o processo preparatório do Concílio. O Prefeito da Congregação pela Propagação da Fé (Propaganda Fide), cardeal Agagianian, patriarca armênio da Cilícia, foi nomeado Presidente da Comissão Preparatória das Missões.


A Comissão “de Missionibus” estava integrada por 22 membros e 32 consultores. Na representação por nacionalidades sobressaem a Europa e o Norte (cf. BRECHTER, p. 10). Secretários adjuntos da comissão foram S. Paventi[2] e N. Kowalsky, ambos funcionários da Propaganda Fide. A sessão inaugural da Comissão Preparatória das Missões aconteceu no dia 24 de outubro de 1960, na Igreja da Propaganda Fide. Foram instaladas cinco subcomissões em torno dos seguintes assuntos: sacramentos e liturgia, governo nas missões e direito canônico, vida do clero e do povo, reforma na formação do clero e dos religiosos, ajuda dos fiéis às missões. Os resultados das subcomissões foram discutidos em duas sessões plenárias da Comissão Preparatória  das Missões, a primeira, de 17 a 26 de abril de 1961, e a segunda, de 20 a 30 de novembro de 1961. Para a segunda sessão plenária, uma nova subcomissão tinha dado a forma redacional aos trabalhos das diferentes subcomissões. Segundo as exigências dos representantes da Propaganda Fide, os textos tiveram de ser redigidos na forma canônica de “decretos”, com uma demonstratio e uma dispositio, respectivamente, e, obviamente, em latim.


Numa última sessão dos secretários das subcomissões com os secretários adjuntos, Paventi e Kowalsky, no dia 2 de fevereiro de 1962, se conseguiu uma redação final do Prefácio. As divergências sobre o conceito “missão” eram grandes. Finalmente, no dia 6 de fevereiro 1962, o Prefácio e os sete esquemas de Decretos estavam na mesa da Comissão Preparatória Central que, em fins de março, os discutiu em várias sessões.[3]


 


3) Prefácio e dois esquemas de decretos sobre as missões


Depois das discussões da Comissão Preparatória Central, seu novo presidente, cardeal Confalonieri, alegou, que a maior parte dos Decretos do esquema “De Missionibus” coincide com documentos de outras Comissões e impôs cortes drásticos. Dos textos apresentados pela Comissão Preparatória das Missões, sobraram, com algumas modificações, apenas o Prefácio e o primeiro e o último dos sete esquemas (De Regimine Missionum e De Cooperatione Missionali). A esses dois capítulos foi integrado um texto sobre o apostolado dos leigos nas missões, vindo da Comissão Preparatória “De Apostolatu Laicorum” (cf. PAVENTI, p. 55s). Esse novo minidocumento formou o Schema decreti de missionibus (Prefácio e dois Esquemas de Decretos sobre as Missões), no início de junho 1962, e deveria ser enviado à apreciação dos padres conciliares.


Em fins de julho de 1962, o secretário-geral do trabalho preparatório, Pericles Felici, enviou um volume com sete esquemas de “Primeira Série de Esquemas de Constituições e Decretos” à apreciação dos futuros padres conciliares. O documento da Comissão Preparatória para as Missões não fazia parte desse envio de documentos. A questão da missão não era prioritária nem urgente para a Comissão Preparatória Central. A Propaganda Fide lutava por sua própria sobrevivência e hegemonia, que estavam ligadas à sobrevivência da abordagem territorial das missões (“ter missões”), centralizadas e dependentes diretamente de Roma.


 


            4) Prefácio e dois esquemas sobre missão e cooperação


Com a abertura do Concílio, no dia 11 outubro de 1962, terminou o mandato das Comissões Preparatórias. Além de alguns Secretariados, o Regulamento do Concílio previu 10 comissões conciliares, cada uma com 16 membros eleitos pelos padres conciliares e 9 membros (incluído o respectivo presidente) nomeados pelo Papa. Nessa primeira etapa do Concílio, entre 11 de outubro e 8 de dezembro de 1962, os padres conciliares rejeitaram todos os esquemas apresentados, menos o documento sobre a liturgia.


Ao iniciar o Concílio, o cardeal Agagianian, da Propaganda Fide, foi nomeado presidente da Comissão das Missões. Ele elegeu Vítor Sartre e José Lecuona Labandibar como vice-presidentes e Saverio Paventi como secretário. Durante a primeira sessão do Concílio, Agagianian e os estrategistas da Propaganda Fide não convocaram a Comissão das Missões para nenhuma sessão de trabalho. Na aula conciliar e nos corredores, a Propaganda Fide recebeu críticas, sobretudo de bispos da África e da Ásia, que propuseram a transformação estrutural da Propaganda Fide num organismo de apoio econômico, sem poder jurídico.


Depois do primeiro período do Concílio e do retorno dos padres conciliares às suas dioceses, o vice-presidente da Comissão das Missões, Sartre, e o secretário, Paventi, com alguns peritos que moravam em Roma, reuniriam-se no dia 18 de dezembro de 1962 para dar início a uma série de sessões de trabalho e discussões em torno de um quarto documento. Para as reuniões plenárias da Comissão das Missões, entre os dias 20 e 29 de março de 1963, membros e peritos receberam o Schema decreti de missionibus (De Regimine Missionum e De Cooperatione Missional: Prefácio e dois Esquemas de Decretos, com algumas modificações) como base para seu trabalho. Nas reuniões plenárias da Comissão das Missões houve pouco consenso. Pressionado pelo tempo, a Comissão aprovou uma estrutura semelhante à do terceiro documento. No dia 3 de julho 1963, esse quarto documento foi apreciado pela Comissão de Coordenação, que o devolveu com muitas críticas. Em seguida, com poucas modificações, esse quarto documento foi enviado aos padres conciliares para ser discutido na segunda etapa conciliar (cf. BRECHTER, p. 12s).


 


5) Das missões


Durante o segundo período do Concílio (29.9.-4.12.1963), novamente surgiram na Comissão das Missões, agora já em posse das críticas de alguns pareceres dos bispos, divergências insuperáveis. Nessa segunda etapa do Concílio, a Comissão Teológica decidiu integrar à “Constituição sobre a Igreja” um capítulo sobre natureza e índole missionária da Igreja (cf. Lumen gentium, 17). Em 10 sessões plenárias, a Comissão das Missões produziu um quinto documento (“De Missionibus”), aprovado em 3 de dezembro com ampla maioria da Comissão.[4] Em janeiro de 1964 foi aprovado pela Comissão de Coordenação e em seguida enviado aos padres conciliares, que deveriam dar um retorno até 31 de março de 1964. Apesar do tempo reduzido para a apreciação do documento nas bases diocesanas do mundo inteiro, chegaram 67 propostas para emendas, configurando um volume de 283 páginas. Cinco apreciações falaram em nome de suas respectivas Conferências Episcopais. Para o dia 4 de maio de 1964, estava marcada a próxima sessão plenária da Comissão das Missões. Até o início do terceiro período do Concílio (14.9.1964), nenhum documento específico sobre a atividade missionária foi discutido na aula conciliar.


 


6) Esquema de 14 proposições sobre a atividade missionária da Igreja


Antes de a Comissão das Missões poder apreciar as propostas de emendas dos padres conciliares e concluir o quinto documento, ocorreu – sob pressão do tempo e das prioridades estabelecidas – uma intervenção administrativa, que obrigou a Comissão das Missões a abrir mão do texto em processo de elaboração e produzir um sexto documento em forma de uma declaração de princípios. O que aconteceu?


No dia 23 de abril de 1964, o secretário-geral do Concílio, Pericle Felici, publicou a decisão da Comissão Central de Coordenação de que, no interesse de uma concentração do trabalho, todos os textos ainda não discutidos na aula conciliar deveriam ser resumidos em “Proposições” e “Princípios”. Como Schemata propositionum deveriam, sem grandes discussões, ser apresentados aos padres conciliares para a votação. A Comissão das Missões estava diante da tarefa impossível de atender às expectativas do episcopado, de equacionar as divergências internas e de obedecer à Comissão Central.


Sob a pressão de redigir um texto curto, a Comissão das Missões produziu um sexto documento, de poucas páginas, que recebeu o título “De activitate missionali ecclesiae”. Era composto de um prefácio e 13 apontamentos sobre a atividade missionária.[5] No dia 26 de maio de 1964, esse novo documento foi enviado ao cardeal Cicognani e no dia 3 de julho, aos padres conciliares.


Depois do início do terceiro período do Concílio (14.9.-21.11.1964), a Comissão das Missões realizou ainda três sessões, ampliou os 13 apontamentos para 14, incluindo um item sobre a responsabilidade da Igreja universal com as missões, e preparou o texto para a votação dos padres conciliares. Apesar da intervenção, na aula conciliar, de Paulo VI, no dia 6 de novembro de 1964, em favor dessas 14 Proposições, a rejeição do texto pelos padres conciliares foi quase unânime (cf. KLOPPENBURG [org.], 1965, vol. IV, p. 298-316). Os leigos, dizia o Papa, “que fazem parte do real sacerdócio do povo santo de Deus, (…) ofereçam orações, práticas de piedade e auxílios materiais para generosa ajuda e conforto dos arautos do Evangelho”, que são, supostamente, os padres missionários. Mantém-se a hierarquia clerical também no interior dos “territórios de missão”: “sacerdotes” missionários, “auxiliares missionários de ambos os sexos, catequistas e os que oferecem às Missões auxílios concretos”. O “Decreto sobre o Apostolado dos Leigos” (AA) procurou corrigir essa visão. Tudo que o Papa disse refletiu o convencional estilo missionário da Propaganda Fide. A Igreja local, disse o Papa, ajuda as Missões elevando “fervorosas orações pelos missionários, reforçadas pelas esmolas e pelas boas obras” (KLOPPENBURG [org.], 1965, vol. IV, 299s). Logo, não só os bispos-missionários, mas a maioria dos padres conciliares rejeitariam esse texto-esqueleto, que, antes de ser derrotado na urna, foi retirado da aula conciliar. As mudanças precisavam de uma nova fundamentação teológica.


 


7) Esquema de decreto sobre a atividade missionária em cinco capítulos


No dia 16 de novembro de 1964, já no fim do terceiro período conciliar, a Comissão das Missões se reuniu numa sessão plenária e constituiu uma subcomissão para sistematizar as contribuições da aula conciliar.[6] No dia 20 de novembro, a subcomissão se reuniu pela primeira vez. Agagianian mandou avisar que não aceitaria o padre Congar como assessor da Comissão. A subcomissão justificou a escolha de Congar, que era da Comissão Teológica do Concílio. Na mentalidade da Propaganda Fide não coube uma nova eclesiologia. Depois de longas discussões, Congar foi aceito. A subcomissão decidiu se reunir de 12 a 27 de janeiro de 1965, no seminário dos Verbitas de Nemi, com os peritos Congar, Seumois, Grasso, Neuner e Glazik. Nessa reunião, os membros da comissão estiveram todos presentes. Dos peritos só faltou Ratzinger, que mandou sua contribuição por escrito. Schütte, como presidente da subcomissão, apresenta os quatro projetos existentes. O grupo toma, basicamente, o texto de Congar, que distingue entre a salvação dos indivíduos, sem intervenção formal da Igreja, e a Igreja como meio necessário à salvação.


Agagianian, que chega no dia 12 de janeiro (1965), pronuncia-se novamente em favor do senso estrito da missão. Para ele, no dizer do padre Congar, o objetivo do documento que os padres conciliares deveriam aprovar, é, sobretudo, suscitar vocações missionárias e levantar fundos. No dia seguinte, 13 de janeiro, o grupo se divide em dois subgrupos. Um discute o Proemium (Introdução), que estará pronto no dia seguinte, e o outro, com Lecuona, Riobé, Neuner e Grasso, trabalha sobre o texto de Congar procurando incluir os pontos levantados no dia anterior. O novo texto é dividido em cinco capítulos: 1) Princípios doutrinários; 2) Obra missionária; 3) Os missionários; 4) Organização da atividade missionária; 5) Cooperação com os missionários (cf. KLOPPENBURG [org.], vol. V, 1966, p. 242). Em junho, esse texto é enviado aos padres conciliares para ser discutido na quarta e última sessão do Concílio.


 


8) Nascimento do Decreto Ad Gentes


A quarta e última sessão do Concílio começou em 14 de setembro de 1965.[7] Entre os dias 7 e 13 de outubro é discutido o novo texto sobre a atividade missionária. Cinqüenta padres conciliares tomaram a palavra. Um grupo significativo pediu a afirmação da necessidade da missão, apesar do reconhecimento da ”possibilidade de salvação sem conhecimento do Evangelho e sem pertença visível à Igreja” (KLOPPENBURG [org.], vol. V, 1966, p. 243). Pediu-se também uma sensibilidade especial para a questão ecumênica e as áreas de convivência com os não-cristãos. Giocondo Grotti, do Acre, chamou a atenção para o papel dos leigos na missão, e Pedro Arrupe, o superior-geral da Companhia de Jesus, para a cooperação missionária, para a colaboração com a construção da paz e para o encontro em direção aos povos afro-asiáticos com suas culturas e religiões ancestrais. No final desse debate, o texto passou pela votação de sondagem com uma aprovação de 2.070 contra apenas 15 votos.


Para a próxima etapa, cinco subcomissões, uma para cada capítulo, trabalharam as sugestões de emendas de 193 padres conciliares. Já um mês mais tarde, nos dias 10 e 11 de novembro, a Comissão pediu 20 sufrágios sobre partes do texto que receberam muitas emendas (cf. KLOPPENBURG [org.], vol. V, 1966, p. 394ss). A maior parte das emendas foi aceita. O texto voltou depois à Comissão para a sua redação final. No dia 30 de novembro de 1965, a Comissão entregou aos padres conciliares o novo texto, pedindo 10 quesitos sobre as emendas feitas. Antes da promulgação, no dia 7 de dezembro de 1965, o “Decreto Ad gentes – Sobre a atividade missionária” recebeu o voto sim de 2.314 padres conciliares, contra apenas 5 votos não.


No mesmo dia 7 de dezembro de 1965, foi promulgada a “Constituição Pastoral sobre a Igreja no Mundo Contemporâneo” (GS), a “Declaração sobre a Liberdade Religiosa” (DH), poucos dias depois da promulgação da “Declaração sobre as Religiões Não-Cristãs” (NA, 28.10.65). O lugar do “mundo”, da “missão”, da “liberdade religiosa” na Igreja foi disputado e discutido até o último momento do Concílio. E essa discussão continua até hoje pelas diferentes leituras desses textos em Medellín (1968), Puebla (1979), Santo Domingo (1992), e Roma, com o “Sínodo dos Bispos para a América” (1997) e a “Declaração Dominus Iesus” (2000), que procurou fechar um ciclo. Onde, para marcar a identidade, o Concílio derrubou paredes e colocou arbustos, a “Declaração sobre a unicidade e universalidade salvífica de Jesus Cristo e da Igreja”, levantou novamente muros. Mas, a travessia continua, nem sempre em linha reta.


 


9. Esquema dos textos que precederam Ad Gentes


 




















 


 


NOME CONFIGURAÇÃO


 


 


ELABORADO


POR QUEM


 


 


BASE DO DOCUMENTO


 


QUANDO (elaborado e entregue)


 


DESTINO


 


 


1


 


23 Propostas


 


Comissão interna da Propaganda Fide


– retorno da Consulta da Comissão Antepreparatória


– propostas da Propaganda Fide


 


– antes do Concílio


– 28.3.1960


Subsídio para a Comissão (Preparatória) das Missões


 


 


 


Fonte: Paulo Suess (Assessor Teológico do Cimi)

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