E as demarcações de terras indígenas?
A legislação brasileira, por meio da Constituição de 88 e de acordos internacionais firmados pelo país, como a convenção 169 da OIT, assegura aos povos indígenas o direito ao usufruto dos territórios que tradicionalmente ocupam e determina que cabe à União demarcá-las. Para nós, povos indígenas, o direito à terra é garantia de sobrevivência, de espaço para a reprodução de nossas formas de vida e para a construção de projetos coletivos de futuro.
No entanto, o Estado brasileiro é lento na demarcação de nossas terras. Elas são reconhecidas apenas depois de muita pressão dos povos e do movimento indígena. Nos últimos sete anos (1998-2004), uma média de 14 terras indígenas por ano teve seus limites declarados pelo Ministério da Justiça. Considerando que 628 terras indígenas ainda precisam ser demarcadas ou ter seus limites revistos, se o Brasil mantiver essa média, precisaremos de mais 45 anos para reconhecer todas as terras indígenas do país, segundo dados do Fórum em Defesa dos Direitos Indígenas.
Os números contradizem as afirmações do presidente da Funai, Mércio Pereira Gomes, de que as demarcações de terras indígenas estão chegando ao fim.
Outros dados contrariam o discurso oficial: na gestão do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, a média de terras declaradas por ano caiu para seis. A lentidão nos processos de demarcação das terras está diretamente relacionada às escolhas políticas feitas pelo governo federal, pois é fruto da pressão da base de sustentação do governo no Congresso.
O governo Lula não poderia contrariar as demandas de políticos que são também fazendeiros, sojicultores, criadores de gado, e, a esses grupos, que há séculos mantêm sua força na definição da política institucional do país, não interessa que seja garantida aos povos indígenas a posse das terras que tradicionalmente ocupam.
O exemplo mais nítido desses acordos vem de Santa Catarina, onde a articulação de políticos estaduais e proprietários rurais contra os direitos indígenas levou à criação de uma inconstitucional Comissão Especial, que, sob a desculpa de analisar os processos de regularização de terras indígenas, atua para impedir as demarcações desde setembro de 2004. Os membros da comissão divulgam, nos meios de comunicação regionais, que há um acordo entre o governo catarinense e o governo federal para a não-demarcação de terras antes de um parecer da comissão. Movimentação semelhante ocorre em Mato Grosso.
Uma das quatro reivindicações apresentadas durante o “Abril Indígena” -mobilização que reuniu mais de 700 lideranças de 89 povos na Esplanada dos Ministérios, em abril deste ano- foi a demarcação de 29 terras que se encontravam no Ministério da Justiça, aguardando terem seus limites declarados para que pudessem ser demarcadas. Os prazos legais já então estavam ultrapassados. Passados sete meses da solicitação, apenas cinco terras foram declaradas.
Já a Funai criou, durante todo o ano de 2005, um único Grupo Técnico (GT) para iniciar os estudos antropológicos que levam à identificação e delimitação de terras indígenas. Para outras 16 terras, foi iniciada a realização de diagnósticos ou foi publicada apenas uma “portaria de fundamentação da identificação”, no lugar de serem criados GTs. Em vez de utilizar os passos administrativos determinados pelo decreto 1.775/ 96, que regula o processo de demarcação das terras indígenas, a Funai ignora a legislação e aumenta a burocracia. Tudo para atrasar as demarcações.
Ao mesmo tempo, o órgão concede longas prorrogações de prazo para entrega dos relatórios antropológicos de identificação das terras. O prazo para o relatório sobre a terra Tapeba, no Ceará, foi prorrogado por 638 dias; o do povo Tumbalalá, na Bahia, por 308 dias, e os Karitiana, em Rondônia, vão ter que aguardar mais 306 dias para a entrega do estudo sobre suas terras.
Como conseqüência imediata da paralisia das demarcações, constata-se o crescimento do número de conflitos pela posse nas terras indígenas, expondo comunidades e lideranças indígenas à violência dos invasores. Em 2003, foram 33 índios assassinados. Em 2004, foram 30 mortes, e, em 2005, já ocorreram 33 homicídios.
Diante desse contexto, a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab) e o Fórum em Defesa dos Direitos Indígenas, que reúne uma dezena de organizações indígenas e entidades indigenistas, reivindicam a conclusão dos processos administrativos paralisados.
É fundamental que a população brasileira se solidarize com os povos indígenas para que este cenário seja imediatamente revertido, garantindo a esses povos o direito às suas terras tradicionais, necessárias à sua reprodução física e cultural.