Os pobres de Paris
Léo Lince
Os jovens estão queimando automóveis nos subúrbios de Paris. Impressionante, são milhares. As labaredas do espantoso protesto chegam até nós, diariamente, na tela da tv e nas fotos dos jornais. A urbe européia – plena de história – arde no fogaréu da periferia e as consciências inquietas buscam explicações para o inusitado acontecimento.
Não faz muito (dez anos), um livro (“O horror econômico”) escrito por uma francesa (Viviane Forrester), um sucesso editorial (há tradução brasileira, ed. Unesp, 1997), faz uma análise documentada sobre as raízes do que esta acontecendo agora. Sem a pretensão da profecia, está lá o tropel do fantasma que hoje ronda o continente europeu.
Vale a pena repassar algumas idéias do livro. A “nova ordem mundial” tritura o mundo do trabalho, embora milhões não possam prescindir dele, via emprego, para existir. Tal ordem – globalizada, desregulamentada, flexibilizada, transnacionalizada – opera o tempo todo contra os que vivem de salário. Os contratos que garantem direitos sociais não valem um tostão furado. Para a casta financeira que domina o mundo, há humanos em excesso. Estorvo ao dinamismo do capital, as nossas vidas não são mais de utilidade pública.
Por outro lado, a saúde da moeda tem primazia absoluta. A máquina do poder político só sobrevive para facilitar os negócios. O lucro, a vertigem do ganho rápido, foi naturalizado. Ele e os contratos que lhe garantam a reprodução ampliada são sagrados. Estado providencia, hoje, é o crime organizado, o tráfico, a informalidade, e salve-se quem puder. Tudo que até então fora pensado como ordenamento mais justo da vida social (solidarismo cristão, keynesianismo, trabalhismo, socialismo, comunismo) virou problema a ser extirpado.
Migrantes, alto lá. A liberdade de ir e vir, só para os capitais voláteis. É a desforra dos possuidores contra os limites antes impostos à volúpia do capital pelo o processo civilizatório. Transportam para outro lugar os excessos de exploração que a história tornara caducos nos países mais civilizados. O neocolonianismo é renovado com fúria, ao tempo que se produz, nos países centrais, um padrão de desigualdade antes reservado para a periferia do capitalismo. É a barbárie, fora de qualquer ética ou sentimento.
Os jovens pobres – “virtuoses da exclusão” – são as principais vítimas. Com os limites fixados antes de nascer, o futuro deles é o vazio. Os danos que eles provocam são visíveis. Logo, qual animal de caça, nascem condenados. Mas o que eles sofrem não aparece, e quando aparece é como culpa deles. Segregação, guetos, insegurança, violência: futuro abolido. São a “escória” (os miseráveis de Victor Hugo também eram), diz o ministro sarcófago cujo único projeto político é o pacto de exclusão.
A revolta juvenil de 68, governada pela utopia, prosperou em quadro diverso. “La beauté est dans la rue”, diziam ao contestar a ordem. Eram rebeldes com causa e apostavam na revolução radical. Agora não há slogans, projetos, programas ou lideranças. São apenas rebeldes. Inventam códigos de comportamento e emitem “sinais de incêndio”, ainda em processo de decifração.
Na tradição libertária da França, os miseráveis costumam dar lições de história. A poesia, a canção popular, a alta literatura, a filosofia e a ciência política mais sofisticada sempre reservaram lugar de destaque para a voz das ruas. Lá, as barricadas do desejo sempre cuidaram de abrir caminho onde parecia não haver. Não se sabe ainda o sentido das fogueiras, mas convém prestar atenção naqueles que já produziram acontecimentos grandiosos: os pobres de Paris.
Léo Lince é sociólogo