Aty Guasu Guarani, aftosa e os sete presos em Sete Quedas
Mato Grosso do Sul volta novamente à pauta da mídia nacional e internacional. Desta vez já não são as mortes de dezenas de crianças Kaiowá Guarani, de desnutrição e fome, mas vem à tona com toda força, os bois, com tudo que eles representam no imaginário e na economia deste Estado. Afinal de contas, as mais de 25 milhões de cabeça de gado são responsáveis por quase a metade da exportação de carne para dezenas de países. Foi só aparecer um boi babando que se movimentou desde as altas esferas do Planalto, provocando calafrios até nos mais recônditos barracões e palacetes das fazendas. E como que por encanto, num estalar de dedos, o governo federal liberou três milhões e meio de reais para enfrentar o possível surto de aftosa. Para milhões de sem terra havia sido prometido quatro milhões, que encolheram para um milhão, que ainda está na promessa. Para as terras indígenas, sequer há recursos para constituir Grupos de Trabalho para identificar as dezenas de tekoha que estão sendo exigidos pelos Kaiowá Guarani. Também não foi o vai e vem das mais de três milhões de toneladas de soja, que vão engordar, preferencialmente, as vacas na Europa, que colocaram o Mato Grosso do Sul na mídia. Foram apenas alguns bois suspeitos. E a primeira suspeita recaiu sobre os bois do Paraguai, que quiçá sejam considerados de segunda categoria, pois talvez ainda sejam arredios a vacinas. Afinal de contas são bois, muitas vezes do mesmo dono, separados por alguns marcos de concreto e alguma cerca real ou virtual, que separa milhares de cabeças de gado em centenas de quilômetros de fronteira seca e livre!
Nestes mesmos dias estavam se reunindo na mesma região do boi suspeito, mais de 500 Guarani-Kaiowá, debatendo os graves problemas, especialmente da fome pela falta de terra e violências. Apesar de fatos tão distintos, os índios reunidos no município de Japorã, em Yvy Katu, sofreram o impacto da aftosa. Foram comunicados, pelo fornecedor da carne para o encontro, de que não mais seria possível levar a carne, pois tudo havia sido embargado. Ficamos até pensando num boicote. Afinal de contas, estava em pauta a estrutura fundiária na região, em que o boi tem total primazia sobre qualquer outro animal vivente, humano ou não. É claro que mais de 500 índios reunidos discutindo seus problemas e exigindo suas terras não foram nenhuma razão de notícia, sequer de rodapé de página de jornal.
Sombras e luzes de Sombrerito
A Aty Guasu, inicialmente estava prevista para se realizar nesta sagrada terra retomada, no município de Sete Quedas. Os índios aí construíram uma bonita “oga pysy” – casa de reza. Para lá se dirigiram, no último dia da Assembléia, mais de 80 pessoas, especialmente os nhanderu e nhandesi – líderes religiosos, para fazer a benção do local, dos membros da comunidade e fazer um ritual no local onde Dorival Benitez foi assassinado, no dia 26 de junho. Foi emocionante. O velho Delossanto, com seus 84 anos e ainda muita força e disposição, estava com um semblante encantador, em frente àquele ritual de vida e esperança. Onde se constrói essa casa e faz esse ritual a terra volta a ser de fato dos Kaiowá Guarani. Na volta pararam na Vila Carioca, que parecia um local fantasma, com todas as portas das casas fechadas e nenhuma pessoa visível. Em frente à igrejinha verde, onde prenderam os índios, os torturaram e queimaram o caminhão na madrugada daquele dia 26 de junho, foi feita mais uma parada. Recolheram ainda uns cacos que restaram do caminhão queimado. A memória daqueles atos covardes causaram indignação e consternação. Certamente Tupã e todos os espíritos guerreiros continuariam clamando por justiça.
Vila Carioca é, na verdade, um pequeno aglomerado de casas de um e outro lado da fronteira, que economicamente depende de uma grande carvoaria com mais de 40 fornos funcionando a todo vapor, engolindo e transformando a floresta em carvão.
No dia 15, um dia após o término da Aty Guasu, os jornais da região anunciaram a prisão de sete suspeitos do assassinato do Guarani Dorival Benitez. Na mesma página o jornal o Estado do MS fala sobre o trabalho escravo nas carvoarias e fazendas do Estado. “Estudos do Ministério Público do Trabalho indicam que a pecuária é o setor que mais escraviza trabalhador no país. Aqui, em Mato Grosso do Sul, os casos se limitam às carvoarias… o infrator conta com a fraca estrutura de fiscalização existente no Estado. Para agir no vasto território seria necessário um efetivo de fiscais três vezes maior do que o empregado hoje…” (Estado MS 15/10/05).
Na Aty Guasu foram tiradas decisões importantes, como o levantamento de quase 200 terras tradicionais – tekoha, para as quais foi pedida urgente ação do governo no sentido de identificar e demarcar essas terras. A prioridade é para a região de Dourados, onde a situação de falta de terra para os índios é mais grave. O Procurador da República, Charles Pessoa, prometeu exigir da Funai empenho nesse sentido. Também foi aprovada a realização da Grande Assembléia Continental Guarani – a Nemboaty Guasu, que está prevista para se realizar em fevereiro do próximo ano, quando se celebram os 250 anos do assassinato de Sepé Tiaraju e mais mil e quinhentos guerreiros, em Caiboaté no Rio Grande do Sul.
Durante a Aty Guasu foi espalhado, pelos fazendeiros, o boato de que os índios estariam fazendo retomadas de terras. A Polícia Federal esteve no local e confirmou de que se tratava de mais uma tentativa de intimidar e desmobilizar os índios. Apesar da precariedade e carência de infra-estrutura, tendo se realizado os trabalhos ao ar livre, sob forte sol e chuva, foi impressionante a disposição, a vibração e participação tanto nos momentos celebrativos, que duravam a noite toda, como nos debates e decisões políticas.
Campo Grande (MS), 17 de outubro de 2005.
Cimi Regional Mato Grosso do Sul – Egon Heck