Vida para todos: por isso fiz a greve de fome
Voltarei ao jejum, com mais determinação ainda, se o acordo firmado com o governo não for cumprido
LUIZ FLÁVIO CAPPIO
Foi em favor da vida que fiquei 11 dias em jejum e oração na tão querida capelinha de São Sebastião, em Cabrobó (PE). Motivou-me o compromisso, baseado no Evangelho, que tenho com os pobres, os do rio São Francisco em primeiro lugar, porque me são mais próximos, há mais de 30 anos, por opção de franciscano, sacerdote e bispo desde 1997. Compromisso com a vida do próprio rio São Francisco, tão degradado.
“Rio vivo, povo vivo. Rio morto, povo morto”, gritamos milhares de vezes na peregrinação da nascente à foz do São Francisco, entre outubro de 1993 e outubro de 1994. Vida ameaçada pelo atual projeto de transposição. Mas meu compromisso é também com a vida de toda a população do semi-árido, principalmente a dos mais pobres, enganados com tal projeto.
Era essa minha intenção, bastante clara na declaração “que todos tenham vida”, que fiz depois de longo debate, no acordo que me levou a suspender o jejum e que celebrei com o ministro Jaques Wagner, em nome e com o assentimento do presidente Lula: “permitir uma ampla discussão, participativa, verdadeira e transparente para que se chegue a um plano de desenvolvimento sustentável, baseado na convivência com todo o semi-árido, para o bem de sua população, priorizando os mais pobres. (…) que, através desse amplo debate, cheguemos a soluções que promovam a união e a concórdia para o povo brasileiro, especialmente para os irmãos e irmãs do semi-árido”.
Portanto não basta dizer “não” à transposição. Não basta só a revitalização do rio. É preciso um plano de desenvolvimento verdadeiramente sustentável, que beneficie toda a população do semi-árido, tanto os que estão próximos do rio como os que estão longe dele. Um bom plano exige que se pense o semi-árido em toda sua extensão, do norte de Minas ao Ceará, do agreste pernambucano ao Maranhão, com toda sua diversidade geográfica, social e ambiental. São aproximadamente um milhão de km2 e 30 milhões de pessoas.
Os mais pobres estão nas cidades, mas formam quase toda população rural, espalhada por todo o território. São os que quase não têm terra, bebem águas podres de barreiros e de açudes, não têm a mínima infra-estrutura para enfrentar o clima do semi-árido e estariam fora do projeto de transposição. Pobres que estão não muito distantes do próprio rio São Francisco. Estes devem ser prioritários para o investimento público no semi-árido. Portanto é não só uma questão técnica mas ética.
A transposição se colocou como um “fantasma” que não permite uma visão ampla do semi-árido, pois absorve mentes, energias e recursos, como se abrangesse o todo e fosse a salvação para todos. Ela abrangeria apenas 5% do semi-árido brasileiro e beneficiaria 0,23% da população do Nordeste, segundo críticos.
Será, na verdade, mais problema para a população do campo e da cidade, uma vez que elevará o custo da água disponível e estabelecerá o mercado da água. Não vai redimir o Nordeste, como apregoam seus promotores. Tenta-se justificar, equivocadamente, um Nordeste setentrional separado do todo.
Pensando o semi-árido como um todo, poderemos conferir exatamente qual poderia ser ou não a utilidade e a necessidade de uma obra de tamanho gasto público, para um país endividado como o nosso, e de tanto risco social e ambiental.
É preciso pensar também o rio. Cortado por barragens, desmatado por carvoarias, poluído por esgotos e agrotóxicos, assoreado em toda a sua extensão, o São Francisco pede alento, um pouco de paz e um pouco de sossego para recuperar a vitalidade. Pede investimento. E suspensão dos projetos degradantes. Não há verdadeira revitalização se continuar a degradação dos solos, da vegetação e das águas da bacia, como nos cerrados do oeste baiano.
É preciso respeitar também sua população, que suporta o ônus de todos os projetos impostos à grande bacia. Aqui também mora gente que merece consideração e respeito.
Busquemos um plano que una novamente a nação nordestina. A transposição nos divide. A revitalização do São Francisco e do semi-árido nos une.
Quando iniciei o jejum, declarei que, “quando a razão se extingue, a loucura é o caminho”. Fico feliz que meu gesto, suas razões e sua “loucura” tenham sido compreendidos e apoiados por tanta gente. Agradeço sinceramente. Tenho rezado por todos. Não me canso de louvar a Deus por tanta graça recebida.
“Eu vim para que todos tenham vida e a tenham em abundância” (João, 10, 10).
Fiz dessas palavras centrais do Evangelho meu lema de bispo. Só quis ser fiel a ela, com a radicalidade que a questão exigia. E voltarei ao jejum e a oração, com mais determinação ainda, se o acordo firmado, em confiança, com o governo não for cumprido. E sei que não estarei sozinho.
Dom frei Luiz Flávio Cappio, 59, é bispo diocesano da cidade de Barra (BA) e autor do livro “Rio São Francisco, uma caminhada entre vida e morte” (editora Vozes, 1995).
Fonte: Tendências/Debates – FolhaOpinião – São Paulo, segunda-feira, 10 de outubro de 2005